As Olimpíadas

Apolo sabia que o menino não enxergava, e esperou para ver os resultados, quando assoviou a seta mágica e foi atingir o alvo no centro. Foi espantoso. O deus não conseguiu deixar de sentir inveja diante da graça do seu involuntário rival. Ainda mais a sua destreza. Quis dar um passo para seguir seu caminho, porém voltou-se e, não podendo mais se conter, saiu do esconderijo e se revelou com ironia:

— Olá, amigo Éros. Treinando a pontaria?

Éros respondeu, enquanto mirava cegamente o alvo:

— Sim. Queres treinar um pouco, também?

Apolo, imaginando que o outro debochava dele, reagiu com inesperada dureza:

— Ora, moleque, e quem vai me ensinar alguma coisa? Tu?

E a seta, de novo, foi acertar o alvo, exatamente no mesmo lugar de antes. Em seguida, foi apanhá-la e, após limpá-la, guardou-a no carcaz de Apolo e devolveu a ele suas armas. Já se preparava para retirar-se, quando Apolo provocou-o novamente:

— Que queres tu, menino, com armas mortíferas? Deixa-as para mãos de quem possa manejá-las! Viste a grande vitória que alcancei contra a enorme serpente, cujo corpo venenoso cobria grande extensão da planície? Contenta-te com tua tocha, criança, e atiça tua chama, mas não te atrevas a intrometer-te com minhas armas novamente!

— Tuas setas podem ferir todas as coisas, e isso concordo. Só não esquece que as minhas também podem ferir-te.

— Ora seu...

Éros subiu voando ao alto de uma rocha do Párnassos, onde um passe de mágica fez surgir seu carcaz e suas flechas mágicas, e sacou uma delas, com a ponta de ouro. Apontou no coração de Apolo e desferiu o tiro, dizendo:

— Vamos provar agora, um pouco, da minha má pontaria!

Num segundo a seta de ouro partiu, assobiando ao vento e indo cravar-se no alvo com perfeita exatidão. Apolo, sem perceber o que atingira seu peito, sem ao menos sentir dor, sentou-se no chão, abatido por um langor nunca antes sentido.

Mas Éros ainda não estava satisfeito. E, do alto da rocha, avistou uma ninfa que se banhava logo ali, no rio Peneus, e atirou-lhe no coração a flecha de chumbo, a da repulsa.

E Éros, sumindo no céu, gritou para Apolo:

— Mostra tua virilidade, deus do arco de prata!

Apolo, após recuperar suas forças, ergueu-se e entrou no bosque, como que impelido por alguma atração irresistível. Tão logo atravessou as primeiras árvores, seus olhos caíram sobre uma ninfa, Dafne, filha do deus-rio Peneus, que secava os cabelos, torcendo-os delicadamente. Não era exatamente a mais bela que já vira, mas o deus ficou extremamente encantado diante dela, e admirou seus cabelos, seus lábios, seus olhos e todo o seu corpo.

— Como seria ainda mais bela se estivesse adequadamente vestida e com os cabelos bem alinhados!

Dafne, escutando a voz, voltou-se para o lugar de onde ela partira. Assustada ao ver que aquele homem de louros cabelos a observava atentamente, juntou suas vestes e saiu correndo, mata adentro, como se tivesse visto um monstro. Apolo, num salto, ergueu-se também.

— Espera, ninfa, quero falar contigo!

Nunca na sua vida Dafne havia sentido tamanha repulsa por alguém como sentia pelo majestoso deus, que qualquer outra cobiçaria. O pio e o mais feio dos Faunos não lhe pareceriam no momento mais odioso do que aquele homem.

— Afasta-te de mim!

Apolo, bem acostumado a ser cortejado por deusas e Ninfas, via-se agora repelido de forma tão definitiva.

— Por que foges assim de mim, encantadora ninfa?

Sem saber como agir diante de uma situação tão inusitada, o desnorteado deus pôs-se a falar de si, de sua beleza tão elogiada por todos, de seus dotes, suas glórias, seus atributos e as infinitas vantagens que ela, Dafne, teria em juntar-se a ele, o mais cobiçado dos deuses. Mas ele desconhecia um pouco a mentalidade feminina,se não teria falado mais da bela ninfa em vez de falar tanto de si próprio.

E ao perceber, porém, que a corrida desenfreada da jovem acabaria por deixá-la extenuada, o deus gritou:

— Espera, diminui o teu passo que diminuirei o meu!

A ninfa, reconhecendo a gentileza de seu perseguidor, diminuiu um pouco o ritmo. Apolo, no entanto, que diante disso vira aumentar os encantos da sua amada, acelerou involuntariamente o seu passo, renovando o terror na amedrontada Dafne.

— Mas que canalha!

A ninfa tomou novo impulso para a corrida, enquanto Éros se deitava a rir em cima de uma nuvem, mas ela já estava exausta e não era páreo para Apolo, um verdadeiro atleta. Sentindo um peso nas pernas, Dafne voltou o rosto aterrado para trás e percebeu que as mãos do deus quase tocavam os seus fios de cabelo. No entanto, Dafne, ao sentir a aproximação do deus, entrou no bosque fechado e conseguiu despistá-lo por algum tempo.

Foi quando o deus percebeu que Lêucipos gozava dos favores da ninfa, aproveitando-se do seu disfarce. Pensando ser o rapaz uma barreira para suas intenções, inspirou às Ninfas de irem-se banhar no Ládon. Dafne também foi. Lêucipos, levado a banhar-se ele também e obrigado a despir-se, mostrou quem realmente era e foi morto pelas virgens enfurecidas a golpes de punhal.

Dafne não participou do massacre e, voltando os olhos para o lugar onde alguém se escondia, percebendo ser um plano de seu perseguidor, pôs-se a correr de novo como o vento, e nem mesmo o deus conseguia alcançá-la.

— Para, linda donzela, não quero fazer-te mal. Quero apenas poder amar-te. Por que foges de mim? Sou um deus e meu pai é o próprio Zeus. Sou senhor de Delfos e Tênedos e conheço todas as coisas, presentes e futuras...

A ninfa estava surda às súplicas do deus e continuou em sua fuga. Seus cabelos estavam esvoaçantes e o vento agitava suas vestes. Apolo sentia-se mais encantado com Dafne, e passou a correr ainda mais rápido. A donzela sentia que o deus se aproximara muito e que dificilmente conseguiria escapar. As forças da jovem começavam a faltar e, desesperada, rogou a seu pai, o rio Peneus, que a ajudasse:

— Salva-me, meu pai! Não tenho mais forças para fugir! Eu entrego meus dons em troca de liberdade!

O deus-rio estava triste, mas havia prometido ajudar a filha a não se casar, e resolveu investir. Ela tentou atirar-se ao rio, mas foi apanhada pelo tornozelo, e ela desabou na grama verde, a alguns passos do rio. Um suspiro forte escapou de seus lábios entreabertos, com o impacto da queda. Ainda tentou rastejar em direção da água, mas sem conseguir.

— Não sou teu inimigo, bela ninfa. Não fujas mais de mim, pois é por amor que te persigo. Sofro de medo que, por minha culpa, caias e te machuques nestas pedras. Não corras mais, peço-te. Não sou homem rude, um campônio boças. Zeus é meu pai, sou senhor de Delfos e Tênedos, sou Apolo, o deus que conhece todas as ervas para curar todas as doenças, mas, no momento, estou sofrendo de uma enfermidade que bálsamo algum pode curar: sofro de amor.

Apolo, antão, cobrindo os tornozelos de beijos, recusava-se a largá-la. E a donzela, como último recurso, implorou:

— Ajuda-me, meu pai! Abre a terra para envolver-me, ou muda minhas formas, que me têm sido fatais!

Mas um torpor invadiu os membros da linda ninfa, e toda a sua pele começou a transformar-se numa leve casca, e ela não mais conseguia se mover. Seus cabelos se tornaram verdes folhas, seus braços mudaram-se em galhos e os pés cravaram-se no solo, como raízes. Apolo, vendo a transformação, e sentindo-se impotente, abraçou os ramos da árvore e beijou ardentemente sua madeira, mas sentiu o gosto de resina.

— Ó mais bela de todas as virgens, estás perdida para mim! Mas, já que não podes ser minha amante, serás minha planta favorita. Usarei tuas folhas como coroa; com elas enfeitarei minha lira e minha aljava. E, tão eternamente jovem quanto eu próprio, também hás de ser sempre verde e tuas folhas jamais envelhecerão.

O que cantou, porém, com tal paixão, não foi cantado nem sentido em vão. Se foi surda a amada ao canto seu, o canto aos outros homens comoveu. Assim, Febo-Apolo, deixando a ilusória paixão, no louro pôs a eterna glória, usada como prêmio aos vencedores nas competições atléticas.

OS JOGOS OLÍMPICOS OFICIALIZADOS POR HÉRACLES

Héracles, acompanhado de Calcódon, filho de Abas, a mando de Euristeus, partiu para a Élide, onde reinava Áugias, o “radiante”. Durante a viagem, o filho de Zeus tentava entender o motivo do rei impor-lhe tal tarefa. Se as cavalariças de Áugias exigiam alguém como Héracles para a sua limpeza, então esse rei tinha um número muito grande de cavalos. Além do mais, Áugias tinha fama de ladrão de cavalos, o que lhe valia ter estábulos tão avantajados. Por isso, os estábulos eram imensos e tinham uma camada de esterco como nunca vista, acumulada durante muito tempo.

Mas haviam muitas dúvidas. Por que razão havia Euristeus imposto aquele trabalho a Héracles? Com um bom número de trabalhadores com enxadas e pás, qualquer empreiteiro poderia limpar aquelas cavalariças.

Na verdade, Áugias era filho do deus Hélios, a quem o protegia, e sua mãe era Naupídame, filho de Anfídamas; possuía as maiores manadas de bois e ovelhas da Hélade. Possuía três mil belíssimos touros negros de pernas brancas, dois mil animais de pelo avermelhado e doze brancos como a neve, além de um sem-número de excelentes cavalos. As terras de Áugias eram tão férteis que não podiam adubá-las com esterco. Por isso, o esterco que ia ficando empilhado nos estábulos era tanto que, mesmo se todos os habitantes de Élis trabalhassem durante anos seguidos, não conseguiriam removê-lo. O pior era que, segundo diziam, o mau cheiro trazido pelos Ventos já estava provocando uma epidemia na região, tanto que a manada era conservada distante dos estábulos. Ademais, os deuses haviam concedido aos animais imunidade contra as doenças.

E Héracles, pensando em muitas possibilidades, chegou à conclusão pelo grande interesse de Euristeus em ordená-lo a executar tal tarefa:

— O cheiro!!! Deve ser venenoso, mortal!... Euristeus lembrou-se de me encarregar desse trabalho não porque seja um acima das forças de qualquer homem comum, mas porque as venenosas emanações do esterco revolvido irão me destruir... É isso!

Na manhã do outro dia, Héracles e Calcódon entraram nas terras do rei Áugias, cujo meio-irmão, Áctor, estava associado a ele no governo da Élide. Já de longe, no topo da colina, viram o seu palácio e, mais adiante, as cavalariças, que deveriam acomodar mais de milhares de animais. Pelos campos vizinhos, observaram uma cavalhada solta, incontável, e um grande número de bois e novilhas.

Chegando na capital, Élis, Héracles entrou no palácio, enquanto Calcódon permaneceu na biga. Áugias já o esperava, pois havia sido avisado por Lépreos, o “sarnento”, filho de Cáucon e Astidâmia, um príncipe dos dólopes a serviço do rei de Élis.

— Majestade, venho fazer uma visita às famosas cavalariças de que tanto ouvi falar.

Áugias tinha orgulho de suas cavalariças e outrora gostava de mostrá-las aos visitantes. Porém, era inoportuno. E, reconhecendo o famoso herói, alegrou-se e decidiu conduzi-lo até lá. Só que permaneceram à distância, e já se podia sentir o mau cheiro do esterco acumulado de muito tempo. Por isso, tiveram que afastar-se dali.

— Majestade, por que não fazes nestas cavalariças uma limpeza? Tanto esterco assim acumulado não pode fazer bem aos animais nem às pessoas.

— Sim, já pensei — mas limpá-las como? Meus homens têm medo de ficarem doentes. Inclusive, tenho cavalos enfermos, e temo que outros também sejam contaminados. Tenho de limpá-las, sim, mas como?

Héracles correu os olhos pelas redondezas e perguntou:

— Majestade, não há aqui por perto algum rio?

— Sim, mas... por quê? Passam aqui perto os rios Alfeus e Peneus, que nesta época estão cheios por causa das chuvas.

— Pois, então, creio ter encontrado a solução. Proponho-me a limpar completamente estes estábulos, sob uma condição...

Áugias já pensava que Héracles fosse louco de ir buscar água no rio para lavar as cavalariças. Mas arriscou:

— Qual?

— Pagar-me o serviço com dez por cento da cavalhada.

O rei observou, de bom grado, as formas esplêndidas daquele homem trajado com uma pele de leão e mal conseguiu conter o seu riso ao imaginar que tal guerreiro estivesse disposto a fazer o trabalho sujo de um criado. E, segurando a barba, pensava:

— O interesse já fez com que vários homens corajosos fossem seduzidos. Talvez ele imagine que poderá enriquecer às minhas custas. Mas certamente vai ver que está enganado. Ainda assim, posso prometer-lhe uma grande recompensa, se efetivamente num só dia ele remover todo o estrume de meus estábulos, pois isto é impossível.

Pensava num meio de tratar o serviço por aquele preço e depois passar a perna no herói: jamais iria se desfazer de um único cavalo. Lépreos foi cochichar ao ouvido do rei dos eleanos um plano: amarrar Héracles e expulsá-lo de Élis caso ele pedisse a recompensa pelos serviços prestados. Em seguida, Áugias mandou que investigasse o caso consultando Calcódon, que acompanhava Héracles. E, piscando o olho, respondeu:

— Pois aceito o negócio, senhor limpador de estrume. Limpa as cavalariças e, em pagamento, receberás a décima parte dos meus animais, entre bois e cavalos. Mas quero feito isso em um só dia, entendido?

Áugias ria incredulamente e, com um aceno, chamou o seu filho primogênito Fileus, para servir de testemunha. Este formulou ao herói a questão decisiva:

— Juras que realizarás o trabalho antes do anoitecer?

O juramento que fez Héracles em nome de seu pai foi o primeiro e o último de toda a sua vida.

— Juro. Mas, por ora, preciso dum lugar para repousar, água para o banho e algo para comer.

— E tu, meu pai, juras cumprir o que lhe foi prometido?

— Tens minha palavra, Fileus.

O rei Áugias fez um sinal para seus servos, que foram tudo providenciar. Em seguida, Héracles, o rei e os demais voltaram para o palácio. Héracles já havia desconfiado e, sem dúvida, pensava que Héra planejava alguma coisa contra ele, neste trabalho.

Héracles, tendo simpatizado com Fileus, depositando nele toda a confiança, ficou satisfeito.

— Pois muito bem. Amanhã começarei o serviço.

Despedindo-se de Áugias, voltou para junto de Calcódon, e juntos foram para a pousada indicada pelos servos do rei. Enquanto isso, no palácio, o rei esfregava as mãos, muito contente.

— Se ele executar a empreitada, eu resolvo o grande problema que tanto me preocupa; mas lhe pagar o serviço com a décima parte de meus animais me parece muita coisa...

E, estando a refletir, entrou na sala do trono o servo Lépreos.

— Já descobri tudo, rei Áugias. Héracles veio até aqui por instigação do rei Euristeus, de Micenas...

— Euristeus? Hum...! Héracles não viria aqui por acaso.

E deu uma risada gostosa, como quem acabava de descobrir a solução de um problema.

— Por que estás tão contente, Majestade?

— Foi só uma ideia...

O rei não revelou os seus pensamentos. Preferiu calar-se.

Héracles e Calcódon, num intervalo de seu descanso, foram em busca de Menêdemes, um eleano que os ajudaria a bolar um plano para a execução daquele trabalho que, à primeira vista, parecia não muito difícil, mas escondia tamanha crueldade. Menêdemes foi quem deu a ideia de utilizar os rios Alfeus e Peneus para resolver tal tarefa.

E foi nessa mesma noite que Héracles esbarrou em Lépreos, que se dizia neto de Poseidon e era um insaciável comilão. O infeliz ousou censurar o herói que se encontrava num acampamento prestes a preparar o seu jantar. Lépreos se auto-rotulava um glutão de renome, e costumava vencer qualquer um que o desafiasse. O filho de Zeus já não o vira com bons olhos, pois percebera que ele tramava com o rei Áugias. Então, após algumas provocações, decidiram disputar a honra de provar qual dos dois comeria um boi inteiro. De acordo, foram apanhar dois, que foram esquartejados e devidamente assados. Ambos comeram, mas Héracles conseguiu fazê-lo primeiro, caso que lhe valeu o título de “Búfagos”, o comedor de bois, e “Adéfagos”, o insaciável, o voraz. Lépreos, derrotado, mastigando ainda, lançou insultos ao herói afirmando que o seu boi era maior, e por isso é que havia sido derrotado. Héracles, injuriado, o matou.

Antes do amanhecer, Héracles, Calcódon e Menêdemes dirigiram-se às cavalariças do rei e, no caminho, Faéton, o touro-guia dos touros brancos de Áugias, julgando aproximar uma fera selvagem, atacou feroz e cegamente a Héracles, que usava nos ombros a pele de leão. Héracles abraçou o seu chifre esquerdo e, num instante, derrubou-o ao solo. Segurou-o por algum tempo e, percebendo que estava dominado, libertou-o.

Assim que amanheceu, o rei e os seus cortesãos, pensando que Héracles havia desistido e ido embora, foram conferir e viram uma parte do muro da cidade no chão, como se um terremoto o tivesse derrubado. Aí, entenderam o motivo de tanto barulho pela parte do amanhecer. Isso que ainda não haviam visto os buracos que Héracles produzira em dois pontos opostos dos estábulos. Fizera isto com prendedores no nariz e respiração presa.

Logo, apareceu Héracles, que veio-lhe pedir uma enxada emprestada. Ele foi cavar dois canais até os rios Alfeus e Peneus, que por ali passavam. Áugias mandou Fileus apressar-se e ir ver o que se sucedia. E, ao meio-dia, já os trabalhos de escavação estavam prontos; só faltava romper uma barreira feita de árvores e pedras para que os dois rios da região se juntassem. Para que os rios não seguissem o curso no momento da escavação, o herói tebano empilhara grandes pedras como se fossem barreiras. Fez isso em ambos os rios. Os caminhos escavados dariam num pequeno desfiladeiro. Naquele lugar, Héracles construiu um dique, rolando abaixo as maiores rochas que encontrou. Nesse ponto, os dois rios se uniriam. E o filho de Zeus, vendo tudo pronto, com pontapés, fez rolar as represas, e as águas dos dois rios encontraram-se no dique do desfiladeiro, que, enchendo transbordou e desceu para os estábulos furiosamente, arrastando tudo quanto encontrasse pela frente, limpando todos os estábulos, as cavalariças, os redis e os pastos do vale, tudo isso em pouco tempo. Satisfeito pelos resultados, Héracles tratou de barrar as águas reunidas e fazê-las novamente correr pelos velhos leitos do Alfeus e do Peneus. Fez tudo isso perante o testemunho de Fileus, Calcódon, Menêmedes e o olhar espião de Lépreos, servo do rei.

Não tendo mais nada a fazer, vendo que os estábulos estavam limpos e o cheiro havia desaparecido, só restou-lhe ir ter com o rei e obrar o preço da empreitada. E foi procurá-lo no palácio.

— Pronto, Majestade! As tuas cavalariças acham-se mais limpas que o chão deste palácio.

Áugias ficou satisfeito, mas como um grande patife, não tinha a menor ideia de cumprir o trato.

— Sim, reconheço que o trabalho de limpeza foi realizado de maneira perfeita, apesar dos estragos que causaste em minha cidade, e pelo serviço prestado quero ter o gosto de oferecer ao amigo Héracles o teu pagamento...

E fez um sinal para os seus servos. Trouxeram-lhe um de seus belos cavalos.

— ... um excelente cavalo de sela.

— Somente um cavalo de sela?! Como assim? Nosso trato foi o pagamento da décima parte da cavalhada...!

Áugias riu-se e negou com o maior cinismo:

— Não me lembro de ter feito semelhante acordo...

Fileus, o filho de Áugias, estava presente. Era honesto, que não havia puxado o mau caráter do pai. Ao ouvir aquilo, adiantou-se, sabendo colocar-se do lado da justiça, perante os grandes do reino:

— Perdão, meu pai. Fui testemunha do trato. Meu pai prometeu a Héracles, em troca da limpeza das cavalariças, a décima parte da cavalhada.

Os juízes do palácio aplaudiram a nobreza de Fileus e o apoiaram. Começaram a vaiar e a criticar a atitude de seu rei. Áugias mordeu os lábios, danado com aquela intervenção; encarou o filho e agarrou-se a outro pretexto ainda mais intrigante.

— Sim, pode ser que eu tenha feito essa combinação. É que minha memória às vezes falha. Mas se acaso a fiz, não sou obrigado a cumpri-la, por que o senhor Héracles veio até nós por instigação do rei Euristeus de Micenas, e, portanto não me sujeito às suas sugestões. Além do mais, ele não fez o trabalho sozinho.

E, virando-se para Héracles, continuou:

— Se queres um cavalo de sela em paga do serviço, escolhe um então, ou aceita este. Se tu não queres, então te põe daqui para fora imediatamente, lacaio!

— Mas, meu pai, ele não...

— ... E tu também, Fileus! Um rapaz da tua idade, filho e herdeiro do rei, que não sabe agir politicamente, não merece consideração de seu pai. Tomai os dois vosso caminho! Para fora! E fora todos vós, traidores!

E os juízes do palácio também foram expulsos pelo rei. Héracles teve vontade de rachar o rei pelo meio, mas conteve-se quando os guardas cercaram-no, apontando-lhe as lanças.

— Isto não vai ficar assim, Áugias! Dentro de alguns dias darei a minha resposta...

Héracles, Fileus, Menêdemes e Calcódon retiraram-se da cidade. E acompanharam-nos os demais que haviam sido expulsos.

Quando Héracles foi expulso, junto com Fileus, Calcódon e Menêdemes, todos foram para a corte do rei Dexâmenos, o “recebedor”, em Ólenos, na região de Acaia. Lá, refugiaram-se e começaram a fazer planos para destronar o rei Áugias e pôr Fileus no trono. Por segurança, o jovem Fileus foi mandado para a ilha de Dulíquion, no Heptanesos, e só haveria de ser chamado quando tudo já estivesse bem encaminhado.

Em seguida, Héracles mandou arautos em busca de heróis para que fizessem parte de uma expedição contra Élis, que saíram imediatamente. Entre os que atenderam seu pedido estavam seus melhores amigos, como Télamon, Peleus, Íficles e seu filho Íolas, entre outros, e foram juntar-se a Héracles, Calcódon e Menêdemes.

Héracles havia-se apaixonado por Mnesímaca, a filha do rei de Ólenos. Entretanto, Dexâmenos sabia que o herói era casado, mas não quis ofendê-lo com recusas. Todavia, só lhe entregaria a filha depois que Héracles retornasse da expedição vitorioso. O rei, ainda por cima, tinha mais duas filhas, Terônice e Teréfone, que eram casadas com os irmãos gêmeos Moliônides, que estavam unidos a um só corpo, e que eram parentes de Áugias. Portanto, estava de mãos atadas, temia tanto a Héracles quanto a uma possível vingança por parte dos aliados da Élide.

Héracles, de Ólenos, formou um grande exército para atacar Élis e destronar o seu rei. O exército era formado de amigos mais próximos do herói e de eleanos descontentes com a tirania do rei Áugias.

O exército, apesar de toda aquela excelente organização, teve um desfalque essencial, e a luta acabou em desastre, e isso por causa dum acidente que ninguém esperava: a súbita doença de Héracles. Antes de travar-se a batalha, o herói caiu de cama com uma febre altíssima. Os sintomas eram de envenenamento. Mesmo tendo passado próximo às cavalariças, foi o suficiente para que os gases mefíticos o envenenassem. Aquela inoportuna doença de Héracles foi um desastre, porque o exército se viu privado de seu grande chefe. Mas, desrespeitando os eleanos a trégua, o exército de Héracles foi facilmente derrotado numa emboscada.

Héracles, indignado, teve de fugir e ficar oculto num bosque durante todo o tempo que estivera doente. Os deuses amigos cuidaram do herói, e uma trégua foi estabelecida, e assim se passaram doze dias. E, quando souberam os eleanos que o motivo da trégua era a súbita doença de Héracles, romperam-na, e a guerra continuou aniquiladoramente.

No décimo-terceiro dia, a febre começou a ceder. Seus companheiros leais estavam juntos dele, quando recobrou os sentidos.

— Onde estou? Que houve comigo?

— Perdemos, Héracles. O exército que organizaste contra Áugias foi destroçado. Tu ficaste doente e te ocultaste na floresta. Te encontramos aos prantos.

Héracles não conseguia se conter. Começava a compreender os efeitos de Héra sobre aquela tarefa imposta pelo rei Euristeus. Mas não se deixou derrotar: no dia seguinte, pulou da cama, já completamente curado. A reorganização do exército foi fácil e rápida. E a vitória foi ainda mais fácil e rápida, apesar de todas as suas baixas. Até mesmo Zeus, querendo medir as forças de seu filho, tomou a forma humana e lutou contra ele, e foi vencido. E o senhor do Olimpo, deixando-se reconhecer, cumprimentou-o e lhe deu a vitória. A cidade foi tomada. E, nessa última investida, Menêdemes, o rei aliado, morreu em combate e foi sepultado por Héracles no promontório de Lépreon.

O gigante Áugias, da raça dos Titãs, foi deposto e morto, com um soco de Héracles, e seu filho Fileus, vindo da ilha de Dulíquion, subiu ao trono, com a permissão do filho de Zeus.

O novo rei, Fileus, agradecido, quis entregar a Héracles o gado prometido pelo pai, mas o herói não aceitou todo ele senão apenas alguns animais como prova de seu trabalho realizado, porque havia feito a aposta com Áugias somente para testar a sua honestidade. Aceitou, também, uma faixa de terra às margens do rio Peneus para mandar construir um templo em honra de Zeus, e deu ao lugar o nome de Olímpia. Ao grande Pélops, o herói civilizador da Élide, mandou construir um altar e doze altares aos Doze Grandes Deuses do Olimpo. Em seguida, instituiu os Jogos Olímpicos, que deveriam ser realizados de quatro em quatro anos até o final dos tempos. Ele determinou que o vencedor de cada evento recebesse uma coroa de louros, que ele havia trazido um exemplar da Terra dos Hiperbóreos, em vez dos prêmios valiosos de costume, para lembrar que ele também não cobrava por seus serviços.

Como primeiro representante atleta, ninguém ousava lutar com Héracles, o que deixava os espectadores bastante desapontados, até que, por especial consideração, o próprio Zeus desceu do Olimpo e teve um espetacular combate singular com o filho Héracles. No final, houve empate, e todos os aplaudiram muito.

Segundo uma versão diferente, sustentada por Pausânias, que aprendera em Elis, o Héracles que fundou os Jogos Olímpicos não foi o filho de Zeus e Alcmena, mas uma figura anterior chamada Héracles, o Dáctilo. Nesses primeiros jogos Zeus derrotou a Cronos na luta, e Apolo venceu a Hermes na corrida e a Áres no pugilato. Cinqüenta anos depois do Dilúvio de Deucálion, um descendente de Héracles, o Dáctilo, chamado Clímenos chegou à Hélade, proveniente de Creta, sendo este o primeiro campeão dos Jogos Olímpicos de Élis. Depois, ergueu altares a seu antepassado Héracles, o Dáctilo, e aos Curetes. Veio de Cidônia para reinar e, em seguida, ser deposto por Endímion, o filho de Étlios. Provavelmente, esses jogos não foram os Olímpicos, mas os Jogos Fúnebres.

AS OLIMPÍADAS

Em homenagem aos deuses, eram realizadas competições esportivas periodicamente. Em Olímpia, onde havia templos consagrados a Zeus e a Héra, altar, tesouros, estádios para quarenta mil pessoas e um hipódromo, eram organizadas as Olimpíadas. As provas, corrida a pé, a cavalo e em carro, salto em altura, lançamento de disco, pugilato, luta livre e concursos musicais duravam uma semana. Neste período era anunciada a “trégua sagrada”, cessando as guerras entre as cidades. Os vencedores, eleitos de Zeus, recebiam coroas de oliveiras, seus nomes eram proclamados em toda a Grécia (ou Hélade) e seus feitos cantados pelos poetas.

A primeira Olimpíada foi realizada em 776 a.C.

Outras competições, de caráter religioso, eram: Jogos Píticos, realizados em Delfos, de quatro em quatro anos, em homenagem a Apolo, vencedor da serpente Píton; Jogos Ístmicos (mencionados acima), realizados em Corinto, em honra de Poseidon; Jogos Nemeus (ou Nemeanos), realizados em Neméia de dois em dois anos, em homenagem a Héracles, o vencedor do Leão de Neméia; e ainda Jogos Fúnebres, em homenagem aos heróis mortos, normalmente realizados nas tréguas das batalhas.

A Maratona, uma das provas incluídas nas Olimpíadas, foi devido a um evento clássico: o da invasão dos persas na Grécia. Durante a Primeira Guerra Médica, em 490 a.C., o poderoso exército persa, organizado primeiramente por Dario I, depois de submeter os jônios e arrasar Mileto, em 494 a.C., dirigiu-se para a Grécia em 490 a.C. Numa frota composta de 60 navios, atacou Náxos, incendiou Erétria e desembarcou na Planície de Maratona, próxima de Atenas. Filpíades (também chamado Feidípedes), enviado como mensageiro, correu até Esparta para pedir auxílio, mas não obteve sucesso; retornou e lutou ao lado dos atenienses comandados pelo grande general Milcíades. Os persas foram temporariamente vencidos, e Filpíades correu para Atenas a fim de espalhar a notícia da vitória e, ao faze-lo, desabou morto em solo ateniense. Tal proeza valeu-lhe uma bela homenagem: a prova atlética de “maratona”.

FIM


Espero que tenham gostado. Se alguém tiver material para postar e complementar, vai ajudar muito.

Mílon, o atleta de Crotona

Mílion era filho de Diótimos. Foi célebre atleta da cidade de Crotona, na Itália, que viveu no século VI a.C., na época de Pitágoras. Era extremamente forte, chegando a ser comparado com Héracles (Hércules), até mesmo na sua voracidade.

Desde cedo, foi o melhor entre os meninos da época. Na adolescência, foi sempre campeão invicto nos jogos Olímpicos. Quando adulto, tornou-se insuperável. Chegava a suportar nos ombros um touro e o levava, correndo, a uma distância de 360 metros. Depois o matava e o devorava sozinho.

Mas, achando ser invencível, não percebia que, conforme envelhecia, tornava-se cada vez mais fraco. Certa feita, ao deparar-se com um carvalho secular, que estava rachado de alto a baixo, resolveu experimentar sua força dividindo-o completamente. Mas, ao abri-lo um bom tanto, não resistiu mais e cedeu; e o tronco, com sua elasticidade natural, voltou ao ponto de origem, e suas mãos ficaram presas. Desceu a noite, vieram os lobos, e o "invencível" campeão foi devorado vivo.