Mitologia é religião?

Então, meus caros...

Mitologia não é religião... Por sinal essa é uma discussão muito salientada por Alain Guerreau e milhares de outros teóricos.

Sim, mitologia e religião não são a mesma coisa, mas se interpenetram e as mesmas fontes podem ser utilizadas para ambas, em mutos casos.

Verdade... mas há de se tomar muito cuidado com o conceito. Religião é um termo absolutamente envolvido com o século XVIII e seus usos precisam de revisão. O Guerreau tem uma discussão ótima sobre a diferença entre religião e Eclesia na época medieval e como essa diferença é fundamental para se entender o medievo tentando fugir do anacronismo.

Eu sei que não é a mesma coisa, eu coloquei a questão porque muitos não consideram como religiões as religiões da antiguidade, impregnando elas com pré-conceitos; fazem com que os povos antigos não tivessem religião mas sim mitologias.

William,

Eu entendo por mitologia o conjunto de relatos (orais ou escritos) que falam de deuses, heróis, personagens lendários ou acontecimentos relacionados com a religião. Quer dizer, que a mitologia está dentro da religião, mas não a religião dentro da mitologia. Os relatos da Bíblia, do meu ponto de vista, são relatos míticos escritos a partir da tradição oral e que todos eles conformam a base da religião judia, por exemplo. Mas a religião já é algo mais do que isso, a religião é a institucionalização das crenças e mitos através duns ritos e dumas hierarquias. Como dizia Lévi-Strauss, o rito é a expressão do mito. O problema é que no Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo, o fato de considerar aos seus livros de "revelados", é o motivo pelo qual a oficialidade não os considera de mitos, mas na realidade são mitos. Não sei se concordam comigo.

Realmente boa parte da bíblia parece-me mitologia sim e a questão da "revelação" é comparável às revelações das musas aos poetas da antiguidade. Mas há, inclusive na sua questão, algumas confusões entre mito, mitologia e religião. Confusão muito comum hoje em dia, diga-se de passagem.

O mito - e Eliade explica bem - é mais que narrativa divino-heroica, ela é, segundo o próprio, o relato daquilo que aconteceu *realmente*. Daí o discurso de verdade ser prerrogativa para a construção do mito e sua autoconservação necessária, em caso particular a "revelação". O rito atualiza o mito na medida que ele o mantém e - não confundindo com simples lembrança - ele o torna presente. O rito corporifica o mito. Ele está *ali*. Um exemplo é o corpo de cristo na religião católica. Ali não está a lembrança do Cristo, mas o corpo real dele.

Dessa forma, a mitologia "tem função religiosa possível e é base de um sistema hermenêutico". Mas perceba o sentido de possível e de base, mostrando como o mito pode estar na origem de religiões, mas não necessariamente estar contido ou ser condição sine qua non para o nascimento de alguma. Colocaria até um parênteses nesse caso ao tentar pensar se a ciência não se comporta em parte como uma religião, ou certas doutrinas, enfim algo a se pensar.

Falei algumas vezes de religião aqui, mas há cuidados - e agora acho melhor o Guerreau - com o uso do termo. Sabemos que o termo religião é mais que um conjunto de instituições e organização de representações sociais, ela é relacionada a práticas de opinião, a ligações com atitudes e pensamentos. Essa ideia religião = opinião, segundo Guerreau, foi inaugurada no século XVIII, cita inclusive a Declaração dos direitos do homem de 1789: "Ninguém deve ser molestado por causa de suas opiniões, inclusive religiosas, contanto que..." . Isso mostra uma absoluta descontinuidade com a ideia de "revelação" e de mito presente na idade média.

Terminando...

Citando então o Guerreau: "Este processo [de equivalência entre religião e opinião] conclui com o nascimento de uma estrutura denominada "religião", ao mesmo tempo elemento de representação de uma forma de prática social e conjunto específico de instituições e atividades, cuja articulação com o todo social não tinha precedente; o uso do termo para designar ou analisar realidades anteriores ao século XVIII resulta em contra-sensos dramáticos. A ecclesia no sentido próprio (medieval) do termo desaparecia, e o mito de sua continuidade que os apologistas da fé perene procuram alimentar é uma barreira intransponível diante de qualquer tentativa de análise racional da sociedade medieval."

Acho essa uma discussão de vital importância nos estudos medievais, tanto para se evitar o anacronismo quanto para o entendimento da época.

Esse texto está no Dicionário Temático em "feudalismo". Vale a pena ler.

Mito que dizer "relato" ou "coisa que deve ser dita" ou ainda "coisa que deve ser contada". Assim mito é um relato sobre algo que PODE ter acontecido. Heródoto, o "pai" da História, foi um dos que fez diferença entre o MITO e o LOGOS. Mito então passou a ser uma história possível, mas não provável. QUE É PASSADA ORALMENTE.

E o LOGOS, passou a ser a história provável e confirmada por uma testemunha que a relatou por escrito. Assim nasceu o sentido que temos hoje da HISTÓRIA.

Portanto, Mitos são Mitos.