Mitologias Antigas

A respeito das cabeças de Janus, uma delas está voltada para o passado, e a outra está voltada para o futuro. E já li também que o seu templo em Roma ficava aberto em tempos de guerra e fechado em tempos de paz.

Prezado Galego.

Concordo com você e digo mais: as práticas e as representações religiosas em Roma são um baita de um abacaxi para quem deseja estudá-las. São diversas formas de cultos, divindades, símbolos e afins próprios oriundos da península Itálica ou não que, em Roma, foram reinterpretados e resignificados. Em suma, essa miríade religiosa é um reflexo magnífico da hibridismo cultural romano. E, naturalmente, um tormento para quem o estuda (risos).

Eu li na Wikipédia uma referência à divindade etrusca Ani. Contudo, como eu tenho os dois pés atrás com a Wikipédia, até eu não ler uma fonte mais confiável, não vou ter muito certeza disso. Eu tenho em casa um manual chamado "Roma e os romanos" (Henri Bornecque & Daniel Mornet). Em sua seção referente à religião em Roma, não há ligações entre Jano e alguma divindade etrusca. Caso você tenha uma indicação melhor que a Wikipédia, por favor, dê-me um toque.

Em quase todos os sites que encontrei e nos livros que tenho em casa, Janus ou Jano é chamado o guardião das portas das casas... Será que é uma teoria falsa?

Prezado Galego.

Seria imprudente da minha parte afirmar se a representação que liga Jano às "portas" seja falsa ou não. Talvez, creio eu, essa relação ocorra a partir do significado da palavra latina ianua. Bom... vou parar por aqui, pois já está entrando no meu campo de ignorância. De qualquer forma, muito obrigado pelas suas postagens sobre Jano.

Saudações e até mais.

Mitologia grega e a Bíblia

Não achei um tópico similar que tratasse do assunto mais profundamente. Quais os fatos hipotéticos da Bíblia que se relacionam a mitologia grega? A história de Adão e Eva está muito próxima do mito de Deucalião e Pirra? E o dilúvio teria relação com o mesmo mito? O Sansão bíblico seria baseado no Hércules grego? E tantos outras similaridades. Até onde isso teria sentido?

O Paraíso, o Inferno e o Limbo tem correspondência no conceito grego de Eliseo, Hades e Tártaro?

O conceito do Hades (Haídes) no Novo Testamento, simboliza a sepultura comum da humanidade. É o mesmo que Seol (palavra hebraica com o mesmo sentido), em contraste com a Geena (Ge-hínom) ou vale do Hínom, local de Jerusalém onde os cadáveres dos criminosos e "condenados pela fé" eram cremados, e também o depósito de lixo da cidade. A palavra Seol (hebraica) ou Hades (grega) tem o mesmo significado de Inferno (Infernus, no latim).

Só pra complementar:

A palavra Seol, Hades ou Inferno simboliza a sepultura comum da humanidade, ou simplesmente a morte propriamente dita.

Prefiro geopolítica grega ao invés da mitologia, também retratada na Bíblia em Macabeus I e II.

Ali, os conflitos dos Selêucidas tentando helenizar os judeus estão descritos em detalhes e na versão judaica.

Parte mais interessante do Velho Testamento, a meu ver.

Amon ou Amons

O Baal (senhor) Amon (deus máximo de Tiro), Amon (deus máximo de Tebas/Uaset, mais tarde fundido a Rá) e o nome dos amonitas (povo da Transjordânia bíblica) tem alguma relação? A existência histórica dos amonitas atualmente se resume aos relatos da Torá e e uma estela de um rei Mesha?

Amon também não era deus máximo de alguma outra grande cidade da Fenícia (a Original, no atual Líbano, não as cidades do atual Magreb), Sidon? Biblos? Beritu?
E quanto aos amonitas existem mais evidências deles ou seria daqueles povos que só se acha na Bíblia?

Alguns estudiosos dizem que o culto ao deus máximo de Tebas nascera mais ao sul (Kush?). Porém, lendo a bíblia a coisa do Amon surgiu de novo. Lot, sobrinho de Abraão, foi o pai de Ben Amin, o qual gerou os amonitas.
Só que Ben Ami significa filho do Ami. Além disso as palavras hebraica Lot e egipcia Amon se traduzem como "escondido, oculto". O que faz sentido , o Escondido teve um filho (filho do escondido) e este gerou os amonitas.
Como as vogais não são escritas nos hieróglifos, não há certeza atual na língua faraonica morta (tudo bem existe o copta que pode ser similar) sobre como AMN soava. Já vi textos transliterando pra Amon, Amen, Amun.
Além disso, um cronista hebreu da Bíblia podia escutar a palavra egípcia e tentar reproduzir sem o sotaque perfeito, enfiando vogais erradas.
Portanto pode haver ligação entre o deus tebano e o povo chamado de amonita?
Outro dado é o incesto que origina os amonitas, como se Lot fosse um dinasta ao estilo egípcio.

Sucessão de deuses na mesma mitologia

Antes de mais nada não sou fã de Erik von Danicken!!!!!
Mas há um tema recorrente, onde o deus hegemônico vira um deus aposentado.

Sul-mesopotâmicos: Anu cede o poder do universo a Enlil e este a Bel-Marduk.
Cananeus (de Ugarit, pelo menos): El-Mot (ou Dagon) - Baal
Egípcios: Atum-Geb-Osíris-Set-Hórus ou "menos mitologicamente" Hórus-Rá-Amon-Aton-Amon.
Gregos: Urano-Krono-Zeus
Nauatl: Quetzalcoatl-Tezcatlipoca

O que está por trás disso?
A) Algum simbolismo filosófico (ciclos ou progressos universais, nada é eterno, ou pelo menos nenhuma aparência é eterna)?
B) Algo mais concreto como o progressivo poder dos humanos sobre a natureza (os primeiros deuses parecem mais forças naturais e os últimos mais antropomorfizados)?
C) Ou mudanças políticas onde NOVAS FORÇAS assumiam e não poderiam descartar os deuses das PODERES DOMINADOS (ainda importantes), ou elas os adotavam por reconhecê-los como deuses mais poderosos ou mais responsivos, ou para justificar próprio domínio delas sobre aqueles?

Acho que não dá para generalizar, cada caso é um caso. Em alguns casos, o deus "aposentado" é um deus que pode ter sido imaginado a posteriori para explicar filosoficamente a criação, mas que deixou o "trabalho" de rotina para demiurgos mais próximos das necessidades humanas, como me parece ser o caso da mitologia iorubá do Candomblé (Olorum criou o Universo, mas deixou o homem a cargo de Oxalá).

Em outros casos, a sucessão de deuses pode expressar a vitória de um povo que o tinha como padroeiro sobre outro mais antigo. Pode ser o caso de Bel-Marduk e também de Tezcatlipoca e Huitzipolchotli que, como deuses dos astecas, relegaram a segundo plano o deus Quetzalcoatl, herdado dos antigos toltecas.

Em outros ainda, pode expressar uma evolução de concepções teológicas, ou a predominância de uma escola de sacerdotes sobre outra, ou de uma cidade e seus templos sobre outra da mesma cultura. Deve ser o caso da sucessão de deuses egípcios: deuses adorados em Mênfis foram sucedidos por deuses preferidos pelos hicsos, depois por deuses de Tebas, depois por deuses favoritos do povo do Delta. Também é o caso dos hindus, quando Visnu derrota Shiva ou Shiva vence Visnu, dependendo da seita que se segue (e antes vinham Indra e Brama).

Em outros casos, ainda, os deuses "aposentados" podem ter sido vilões inventados a posteriori para exaltar o poder e a grandeza dos deuses mais sábios e humanos que os venceram, como talvez tenha sido o caso dos Titãs gregos (Cronos).

Isso está na wikipedia em inglês, mas não faz muito sentido. Horus era um deus originário do Delta, do Baixo Egito e este foi conquistado pelo Alto Egito, onde o culto de Set tem sua origem (na cidade de Nubt ou Ombos). Set foi padroeiro de pelo menos um faraó da segunda dinastia e da maioria dos faraós hicsos.

E a ênfase no mito da luta entre Hórus e Set, com a "demonização" do segundo, só passou ao primeiro plano da mitologia no Egito tardio, milênios depois da unificação. No Antigo Reino, Set fazia parte da Enéada dos deuses supremos, em pé de igualdade com Ísis e Osíris e não era visto como maléfico.

Como indicava o próprio nome (filho de Ra), o padroeiro de Ramsés II e de seu avô Ramsés I era Ra, outra forma de Horus. Mas o pai de Ramses II era Seti I (homem de Set), o que indica que não havia conflito insolúvel ou incompatibilidade entre os dois deuses nessa dinastia. Ramses I era originário do Delta, mas o culto de Set já havia se espalhado para além de seu centro original, tanto que era padroeiro dos hicsos, que nunca governaram a maior parte do Alto Egito.

Sobre a origem de Set no Alto Egito, veja, por exemplo:

http://www.ancientegyptonline.co.uk/
The earliest representation of Set is that on a carved ivory comb from the Amratian period (Naqada I, 4500BC - 35BC, orthodox dates) and he also appears on the famous Scorpion mace head. His worship seems to have originated in one of the most ancient settlements in the town of Nubt (Kom Ombo), in upper (southern) Egypt. Nubt (near modern Tukh) lies near the entrance to the Wadi Hammammat, the doorway to the eastern desert and its gold deposits, and the city took its name from the word for gold, Nbt (which also means ruler or lord). As a result Set was sometime called ‘He of gold town’. Nubt was the most important of the ancient settlements, and was located close to the site of the Naqqada settlement from which this early culture takes it name. Pre-dynastic worship of Seth was also evident in the 11th and 19th Nomes of southern Egypt.

Vale notar, nesse mesmo site, a escultura que representa um faraó sendo abençoado, simultaneamente, por Horus e Set e, mais abaixo, a imagem de um deus de duas cabeças, que representa a fusão de Horus e Set. De fato, os dois representam, em certo sentido, a união entre o Baixo e o Alto Egito, mas não me parece fazer muito sentido dizer que a vitória mítica de Horus, o deus do Baixo Egito representa a vitória histórica do Alto Egito, que adorava Set.

Deuses derrotando deuses

Mudando de região, o mito de Marduk rezava que o deus babilônico havia vencido o dragão Tiamat (que era uma personagem feminina) em uma guerra no princípio dos tempos. Existiu algum culto a Tiamat anterior a Marduk?

Não literalmente, ou seja, não há registro de uma deusa chamada Tiamat anterior ao mito de Marduk, embora sejam conhecidos textos cuneiformes muito mais antigos. Mas muitos acreditam que Tiamat seja uma forma demonizada de uma deusa-mãe mais antiga, a Hebat dos hurrianos. Hebat também teria dado origem à Eva dos hebreus e à Cibele dos frígios e gregos. Mas isso se baseia em uma etimologia discutível: supõe-se, nesse caso, que Tiamat vem do sumério Ti, vida e Ama, mãe - "mãe da vida", o mesmo título de Hebat.

Mas a origem do nome pode ser completamente diferente. Nas antigas línguas semíticas, "Tiamat" é mais logicamente entendido como a forma feminina de tehom, "profundezas" ou "abismo do mar"

Como se deu a demonização de Seth?

O cara era responsável pela defesa da barca de Rá (o Sol) contra o boitatá egípcio (Apepi), foi deus-tutelar da I e II dinastia (sulistas certo?), encarado como "guerreiro justo" (lembra do tópico do S Jorge?), mas também foi super respeitado por hicsos do Delta e pela XIX dinastia (que talvez tivesse ancestrais hicsos?). Assim quem demonizou Seth, o vilão do mito osiriano? A respeito do possível caso Neftis-Osíris dando como fruto adulterino Anúbis, a imagética do Anúbis sugere que ele seja filho de Seth mesmo (os dois são canídeos). Mas os narradores do mito dizem que ele era estéril porque "o mal nada é capaz de criar"."Seth é o deserto, a terra vermelha estéril". Mas depois dizem que ele perdeu testículo em combate com sobrinho Hórus (posterior ao nascimento de Anubis). Claro que os mitos respiram (e são vivos) pelas suas variantes, mas saber disso, não nos proíbe de tentar ver a lógica por trás do véu.

Há também...
deuses aposentados entre celtas!: Sucelos-Belenos-Lug

Afinal o foco original de Seth, Horus e Osiris ficam no Alto ou Baixo Egito. A série História em Revista da Timelife, no volume inicial sobre o Egito, página 57, afirma que durante a unificação DO SUL, as cidades sulistas: Nubt (atual Nacada) adoradora de Seth e Nekhen (a clássica Hieracompolis) adoradora de Hórus guerrearam entre si, e a cidade do falcão venceu a do canídeo guardião do deserto oriental. Então o autor sugere que o mito da luta de Seth e Hórus, nasce de um combate real, totalmente entre sul e sul.

Faz mais sentido, mas acho que não há evidência histórica disso.

Segundo a teoria mais tradicional (como no resumo de Toby Wilkinson), o Alto Egito, no final do período pré-dinástico incluía quatro ou cinco reinos: do norte para o sul, 1) Thinis (ou This, cidade de Anhur ou Onuris, perto de Abydos), 2) Hu (ou Hut-Sekhem ou Dióspolis, cidade de Nefer-hotep), 3) Naqada (ou Nubt, ou Ombos, cidade de Set, perto de Tebas), 4) Gebelein (pouco conhecida, mais duvidosa) e 5) Nekhen (ou Hieracômpolis, cidade de Horus).

A unificação inicialmente teria progredido do norte para o Sul: Thinis teria absorvido primeiro primeiro Hu, depois Naqada e Gebelein. Depois, Thinis teria se expandido para o norte, até o limite do Baixo Egito. No final, teria engolido também Nekhen e, por fim, o Baixo Egito.

Outra teoria (de Werner Kaiser) defende que Naqada, a cidade de Set, foi o centro de um estado unificado do Alto Egito desde muito cedo (4400 a.C.) e que sua expansão se deu para o norte, até englobar o Baixo Egito.

Veja a progressão dos mapas em:

http://www.digitalegypt.ucl.ac.uk/naqadan/inegypt.html

A evidência é arqueológica, não histórica, e a interpretação é controversa. Não se sabe como isso se deu, se por meio de guerras, casamentos dinásticos ou o quê. É certo que as primeiras dinastias eram chamadas pelos egípcios de "tinitas" (originárias de Thinis).

Em todo caso, não parece que "Horus" (Nekhen) tenha conquistado "Set" (Naqada) em momento algum desse processo. Claro que as duas cidades, se realmente existiram como estados rivais, podem ter guerreado durante o período pré-dinástico, ou mesmo em alguma guerra civil depois da unificação.

A propósito

a cidade do falcão venceu a do canídeo guardião do deserto oriental

Será que Set é mesmo um canídeo? Ele é bem diferente de Anúbis, que é claramente o chacal. Set já foi identificado como asno, porco, hipopótamo e girafa, com um animal desconhecido e supostamente extinto chamado salawa.

Mas o que me parece mais provável é que o animal que o representa seja o porco-formigueiro ou aardvark (Orycteropus afer), que é uma espécie de versão africana do tamanduá e existe no Alto Egito.



Também há uma teoria segundo a qual o animal de Set é o peixe "oxyrhynchus", que no mito egípcio devora o pênis de Osíris. Não se sabe exatamente a que espécie se refere o mito, mas o nome significa "bico agudo" geralmente se acredita que é uma espécie de mormirídeo ou peixe-elefante (uma família de peixes africanos) como o Gnathonemus petersii.



Nesse caso, o que tomamos por orelhas seriam, na realidade, as barbatanas do peixe. Mas, francamente, a idéia do porco-formigueiro me parece mais convincente.