São Jorge

A devoção a São Jorge é uma das mais populares no cristianismo, tanto no Ocidente (principalmente Inglaterra e Portugal) quanto no Oriente (Rússia, Armênia, Líbano etc.) e até entre muçulmanos, ao menos no passado - era identificado como al-Khadr ou al-Khidr, ao qual é dedicado uma mesquita no Domo da Rocha de Jerusalém.

É padroeiro da Inglaterra, Geórgia, Aragão, Barcelona, Moscou, Baviera, Beirute, República Tcheca, Sérvia, Lituânia e Hungria.

A lenda dele é uma das mais detalhadas e mirabolantes de todo o santoral católico.
Mas ninguém sabe exatamente quando e onde viveu, ou mesmo se viveu. A versão original da lenda diz que foi martirizado por um inexistente imperador persa chamado Dadiano (depois racionalizado como Diocleciano). Como teria surgido essa lenda, conhecida já no século V? Seria a canonização de algum deus ou herói pagão?

Até uns vinte anos atrás eu era devoto desta santo! Heróis matadores de dragões são tão universais que parece ser um caso de arquétipo (caso B) do Joseph Campbell, mas o que me chama particularmente a atenção sobre ele é que
1) havia uma versão de sua biografia creditada pela igreja católica onde Jorge da Capadócia era um militar da cavalaria romana, herói na guerra contra os persas no governo de Diocleciano, o maior fabricante de santos mártires da lista de imperadores pré-Constantino. Apesar disso foi executado por ele. Tal biografia foi desautorizada recentemente pela igreja católica que nem recomenda mais sua devoção... Sinistro!
2) Mas Edward Gibbons afirma categoricamente que Jorge da Capadócia (e da Inglaterra) foi um bispo ariano de Alexandria logo após derrubada de Atanásio, no governo de Constâncio II (logo bem depois da biografia ex-oficial), antes disso era um rico comerciante. No episcopado perseguiu pagãos e atanasianos no Egito, até que com a ascensão de Juliano foi preso e linchado, seu rival Atanásio, líder da corrente que se tornou a ortodoxa. Apesar disso, foi canonizado pela mesma ortodoxia??!

Esta biografia é a que eu conheço com a variante que antes de religioso ele tinha sido militar, e seu linchamento no reinado de Juliano tinha sido na Capadócia mesmo devido a perseguições feitas durante o governo de Constâncio II.

Pistas?

Entre os vários heróis pagãos que poderiam ter inspirado a parte fantasiosa da vida deste homem (que pode ter existido mesmo) estaria Belerofonte que enfrentou a Quimera com ajuda de Pégaso.
O nome do "santo" (George = que trabalha a terra) também pode estar relacionado a sua origem social: camponês?. O alistamento na cavalaria romana do século IV não era mais seletivo. Ele poderia ser até um bárbaro?

O curioso é que o episódio do dragão parece só ter sido acrescentado à lenda, nos textos e na iconografia, no século XII, segundo, por exemplo, a Encyclopedia Catholica.

This episode of the dragon is in fact a very late development, which cannot be traced further back than the twelfth or thirteenth century. It is found in the Golden Legend (Historia Lombardic of James de Voragine and to this circumstance it probably owes its wide diffusion. It may have been derived from an allegorization of the tyrant Diocletian or Dadianus, who is sometimes called a dragon (ho bythios drakon) in the older text, but despite the researches of Vetter (Reinbot von Durne, pp.lxxv-cix) the origin of the dragon story remains very obscure.

No início, a ênfase da lenda era bem diferente:

Delehaye rightly points out that the earliest narrative known to us, even though fragments of it may be read in a palimpsest of the fifth century, is full beyond belief of extravagances and of quite incredible marvels. Three times is George put to death-chopped into small pieces, buried deep in the earth and consumed by fire-but each time he is resuscitated by the power of God. Besides this we have dead men brought to life to be baptized, wholesale conversions, including that of "the Empress Alexandra", armies and idols destroyed instantaneously, beams of timber suddenly bursting into leaf, and finally milk flowing instead of blood from the martyr's severed head.

A origem talvez seja algum culto pré-cristão da Palestina, mas que não necessariamente envolvia a morte de um dragão:

An ancient cultus, going back to a very early epoch and connected with a definite locality, in itself constitutes a strong historical argument. Such we have in the case of St. George. The narratives of the early pilgrims, Theodosius, Antoninus, and Arculphus, from the sixth to the eighth century, all speak of Lydda or Diospolis as the seat of the veneration of St. George, and as the resting-place of his remains (Geyer, "Itinera Hierosol.", 139, 176, 288). The early date of the dedications to the saint is attested by existing inscriptions of ruined churches in Syria, Mesopotamia, and Egypt, and the church of St. George at Thessalonica is also considered by some authorities to belong to the fourth century.

Mas seria irônico se uma imagem que já vi fosse a origem, pois ali quem mata o dragão Apep é nada menos que Set, um deus maligno na fase tardia da religião egípcia.

Seth herói

Mas nesse caso de Seth protegendo a barca de Rá do boitatá egípcio, ele é herói, inclusive era esse aspecto (do guerreiro justo) do deus que faraós hicsos ou não-hicsos invocavam quando iam para guerra.
Apelidar Diocleciano, fabricante de mártires de dragão é uma boa interpretação, mas Jorge não o matou, nem dominou-o.
Quanto ao dragão, a palavra vem do grego e era usada para "cobra". No sentido de monstrão reptiforme (com ou sem asa, com ou sem patas, com ou sem fogo, benfazejo ao homem ou maligno a ele) aparece em praticamente todas as civilizações. Sua presença tão ubíqua sugere que seja um arquétipo como fala Jung, Joseph Campbell e o brasileiro Junito Brandão.

Saõ Jorge egípcio

Joseph Campbell também traça relações de Apep com a serpente do paraíso bíblico em "As máscaras de Deus", "O herói de mil faces" e "A imagem mítica".
Este autor e V. Nikiprowetzky se perguntam se Yahweh não chegou a ser representado como serpente em épocas iniciais (X aC).
Como a figura histórica do Jorge tem relação com o Egito talvez esta lenda com o dragão-Apep e Seth-Jorge tenha mesmo nascido lá.
Esta transformação de divindades pagãs em santos católicos é muito comum em outras épocas e lugares (santa Ana = deusa Dana; são Brandão = Bran, o rei semideus etc.)

Visto que os muçulmanos identificam Khidr como "sempre verde" e as primeiras versões da lenda cristã enfatizam a tríplice morte e ressurreição de George depois de vários martírios, será que George-Khidr não é, na realidade, uma canonização do deus sírio-mesopotâmico Dumuzi/Tammuz, que morria e ressuscitava a cada colheita, assim como Adônis seria sua adaptação à mitologia grega?

O dragão seria, nesse caso, um acréscimo posterior e não-essencial ao mito, a menos que seja o desenvolvimento do demônio Gallu (com forma de touro) que é o algoz de Tammuz no mito acadiano e o leva ao submundo dos mortos.

Em tempo

No sincretismo religioso das religiões afro-brasileiras com a católica, ocorreu a "fusão" da imagem de São Jorge com os orixás Ogum e Oxossi - Variando conforme a região do Brasil.
Por isso esse santo é muito cultuado por umbandistas e pelas diversas vertentes - nações - do Candomblé.

Isso causa confusão e algumas pessoas acreditam que São Jorge não é reconhecido pela Igreja Católica.

Mas, ele é sim reconhecido pelo catolicismo. Tanto que na data de 23 de abril ocorrem missas católicas por todo o país e também em Portugal (país do qual esse santo é o padroeiro).

São Jorge ou Jorge da Capadócia

São Jorge na verdade foi Jorge da Capadócia, que sucedeu a São Atanásio como Bispo de Alexandria. Subiu ao poder por força das Legiões do Egito (Sebastião, Conde do Egito, foi nomeado pelo Imperador exclusivamente para exercer esta importante tarefa - colocar Jorge da Capadócia no trono de Alexandria). No emprego e na obtenção do poder, o tirano Jorge - defensor da doutrina ariana - desconsiderou todas as leis da religião, da justiça e da clemência e as cenas de violência viraram rotina em mais de noventa cidades episcopais do Egito.

Antes de se tornar bispo de Alexandria e ter revelado repentina lealdade à causa ariana, Jorge da Capadócia acumulara uma grande fortuna como fornecedor de toucinho ao exercito romano. Quando o Imperador Constâncio (filho do grande Constantino), expulsou São Atanásio do seu trono eclesiástico em Alexandria, Jorge da Capadócia foi nele colocado como seu sucessor ariano. Ele era qualificado, por sua índole e educação, para o exercício das artes da perseguição. Ele oprimiu com mão imparcial todas as facções alexandrinas, adquiriu o monopólio de atividades como o comércio de sal, papel e funerais e PILHOU COM FREQUÊNCIA OS RICOS TEMPLOS PAGÃOS DA CIDADE.

Quando JULIANO - o último Imperador pagão - subiu ao poder, Jorge da Capadócia foi primeiramente metido na prisão e mais tarde morto por uma turba de pagãos ultrajados. Entretanto, depois da sua morte, os cristãos ortodoxos e arianos o adoraram igualmente como santo, mártir e herói, sua fama se espalhou por toda a Europa durante o período das cruzadas, devido ao contato dos cruzados com os santos dos cristãos ortodoxos, e foi ele quem eventualmente se transformou, pela ação dos séculos, na resplandescente figura de São Jorge.

Referência:

Esta é uma a versão sobre São Jorge, com base em: Declínio e Queda do Império Romano de Edward Gibbon.

A Igreja Católica não tem Jorge com um de seus santos não. Por vezes ela até retirou o culto a ele completamente e por outras, como agora, tolera.

Ele é canônico do cristianismo ortodoxo e cultuado de tabela pela cristianismo romano nos dias de hoje. Faz parte do calendário, mas não esta no rol de santificados do vaticano. Ele foi adotado...

Esta versão do Gibbon tem controvérsias. Parece que ele misturou dois Jorges da Capadócia. Hoje o que mais se entende pelo Jorge histórico é que não era o mesmo que foi bispo de Alexandria. No entanto a figura do santo pode ter surgido da união das duas figuras e da lenda em torno de tudo isso, pois a igreja nunca achou nada que pudesse respaldar a existência de Jorge e seus feitos. Como disse, ele segue sendo uma grande controvérsia na própria Igreja.

Jorge é representado matando um dragão, é o bem contra o mal. No caso o dragão representa o paganismo, conforme os "analistas"...

O mais intrigante é ver as religiões afro (de culto pagão) cultuando um santo que como homem foi um perseguidor e assassino destas belas culturas. Seja como bispo de Alexandria ou na outra corrente general de legião...

A relação de Jorge com a Igreja é estranha. Ele está lá na página do Vaticano, mas não é um santo da Igreja Romana, apesar de ser santo. Ele, por regra, não poderia receber uma missa, mas elas são celebradas e parece que tudo é tolerado...

Enfim...

E além disso, se bem me lembro, do séc VI até o séc XI, durante as cruzadas foi que o culto deixou de ser oriental ortodoxo e passou a ser conhecido e disseminado no ocidente.

Creio que nunca houve nada da parte católica na oficialização do culto a esse Jorge, bem pelo contrário.

Eu acredito que São Jorge seja na verdade a forma cristã de Sigurd, personagem da mitologia nórdica. Era comum a igreja católica santificar alguns personagens das religiões pagãs e demonizar outros, para tentar facilitar a conversão dos povos bárbaros. Tanto São Jorge quanto Sigurd são guerreiros que são encarregados de matar um Dragão (Fafnir no caso de Sigurd e talvez Lúcifer ou outro demônio no caso de São Jorge), esse ponto em comum me faz supor isso.

No livro "Declínio e queda do Império Romano", de E. Gibbon, é colocado que Jorge da Capadócia foi um comerciante inescrupoloso colocado por Constâncio no patriarcado de Alexandria por conta de sua adesão ao arianismo.

E também que, com a ascensão de Juliano, uma turba de pagãos o arrancou da prisão e massacrou em público, por causa de suas explorações, e que por isso, tanto arianos quanto cristãos católicos o tornaram santo, e seria o mesmo São Jorge da Rússia e da Inglaterra.

Mas a lenda que existe sobre São Jorge é que foi um soldado romano da época de Diocleciano (portanto, 60 anos antes de Juliano), mas também da Capadócia, que foi supliciado por se negar a deixar a religião cristã.

Atualmente, São Jorge não é mais santo na Igreja católica, mas foi mantido na Igreja ortodoxa.

Nessa associação com Alexandria, teria errado o livro de Gibbon?

Parece que errou sim. Sou fã de Gibbon, mas já li que nisso ele se deixou levar por uma série de coincidências até de nomes entre a vida do (talvez mítico) Jorge que seria santo, e o (bem real) bispo ariano que rapou o povo com impostos e foi (talvez merecidamente) transformado por eles em churrasco.

Bom achar outro leitor do Edward. Você o lê há muito tempo?

Atualmente, São Jorge não é mais santo na Igreja católica, mas foi mantido na Igreja ortodoxa.

Isso não procede. A celebração de São Jorge foi considerada opcional no calendário litúrgico pela Igreja Católica, uma reforma do Papa Paulo VI, que retirou as datas comemorativas aos santos cujas histórias não possuem documentação, apenas relatos tradicionais. Mas seu culto católico é reconhecido.

Eu vi essa informação em um site. Mas confio mais em você.
E, para alegria da torcida corinthiana, São Jorge continua aí.

A propósito, sendo o santo (o lendário) um soldado romano da época de Diocleciano, onde entra o dragão na história? E por que na lua?

O dragão é personagem de uma das lendas que cercam a figura de São Jorge. Diz-se que em algum lugar no oriente havia um dragão a quem era periodicamente sacrificadas jovens a fim de que o monstro não destruísse a cidade. Certo dia, a vítima foi escolhida na pessoa da filha do rei e Jorge da Capadócia, passando por ali, salvou a princesa e afirmou que Cristo o enviara ali para vencer o dragão e assim eles foram batizados.

Simbolicamente, o dragão (a idolatria) foi vencido pelas armas de Jorge (a Fé), salvando-se, assim, a donzela (as províncias livres do paganismo e/ou das heresias). E, a partir disso, a lembrança do feito estaria estampada nas manchas da lua, sob a forma da imagem do santo brandindo sua espada.

Tenho a impressão de que a maioria dos santos cristãos de história mal conhecida, reais ou imaginários (alguns parecem ser adaptações de antigos deuses pagãos locais), foram interpretados a posteriori como mártires de Diocleciano e a imaginação popular mórbida acrescentou à sua história detalhes sádicos sobre seu martírio e execução, dando a impressão de que a perseguição foi muito maior e mais terrível do que foi na realidade.

Um exemplo é a história de São Jorge. Nas versões mais antigas da lenda seu algoz era um inexistente imperador persa chamado Dadiano, que depois foi racionalizado como Diocleciano. O santo teria sido morto três vezes - da primeira vez, picado em pedaços pequenos, da segunda, enterrado no fundo da terra, na terceira, consumido pelo fogo - e a cada vez foi ressuscitado pelo poder de Deus. A lenda fala de mortos trazidos de volta à vida para serem batizados, conversões em massa, exércitos e ídolos destruídos instantaneamente, vigas de madeira das quais ramos e folhas brotam de súbito e, finalmente, leite que flui, em vez de sangue, da cabeça do mártir por fim degolado. Para não falar do dragão...

Na versão moderna da lenda, ele tornou-se ''comes'' aos 23 anos, mas rebelou-se contra Diocleciano quando este decidiu eliminar os cristãos: levantou-se no meio da reunião do Senado para afirmar que os os ídolos adorados nos templos pagãos eram falsos deuses e defender a fé em Cristo.

O Imperador tentou fazê-lo desistir da fé torturando-o de vários modos, inclusive lacerando-o com uma roda de espadas. Após cada tortura, era levado perante o imperador, que lhe perguntava se renegaria a Jesus e ele sempre recusava. Finalmente, Diocleciano teria mandado degolar o jovem, mas seu sofrimento teria convertido a Imperatriz Alexandra, esposa de Diocleciano, e o sacerdote pagão Atanásio, que a ele se juntaram no martírio e foram também canonizados.

Acontece que, historicamente, a esposa de Diocleciano chamava-se Prisca e era cristã, mas conformou-se a sacrificar aos ídolos quando o marido exigiu, durante as grandes perseguições de 303. Ficou viúva em 305, mas foi protegida pelo genro e sucessor, Imperador Galério, até a morte deste, por doença, em 311.

Exilada na Síria pelo Imperador Maximino, Prisca foi decapitada em 315 por ordem do Imperador Licínio, à época aliado e co-imperador do Imperador Constantino e co-signatário do Édito de Milão, que deu liberdade de culto aos cristãos (embora, em 320, prestes a romper com Constantino, Licínio tenha tomado medidas repressivas contra o cristianismo).

Quanto a São Atanásio, era um bispo cristão partidário da ortodoxia nicena, que, justamente, teve como inimigo um herege ariano chamado Jorge de Capadócia, que durante certo tempo lhe tomou a sé de Alexandria.

Sr. Diniz, a lenda de São Jorge antiga, onde a encontrou?
É dito que essa versão foi considerada apócrifa pelo papa Gelasio em 494 d.C. e que foi escrita por Pasícrates, amigo do santo. Procurei tal versão sem êxito.

Com certeza muitos santos foram inventados pela Icar pra substituir deusas pagãs.

Essa coisa de morrer trocentas vezes parece com o Dionísio Zagreu.

Help Diniz
mas seu sofrimento teria convertido a Imperatriz Alexandra, esposa de Diocleciano, e o sacerdote pagão Atanásio, que a ele se juntaram no martírio

Que rolo!
Prisca historica poderia ter mudado de nome pra Alexandra ao se converter cristã?

Jorge da Capadocia, bispo arriano de Alexandria, rival de Atanasio (o grande defensor do credo niceano antiarriano ao extremo) é historico, mas ele seria então o São Jorge? Mas foi o atanasianismo que se tornou a ortodoxia católica final, não?

E o Sebastion, militar renomado no Egito, magister infantum de Valente que morre em Adrianopolis, 378 é o São Sebastião?

O Atanasio histórico foi sacerdote de deus greco-romano antes de ser cristão?