A Canção dos Nibelungos

O ciclo épico formado em torno de Siegfried, de Brunhild e dos Nibelungos é o fruto da longa elaboração de diferentes lendas pela consciência poética dos povos germânicos.
Pela sua profundidade, pela variedade e complexidade dos temas, das figuras e dos episódios, pode ser considerado como o grande mito nacional onde se afirma e se exalta a intuição da vida e do mundo própria ao paganismo germânico: é o sentido de um destino inelutável que desde a aurora dos tempos pesa sobre o mundo e cuja tragédia está na impossibilidade de ultrapassar valores opostos e leis contraditórias.

Os Borgúndios, na Zona do Elba, já estavam convertidos ao arianismo. Em 413, recebendo o título de "federados" se estabeleceram na margem esquerda do Reno, formando lá um reino. Em 436, no entanto, foram derrotados pelo general romano Aécio, que havia sido criado na corte huna onde havia sido mantido refém, graças ao seu exército composto por soldados hunos.
Veio daí a epopéia A CANÇÃO DOS NIBELUNGOS, com a sua versão germânica e nórdica (os Nibelungos são os Borgúndios).

Os Borgúndios, que anteriormente sempre tinham sido auxiliares dos Romanos, dessa vez, ao serem derrotados, foram deslocados por Aécio para a Suíça romana e para o Jura do Sul. O reino borgúndio, no vale do Ródano, teve o seu fim quando foram derrotados e anexados em duas campanhas, em 523 e 526, pelos francos.

As coincidências entre os mitos

Um dos traços que mais me chama a atenção na Canção dos Nibelungos é a semelhança entre Siegfried e Aquiles no que diz respeito a sua invulnerabilidade e no modo como a conquistam. Siegfried se banha no sangue do dragão exceto pela parte em suas costas onde pousa uma folha de tília, parte esta que se torna seu único ponto fraco do mesmo modo que Aquiles é mergulhado por sua mãe nas águas do Estige, tornando-se seu único ponto fraco o calcanhar, por onde ela o segurava e que, assim, jamais entrou em contato com o rio. As mitologias estão repletas desses pontos de contato, dessas pequenas grandes coincidências, que se explicam pelo fato de surgirem espontanemente no seio dos povos que, em sua essência, são iguais em qualquer lugar do mundo, enquanto humanos, com as mesmas dúvidas, medos e anseios. Talvez seja por isso que se torne muito mais fácil se identificar com os antigos mitos gregos, romanos, nórdicos, ou mesmo os orientais, do que com a imposta ideologia cristã... Hail Siegfried!

Claro que a cristandade tem os seus grandes heróis, matadores de dragões, valorosos desde o citado Miguel Arcanjo (embora aqui o dragão seja mais simbólico do que outra coisa), passando pela Távola Redonda e pela corte de Carlos Magno. Meu ponto, entretanto, é outro, e diz respeito à diferença entre a gênese dos mitos em sociedades pagãs politeístas e em sociedades cristãs. Creio que a imperfeição dos deuses pagãos, que em suas índoles contavam com todos os sentimentos humanos, como amor, ódio, desejo, cobiça, inveja e ciúmes, seja um traço que ajudasse a "aproximar" essas divindades das sociedades que as adotavam, fazendo que fosse mais fácil para as pessoas compreenderem a natureza divina, uma vez que ela era muito semelhante a sua própria. Compreendendo melhor os seus deuses, creio que essas civilizações se sentissem mais autorizadas a criarem seus mitos a partir deles, o que os tornam retratos muito ricos e fiéis da visão de mundo desses povos. Já na tradição cristã, a partir do advento de Jesus, todos os traços de humanidade que estavam tão presentes no deus do Velho Testamento, dão lugar a um ser perfeito, infinito em bondade, compaixão e justiça, o que o afasta completamente do humano e o coloca em uma posição de estranheza. Incapazes de reconhecerem a si mesmas em sua divindade, as civilizações cristãs se tornam igualmente incapazes de criar novos mitos a partir dela, até porque o mais básico de seus símbolos, a Bíblia, é um código fechado, inquestionável e inalterável, uma vez que divinamente inspirado.

Assim, enquanto a mitologia pagã me parece surgir "do" povo a cristã trilha o caminho contrário, sendo imposta "ao" povo. Por isso vejo as codificações de narrativas orais como a Ilíada, a Odisséia, a Eneida, a Canção dos Nibelungos e outras tantas, como retratos mais fiéis das sociedades que as conceberam do que a tradição escrita da cristandade... E se for analisar bem, será fácil perceber que, mesmo nas histórias de cavalaria, cristãs por excelência, o elemento do paganismo ainda é muito presente, mesmo que um tanto mascarado, naqueles tempos em que o cristianismo ainda estava por se firmar como a religião que teria sob sua tutela grande parte do destino da Europa ao longo da Idade Média e da Renascença... Mas isso já é outra história, a ser discutida, de preferência, com uma garrafa de vinho.

Talvez eu tenha sido infeliz ao empregar a expressão "imposta" e tenha dado a impressão de estar emitindo algum juízo de valor a respeito do cristianismo enquanto religião, o tratando de uma forma pejorativa. Por outro lado, posso ter dado a entender que o sentimento de familiaridade entre humano e divino, que reivindico para as tradições pagãs, venha diminuir a consciência do sagrado e do transcendente para aqueles povos. Vos asseguro que não foi minha intenção dizer nem uma coisa, muito menos a outra.

Na verdade, eu quis apenas chamar a atenção para o fato de que, por conta desse sentimento de maior identificação entre os pagãos e suas divindades, eles tornar-se-iam mais livres para conviver com elas fora da esfera religiosa, tendo sido numerosas as obras de caráter profano - não sagrado - onde os deuses de seus panteões atuam como personagens chave para o desenrolar das ações, como ao longo de todo o teatro grego, por exemplo. Claro que o elemento divino também é uma parte central em algumas das obras laicas produzidas pela cristandade, porém, além de constituírem um número expressivamente menor, essa relação entre a esfera celeste e a terrestre se dá de uma forma bastante diversa.

É somente por isso que trago a ideia de que as narrativas pagãs me parecem uma fonte muito mais fidedigna para investigarmos como as civilizações se relacionavam com suas divindades do que as cristãs que, pelo distanciamento entre a índole mortal e divina, acaba por me parecer sempre um tanto receosa em manter registros dessa relação.

De qualquer forma, é só uma idéia que me ocorreu...

Os nibelungos de Fritz Lang

Em O Desprezo, de Jean-Luc Godard, Fritz Lang repete incessantemente a Michel Piccoli que a morte nunca é uma solução, nos diálogos em que se discute sobre a possibilidade de Ulisses, ao retornar da Guerra de Tróia para Ítaca, não ser mais amado por sua esposa Penélope. As palavras ditas por Lang quase quarenta anos à frente ecoam sobremaneira no dístico Os Nibelungos, que compreende A Morte de Siegfried e A Vingança de Kriemhild (que duram, respectivamente, 141 e 147 minutos, e não os 120 minutos que informam os DVDs da Continental/Magnus Opus): através do mito fundador do povo germânico, o cineasta expõe a inutilidade e a loucura da morte, seja esta justificada pela honra, pela dor ou pela paixão, com o extermínio sistemático promovido por Kriemhild, então rainha dos hunos, contra seus próprios irmãos nibelungos para vingar o assassinato de Siegfried. O sangue que atrai apenas mais sangue, a matança desnecessária que existe para satisfazer a si própria.

Lang dedica Os Nibelungos ao povo alemão, pois, de fato, trata-se da lenda que dá origem e molda a identidade nacional germânica. Na Europa, durante a queda do Império Romano do Ocidente, o herói Siegfried (Paul Richter), após matar o dragão e se banhar em seu sangue, dirige-se para a corte de Worns a fim de conquistar a princesa Kriemhild (Margarete Schön). Ao ajudá-lo a se casar com a valquíria Brunhild (Hanna Ralph), Siegfried torna-se irmão de sangue do rei Gunther (Theodor Loos), e recebe como prêmio a mão de Kriemhild. No entanto, as intrigas de Brunhild – que acusa o herói de tê-la violentado – levam o monarca e o fiel soldado Hagen Tronje (Hans Adalbert Schlettow) a assassinarem Siegfried. Tomada pelo ódio, Kriemhild casa-se com Átila para vingar a morte do primeiro marido: com o intuito de conseguir a cabeça de Tronje, porém, ela aniquila todos os nibelungos, feitos reféns no palácio do líder dos hunos.

Além de embasar todas as sagas pós-modernas que exploram a temática mitológica / fantástica – O Senhor dos Anéis e Harry Potter na dianteira –, Os Nibelungos renderam a magnífica tetralogia operística de Richard Wagner, a saber, O Ouro do Reno, As Valquírias, Siegfried e Crepúsculo dos Deuses. Ao contrário das óperas, Fritz Lang passa rapidamente pelos episódios da descoberta do tesouro dos nibelungos por Siegfried e da subjugação de Brunhild pelo herói a fim de se centrar na (falta de) moralidade que marca as ações desencadeadas por Kriemhild em represália ao assassinato do amado. Está em jogo, para o diretor, a incapacidade do homem em lidar com suas próprias emoções primárias: o amor que se transforma em ódio, levando à decadência individual e social, bem como à destruição da natureza (seja ela criada por Deus ou edificada pelo trabalho humano), tragada pelo caos, enquanto espaço idealizado de ordem e de harmonia terrenas.

Tanto A Morte de Siegfried quanto A Vingança de Kriemhild se estruturam sob o modelo de cantos, ou seja, de blocos narrativos em que, por intermédio dos enunciados temáticos que os precedem, reforçam o colorido épico e lendário da saga dos nibelungos. Todavia, na construção da derrocada moral de Kriemhild e, em consequência, de toda a humanidade, Fritz Lang se utiliza de relações diferentes, senão opostas, entre os personagens e os espaços quanto à distribuição de ambos os elementos pelo quadro. Dessa maneira, se em A Morte de Siegfried predomina a arquitetura clara e harmoniosa dos ambientes, os quais se dispõem na tela em linhas verticais, horizontais, diagonais, e, sobretudo, circulares (inclusive através dos fades in e out) – o círculo é considerado, desde a Grécia Clássica, a forma perfeita que somente o homem pode traçar, uma vez que se encontra associada à Razão e às Ideias de Beleza e de Verdade – contra fundos vazios e iluminados, onde os atores principais interagem esparsamente entre si, em A Vingança de Kriemhild impera a confusão espacial e visual, o grafismo caótico em que multidões se digladiam em cenários onde não importam as linhas constitutivas, mas antes as texturas de que são feitos, para, ao estabelecer a fisicalidade e a sanguinolência dos corpos no combate inútil, intensificar a trágica barbárie de que os homens são, ao mesmo tempo, vítimas e responsáveis.

Do idílio terrestre à violência gratuita, Fritz Lang percorre, de A Morte de Siegfried até A Vingança de Kriemhild, o tortuoso caminho das pulsões básicas do homem que, quando se aliam a estruturas de poder e, dessa feita, encontram o veículo necessário para serem divulgadas em massa, conduzem ao mal-estar coletivo e ao fim da civilização, entendida como sistema organizado de valores éticos e morais.

Edições brasileiras

Recomendo a edição da Martins Fontes, Coleção Gandhara... excelente!!!

Que tragédia é o final desse livro, não? Quase todos perdem suas vidas, inclusive o irmão querido de Kriemhild, tudo por causa do sentimento vingativo dela, aliás, ela mesmo é eliminada por ter causado toda essa desorganização.

Mas ela fez o que fez por causa do assassinato do seu esposo Siegfried, né???

É engraçado que eu odiei o Hagen o livro todo, mas quando chega no final ele e o Volker matando todo mundo eu virei fã dele!
heheh

Batalha épica!

Por fim eu queria só comentar que achei a batalha no final do livro uma das melhores já retratadas pela literatura!
Não houve pra mim até hoje melhor retratação do fulgor da guerra e da luta, principalmente porque trata-se de uma tragédia.

O anel dos Nibelungos e o Kalevala

Oi! alguém pode contar mais detalhes sobre a lenda do anel dos anões nibelungos e a pouco comentada história do Kalevala (vi um micro comentário em uma revista de História). Bom, o que eu peço em relação à história do anel é algo mais aprofundado, pois eu sei que é dividido em vários contos (O ouro do Reno, Siegfried, As Valquírias,...não sei se Tannhaüser faz parte dessa lenda).

Você está se referindo ao ciclo de óperas de Wagner O Anel dos Nibelungos. É composto por quatro óperas: O Ouro do Reno, As Walquírias, Siegfried e O Crepúsculo dos Deuses. São baseadas principalmente no prose Edda e na Nibelungenlied. Tannhäuser é outra ópera, também baseada numa lenda Medieval Alemã, mas não está ligada à Mitologia Nórdica. Trata da oposição entre a sociedade cristã da época e resquícios de Cultos Pagãos representados pela Deusa Vênus. Kalevala é um épico Finlandês, também não faz parte da Mitologia Nórdica.

Sei que pediu 'mais detalhes', mas não livros, mas se tiver interessada, para o 'anel dos nibelungos' tem dois livros lançados no Brasil, um pela Martins Fontes (Canção dos Nibelungos) e outro lançado pela editora Hedra (Saga Islandesas / A saga dos Volsungos).

Kalevala também tem, mas só tem a primeira parte, pela editora Atelie Editorial (Kalevala Poema Primeiro). Se quiser completo, só em inglês, espanhol... ou até português, mas terá que comprar a edição portuguesa.

Sou fascinado pela grande trilogia com um prólogo formada pelas óperas Ouro do Reno, A Valquíria, Siegfried, Crepúsculo dos Deuses do grande Richard Wagner, autor não só da grandiosa música mas também dos profundos libretos com seus versos curtos. Para compo-la Wagner acorreu ao livro denominado "Canção dos Nibelungos" de autor anônimo do séc XIII mais ou menos usando também sua próprias convicçôes filosóficas que eram muito fortes. Esse grande trabalho influenciou todos os grandes filmes voltados a magia ao poder e maldição de um determinado objeto, como exemplo temos o Senhor dos Anéis. Na realidade, nesse particular, a obra wagneriana influenciou o autor do livro, o famoso Tolkien. Além de ter influenciado todo o teatro a nível mundial.

Observação:

O correto é o Anel do nibelungo no singular pois se refere a apenas um dos anões, Alberich, o anel é dele e não dos outros nibelungos. E quando digo trilogia com um prólogo eu me refiro ao Ouro do Reno que é o prólogo e as restantes óperas formam a trilogia. São informações que ouvi de muitos especialistas em Wagner.

Der Ring des Nibelungen é em Genitiv, que para estudantes da língua alemã caracteriza posse, o "en" do final caracteriza plural normalmente, porém, o "n" faz-se necessário em conjunto com o "es" que caracteriza o tempo verbal, portanto a tradução correta é sim, O Anel do Nibelungo. E mais, essa ópera é simplesmente suprema.

Para ser "dos Nibelungos", o nome original deveria ser "Der Ring DER Nibelungen", o que não é o caso.

Só botando uma terceira opinião...

As óperas de Wagner, com certeza belíssimas, foram realmente inspiradas pelo mito dos nibelungos e tal, porém não creio que ele tenha buscado inspiração na Canção dos Nibelungos, pois esse livro dá pouco enfoque no tesouro guardado por Alberich, sendo mais voltado para os feitos de Siegfried após a conquista do tesouro, e então a vingança realizada por Kriemhild contra aqueles que traíram e assassinaram seu esposo (Siegfried)! Acredito que as influências de Wagner para compor a trilogia ou tetralogia, foram encontradas na Volsunga Saga, que já aborda mais o tema do Anel e do tesouro dos Nibelungos! Essa é minha humilde opinião.

Gente, alguém já viu o filme do Anel dos Nibelungos? Eu não sei se ele é bom ou não, não conheço a versão, mas ao que parece é legal. Ainda mais o dragão Fafnir.