Mitologias Antigas

Como Hefesto ficou coxo?

Sabe-se que o deus ferreiro era coxo, ou seja manco. Mas há duas versões que contam como Hefesto ficou coxo.
A primeira diz que ele já nasceu manco. Hera não aceitou o fato de seu filho ser aleijado e o expulsou do Olimpo.
Já a segunda versão diz que durante uma briga entre Zeus e Hera, Hefesto tentou acalmar os ânimos. Zeus irritadíssimo agarrou pela perna o filho e o arremessou para fora do Olimpo. Isso fez com que Hefesto ficasse coxo.

Gostaria de saber qual das duas versões é a verdadeira, se é que podemos ter uma verdadeira.
Esse é o único problema das mitologias em geral. Há várias versões da mesma história.
Isso dificulta um pouco o estudo da mitologia, não acham?
Quem souber a resposta para o conto de Hefesto me responda, por favor.

Como nenhuma delas aconteceu de verdade, eu suponho, e como ambas as versões vêm das obras de autores importantes na reconstrução da mitologia grega, acho que as duas valem. O importante é que os mitos são moldados com o tempo e com as mudanças nas sociedades. Parece que a primeira é mais antiga (não lembro bem, mas tenho a impressão que sim pelo que vou explicar) e reflete o temor do poder matriarcal - Hera expulsa Hefesto do Olimpo - um certo complexo de castração, resquício de uma época anterior onde o conflito do matriarcado e patriarcado ainda era sentido. A outra versão demonstra o poder masculino sobrepujando o feminino no sentido em que Zeus toma a mesma decisão. Mas me parece que as duas coexistiram, e não dá pra saber qual era a mais popular.

O importante é que os mitos não são estáticos, e por isso não há uma versão "verdadeira" deles. No máximo, original.

Vale notar que o defeito físico de Hefaistos também reproduzia uma realidade social da Grécia arcaica. Homens coxos ou com quaisquer deficiências que os impedissem de ser guerreiros ganhavam a vida como ferreiros e artesãos. Os gregos menosprezavam essas profissões e, como cultores da beleza e da forma física, ridicularizavam os portadores de defeitos físicos.

Claro, é lógico que não há mitologia "verdadeira" e, a rigor, nem mitologia "original". Os mitos e os deuses foram imaginados de diferentes formas em diferentes cidades e regiões da Grécia. Não há muito como saber quais versões são mais antigas e, mesmo que houvesse, isso não seria necessariamente relevante. Mais importante é entender como essas diferentes versões foram usadas. Aquelas que conhecemos melhor, ou que são tidas como "canônicas", são em geral as que foram consagradas por alguma obra poética ou dramática importante, dentro de um contexto político e social determinado.

Dom Diniz, pelo que eu sei, os portadores de deficiências físicas e/ou mental que nasciam na Grécia eram abandonados para morrer assim que acabavam de nascer, não é?

Na maior parte dos mitos dos heróis, em suas várias versões, a exposição da criança é um elemento quase constante (até Dioniso entrou nessa). O defeito físico também é outro elemento quase constante. Mas curiosamente, o defeito físico normalmente só aparece depois, algumas vezes como consequência da exposição (como Édipo), ou sem muita relação com ela (como Ulisses e a cicatriz na perna, ou Tirésias e a sua cegueira).

Que engraçado.

Para a mentalidade antiga (e às vezes nem tão antiga), que valoriza o berço, o nascimento e a nobreza, uma deficiência de nascença é um defeito essencial, que diminui o personagem. Já uma deficiência adquirida é algo contingente, que não afeta o verdadeiro ser do herói e pode até enobrecê-lo, se for uma cicatriz de batalha ou a marca da sobrevivência a algum outro tipo de provação.

Deficientes

A dupla caolho e deficiente motor figura em muitos mitos de povos derivados dos protoindoeuropeus. Às vezes como heróis e deuses, mas sempre como desvantagens adquiridas: celta Nuada, romano Mucio Scaevola, os germanos Odin e Tyr etc...

Marco Polo escreveu:Esse é o único problema das mitologias em geral. Há várias versões da mesma história.
Isso dificulta um pouco o estudo da mitologia, não acham?

Sobre como interpretar os mitos.

Como interpretar um mito é sempre um grande desafio e magistralmente Claude Lévi-Strauss em seu livro ´Mito e Significado´explica como faze-lo recorrendo a uma analogia que é uma das mais belas que já li em que ele tece sua explicação fazendo uma paralelo envolvente entre Mitos e a Música. Leiam vocês mesmos e tirem suas próprias conclusões e claro são bem-vindo comentários :


´´É impossível compreender um mito como uma seqüência contínua. Esta é a razão porque devemos estar conscientes de que se tentarmos ler um mito da mesma maneira que lemos uma novela ou um artigo de jornal, ou seja, linha por linha, da esquerda para a direita, não poderemos chegar a entender o mito, porque temos de apreendê-lo como uma totalidade e descobrir que o significa do básico do mito não está ligado à seqüência de acontecimentos, mas antes, se assim se pode dizer, a grupos de acontecimentos, ainda que tais acontecimentos ocorram em momentos diferentes da História. Portanto, temos de ler o mito mais ou menos como leríamos uma partitura musical, pondo de parte as frases musicais e tentando entender a página inteira, com a certeza de que o que está escrito na primeira frase musical da página só adquire significado se considerar que faz parte e é uma parcela do que se encontra escrito na segunda, na terceira, na quarta e assim por diante. Ou seja, não só temos de ler da esquerda para a direita, mas simultaneamente na vertical, de cima para baixo. Temos de perceber que cada página é uma totalidade. E só considerando o mito como se fosse uma partitura orquestral, escrita frase por frase, é que o podemos entender como uma totalidade, e extrair o seu significado. ´´

(Claude Lévi-Strauss /Mito e Significado em seu Capítulo V - Mito e Música )

Reaprender a linguagem simbólica

Falta muito isso no homem de hoje...
Gosto muito do livro "O Herói e Mil Faces, de Joseph Campbell.
Lá ele diz que "A função primária dos mitos e dos ritos sempre foi a de fornecer os símbolos que levam o espírito humano a avançar, opondo-se àquelas outras fantasias humanas constantes que tendem a levá-lo para trás. Com efeito, pode ser que a incidência tão grande de neuroses em nosso meio decorre do declínio, entre nós, desse auxílio espiritual efetivo.
Perdendo contato com os mitos, perdemos contato conosco, com nosso mundo interior.

Segundo Helio Jaguaribe e Toynbee, a evolução da maioria das civilizações passa por um estagio inicial idealista (levando muito a sério os mitos que cria), adquire ganhos tecnológicos e se torna mais materialistas, entra numa barafunda de tentar resolver os problemas que criou usando ainda seus mitos de modo "desatualizado", finalmente entra em um fundamentalismo babaca que também não responde aos novos desafios ou finalmente rasga tudo e cria "novos mitos", novos ideais, realmente capazes de resolver seus problemas com "novo" espirito, de modo novamente idealista.
Segundo Jung, o sonho é o mito individual e o mito é o sonho coletivo.

"Segundo Jung, o sonho é o mito individual e o mito é o sonho coletivo"
Amei esta frase...
Moro no interior, e fico observando a juventude perdendo o contato com os mitos... com o sonho... gente de olho vidrado no vazio, sabe??
Como resgatar o mito? Na prática??

H.R.Ellis Davidson

Falando em citações, vale também o que fala H.R.Ellis Davidson:

´A mitologia de um povo é muito mais que uma coletânea de fábulas bonitas ou assustadoras recontadas em estilo articulado às nossas crianças nas escolas. Uma mitologia é o comentário específico de uma era ou civilização sobre os mistérios da existência e da mente humana, seu modelo para um comportamento social e a tentativa de definir, em histórias de deuses e demônios, sua percepção das realidades interiores. Podemos aprender muito com as mitologias dos povos antigos, se tivermos humildade de respeitar estilos de pensamento muito diferentes dos nossos. Em muitos aspectos podemos ser mais inteligentes que eles, mas não necessariamente mais sábios.´

Deuses e Mitos do Norte da Europa - H.R. Ellis Davidson / Editora Madras (citação constante na página 07)

Sobre a Lei dos Três Estados

Este posicionamento do Helio Jaguaribe e Toynbee recorda muito aquela ´Lei dos Três Estados' elaborada por Auguste Comte onde ele considera que a Humanidade emerge primordialmente numa condição de grande superstição (o Estado Teológico) onde impera uma um explicação sobrenatural para tudo, disto segue-se elocubrações meio que filosóficas de alta abstração (Estado Metafísico) até que por fim a ´iluminação´ surge com a adesão e explicação racional e lógica com base de tudo (Estado Positivo). Salvo é claro que Comte vê o processo como linear em que cada etapa cumprida resulta em sua superação definitiva até que um estágio superior de evolução seja atingida pela Humanidade em que cumpre-se o ideal de sociedade perfeita onde há o Amor por Princípio, a Ordem por Base e O Progresso por Fim.

Faltou pouco para mim ser um Positivista, sabe? Não fosse o meu ceticismo falar mais alto, talvez fosse um árduo defensor da Religião da Humanidade.

A queda

A respeito desta questão de resgate dos mitos, valendo ainda de H.R. Ellis Davidson no livro que citei numa leve adaptação de trecho:

´Não podemos retornar ao pensamento mitológico de uma era passada; está além de nosso alcance, como o mundo desaparecido da infância. Mesmo que sintamos um anseio nostálgico pelo passado não há mais uma porta de entrada. Os nazistas tentaram reviver os mitos dos antigos germanos em sua ideologia, mas isso só podia terminar em esterilidade e suicídio moral. Não podemos negar a exigências de nossa era; mas isso não precisa nos impedir de recorrer à fé oriunda de outras eras, com uma compreensão solidária, e recuperar na imaginação algo de seu poder desaparecido, e sim nos ajudará a enxergar com mais clareza as suposições e crenças de nossa época.´

Para mim é uma explicação mais que perfeita e atende com exatidão o que busco nos estudos dos mitos, ou seja, estabelecer um ´link´ de compreensão entre épocas pretéritas e nossos dias bem como também que este conhecimento sirva como ´trampolim´ para o auto-conhecimento.

Agora é aquilo: ´O sono da Razão produz Monstros.´ Não pode perder de vista que os mitos referem-se principalmente ao imaginário, a fantasia, mesmo a explicações surreais... Mal porcamente explicando em analogia é como andar a beira de um precipício com o atenção focada nas formas das nuvens e daí quando menos espera você tropeça e cai. A ´realidade´ do chão vai chegar logo a seguir com toda força pondo um fim a qualquer devaneio mais transloucado que o sujeito tenha a respeito do mundo, si mesmo e as pessoas ao redor.