A Guerra de Tróia

Toda a planície estava tomada de homens, cavalos e carros, e a Terra tremia sob seus pés, suas patas e suas rodas, enquanto eles avançavam. Dois homens eram os primeiros a avançar, um contra o outro, ávidos de batalha: Enéias, filho de Anquises e da bela Afrodite, e Aquiles, filho de Peleus e da ninfa Tétis. Enéias, o chefe dos dárdanos, foi o primeiro a atacar. Aquiles correu a enfrentá-lo, como um leão voraz, e, chegando perto de Enéias, encarou-o:

— Enéias, como ousas separar-te assim dos teus? Esperas porventura reinar sobre o povo de Tróia, se me venceres? Louco! Ainda que me matasses, Príamos não colocaria o poder em tuas mãos, pois tem um grande número de filhos, e é firme em seus julgamentos. Ademais, mesmo velho, Príamos não deve pensar ainda em renunciar ao trono. Ou terão os troianos separado para ti uma bela porção de terras de vinhedo e aradura, para que possas cultivar? Te iludiram, dárdano!

E começou a rir. Enéias, atento, a tudo ouvia, meio confuso. Aquiles, caçoando dele, continuou:

— Parece que este dia vai demorar a chegar, se é que vai chegar. Parece-me que nos primeiros tempos desta guerra te persegui, pois fugiste em vez de me enfrentar. Já te esqueceste do dia em que te expulsei das alturas do Ida, obrigando-te a abandonar teu gado? Então, fugiste sem olhar para trás, para Lirnessos, mas eu a tomei e saqueei, ajudado pelos deuses, privando da liberdade as mulheres que capturei e levando-as como cativas. Tu, porém, protegido por Zeus, fugiste novamente. Não creio, então, que ele te salve agora, como deves pensar, e aconselho-te a fugir para o meio dos teus homens, antes que te aconteça uma desgraça. Mesmo um tolo sabe conhecer o perigo.

— Filho de Peleus, não penses que me amedrontas como se eu fosse um menino, eis que eu próprio sou versado em fazer ameaças e dirigir impropérios. Muito bem conhecemos as nossas estirpes, conheço a história de teus paise tu já ouviste sobre os meus. Sabes também que fui, como tu, discípulo do Sábio Centauro; temos muito em comum. Mas nunca viste meus pais, nem eu os teus. Soube que tu és filho do grande Peleus, muito amigo do famoso Héracles, que conquistou a cidade do rei Laómedon, e que tua mãe é Tétis, a primeira entre as deusas do mar. E tu sabes que meu pai é Anquises, não menos famoso, e minha mãe é Afrodite, a mais querida filha de Zeus, no Olimpo. Um desses casais irá chorar hoje por seu filho, pois não creio que seremos afastados pelas palavras vãs e nos retiraremos da batalha. Se queres, porém, saber dessas coisas, para conheceres a nossa raça, saibas que, a princípio, Zeus gerou Dárdanos, que fundou a Dardânia, eis que Tróia ainda não existia. Dárdanos teve um filho, o rei Erictônios, que era o mais rico dos mortais. Três mil éguas de sua propriedade pastavam no prado. Bóreas as amou, e, tomando a forma de um garanhão de crina negra, com elas se juntou e conceberam e pariram doze protos alados. Erictônios gerou Trós, o pai dos troianos, e de Trós nasceram três filhos admiráveis: Ilos, Assáracos e Ganímedes, que foi o mais belo dos homens da Terra. Os deuses o levaram para servir vinho a Zeus, para que pudesse morar no Olimpo. Ilos teve um filho, Laómedon, que, por sua vez, teve muitos filhos, entre eles Príamos. Assáracos gerou Cápis e este gerou Anquises, meu pai. Eis minha raça e meu sangue, pelida. É bastante respeitável.

Aquiles acenou a cabeça, em sinal de aprovação e admiração. Enéias continuou:

— Zeus, porém, faz com que o valor cresça e desapareça nos guerreiros à sua vontade, pois é o mais poderoso de todos. Vamos, não conversemos por mais tempo, pois estamos no meio de uma guerra, e não de uma festa. Ambos os lados têm muito para se queixar e nem um navio de cem remos seria bastante para sustentar o peso dessas queixas. Ágil é a língua dos mortais, e nela há muitas palavras de toda a sorte, e amplo é o campo do discurso. Tais palavras tu dirás, tal resposta hás de ter. Por que, então, haveremos de nos molestarmos, face a face, com ira e maldições, como mulheres fofoqueiras e injuriadoras? Não conseguirás afastar-me de minha ânsia de combater, antes que nos enfrentemos. Vamos lá, provemos agora o gosto amargo do sangue!

O dárdano arremessou a lança contra o escudo de Aquiles, que temeu ser atingido, pois ainda não havia compreendido que os gloriosos presentes de Hefaístos não podiam ser facilmente avariados pelos homens. Mesmo sabendo que não podia ser ferido por mão humana, temia que algum deus, repentinamente o fizesse. Ademais, sabia que tinha um ponto vulnerável, mas desconhecia onde em seu corpo ficava, que até mesmo Enéias poderia feri-lo e levá-lo à Morte. Mas a lança somente atravessara duas camadas das cinco existentes no escudo, duas de bronze, duas de estanho e uma de ouro, na qual a lança foi detida.

Então, Aquiles arremessou a lança e atingiu também o escudo arredondado de Enéias, por baixo da borda externa, onde o bronze era menos espesso e um fino couro de boi estendia-se sobre ele. A lança atravessou o escudo, passando sobre o ombro de Enéias. Este, tendo-se esquivado, logo ergueu-se, temeroso. Então, Aquiles sacou a espada e investiu furiosamente contra ele, dando um grito terrível, e Enéias levantou com as mãos uma pedra enorme e a atirou contra o mirmidão, que só foi atingir o escudo e caiu no chão.

Poseidon, do alto do muro, percebeu o triste desfecho que teria Enéias, e compadeceu-se:

— Sinto-me perturbado por causa de Enéias, que será dentro em pouco morto pelo filho de Peleus e descerá à casa de Hades, porque obedeceu às insanas palavras de Apolo, e o deus não o protegerá. Por que deverá sofrer este mal, sem motivo, por causa dos pesares de outros, ele cujas Queres determinaram ou morrer em Tróia pelas mãos de Aquiles ou tornar-se um herói muito famoso e importante em terras distantes? Temos que livrá-lo da Morte, pois Zeus deverá zangar-se, se o deixarmos morrer. É seu destino escapar, para que não pereça no esquecimento, sem sementes, a raça de Dárdanos, que o filho de Cronos amava mais do que todos os filhos que teve de mulheres mortais: eis que, agora, Zeus passou a odiar a raça de Príamos, e Enéias e os filhos de seus filhos reinarão sobre os que nascerem de agora em diante.

Héra argumentou:

— Poseidon, considera tu mesmo, em teu coração, se salvarás Enéias ou o deixarás perecer, com todo o seu valor, às mãos de Aquiles. Eu e Atena, porém, juramos que não afastaríamos o dia da provação dos troianos, nem mesmo quando Tróia se queimasse com o fogo ateado pelos aqueus.

E Poseidon correu para o meio da batalha e, sem demora, lançou uma nuvem sobre os olhos de Aquiles. Arrancou sua lança do escudo de Enéias e colocou-a diante dos pés de Aquiles. Levantou Enéias da terra e o levou para onde estavam os caucônios, que estavam prontos para o combate, arrancando júbilos do coração de Afrodite e seus deuses aliados. Poseidon revelou-se a Enéias, dizendo-lhe:

— Enéias, que deus te cegou, para que ouses lutar contra aquele homem, que é mais forte que tu, e o favorito dos deuses? Pois recua sempre que o encontrares, para que não pereças e não vejas perante ti o deus Hades, antes do tempo marcado pelo Destino. Quando Tânatos, a Morte, tiver ido ao encontro de Aquiles, então poderás animar-te a combater, eis que nenhum outro dos aqueus te abaterá.

E abandonou o confuso e atordoado Enéias, e, sem demora, retirou dos olhos de Aquiles a nuvem que lhe cegava. Então, pesaroso, Aquiles reclamou:

— Grande é a maravilha que meus olhos contemplam, eis que a lança está aqui no chão e não vejo o homem a quem atirei o bronze. Enéias deve ser muito estimado pelos deuses, embora eu pensasse que ele se gabava em vão, com palavras vazias. Não terá mais espírito para experimentar-me, eis que foi muito feliz agora de escapar-me das mãos. Pois vou dar ordens aos gregos e experimentarei outros troianos mais corajosos e que não sejam auxiliados por algum deus.

E correu para o meio das fileiras.

— Não fiqueis por mais tempo longe dos troianos, e que cada homem enfrente outro na batalha. Nem mesmo Áres nem Atena poderiam entrar a ajudar. Enquanto eu tiver força nas mãos e nos pés, e vigor, não fraquejarei, de modo algum, e avançarei contra o inimigo, e penso que não se alegrará qualquer troiano que estiver a meu alcance.

Os gregos vibraram e ansiaram enfrentar seus inimigos que, do outro lado, eram incitados por Heitor:

— Troianos, não temais o pelida. Também eu poderia lutar com injúrias mesmo contra os Imortais, mas com a lança é difícil, eis que eles são muito mais poderosos. E Aquiles não honrará todas as suas palavras: algumas ele cumprirá, mas algumas deixará pela metade. Hei de enfrentá-lo em combate singular, ainda que suas mãos fossem semelhantes ao fogo e seu valor feito de ferro.

Os troianos ergueram as lanças, provocando os gregos. Então, Febo-Apolo chegou junto de Heitor e disse-lhe:

— Heitor, não lutes ainda sozinho contra Aquiles, mas espera-o no meio do tumulto da multidão de guerreiros, para que ele não te atinja ou te fira com a espada, bem de perto.

Heitor, amedrontando-se com a aparente previsão de Apolo, foi misturar-se aos troianos. Já Aquiles, revestido de valor, investiu contra os troianos, com um grito terrível, e, primeiro, matou Ifítion, filho de Otrinteus e de uma náiade, e chefe dos guerreiros da terra de Hide, sob o Tmolos. Quando avançava, Aquiles o feriu, em cheio, com a lança, na cabeça, e dividiu-a ao meio. Ele caiu com fragor no chão. Aquiles gritou:

— Aí jazes, filho de Otrinteus, o mais terrível de todos os homens. Aqui foi a tua morte, mas o teu berço foi no lago Giaenaus, onde ficam teus domínios ancestrais, junto do Hilos e do torrentoso Hermos.

Assim falou, os carros dos aqueus estraçalharam o corpo de Ifítion. Aquiles, em seguida, feriu Demóleon, filho de Antenor, na têmpora, através do elmo, e a ponta o atravessou e esmagou o osso, espalhando-se os miolos. Aquiles, cada vez mais feroz, feriu Hipódamas nas costas, com a lança, quando ele fugia, depois de ter descido do carro. Ele caiu e vomitou a vida pela boca. Depois, Aquiles, com sua lança, investiu contra Pámon, semelhante aos deuses, filho de Príamos. Aquiles atingiu-o em cheio, com um dardo, nas costas, cuja ponta atravessou até o umbigo, ele caiu de joelhos, dando um grito, e uma nuvem escura o envolveu, sustentando as entranhas com as mãos.

Heitor, vendo o irmão a retorcer-se no chão, sentiu turvar-se a visão. Incapaz de continuar afastado da luta, brandindo a aguçada lança, atirou-se contra Aquiles, esquecido do aviso do deus Apolo. Aquiles viu-o, deu um pulo de felicidade e ergueu uma prece:

— Está bem próximo o homem que feriu meu coração, que matou meu reverenciado amigo. Oxalá não nos afastemos mais um do outro, até que um de nós pereça.

Disse e, com um olhar de desprezo, disse a Heitor:

— Aproxima-te, para que possas mais depressa encontrar-se com a Morte.

— Sei que és valente, Aquiles, e que sou inferior a ti, mas não penses que me amedrontas, eis que também sei falar e injuriar. Está em poder dos deuses decidir se, embora mais fraco que tu, eu te privarei da vida, eis que também a minha lança é aguçada.

E, recuando a lança, arremessou-a, mas Atena respirou de leve, afastando a lança, fazendo-a retornar a Heitor, caindo aos seus pés. Os deuses do Calicolone olharam para os que estavam sobre o muro de Héracles, procurando ver se algum deus o havia ajudado. Aquiles, por sua vez, avançou impetuosamente, com um terrível grito, desejoso de tirar-lhe a vida. Apolo, porém, lançou, disfarçadamente, uma espessa nuvem em Heitor, escondendo-o. Três vezes Aquiles investiu com sua lança e três vezes voou no vazio. E, ao atirar a lança pela quarta vez, o pelida gritou:

— Ainda desta vez escapaste da Morte, cão vil, embora a perdição esteja perto de ti. Com certeza suplicaste ao teu deus protetor. Apolo salvou-te, aquele a quem diriges preces quando marchas para a guerra. Acabarei contigo da próxima vez que te encontrar, mesmo se um deus estiver contigo. Agora vou à procura de outro, quem quer que eu encontre.

E foi ferir Dríops com o dardo, em cheio no pescoço, e ele caiu de bruços. Aquiles deixou-o lá e atacou Demoucos, bravo filho de Filétor, ferindo-o no joelho com a lança, e depois o atravessou com sua espada, tirando-lhe a vida. Em seguida, atacou Laógonos e Dárdanos, filhos de Bias, e atirou-os ambos do carros ao chão, ferindo um com a lança e o outro com a espada a pequena distância.

Trós, filho de Alástor, aproximou-se para apertar-lhe os joelhos na esperança de que ele o pouparia e o levaria cativo, e depois o deixaria viver, apiedado por alguém de sua idade. Mas tolo que era, não sabia que nada persuadiria o duro coração de Aquiles, cego e surdo pela ira, e muito impetuoso. Trós apertou-lhe os joelhos em seus braços, mas uma espada cravou-se em seu fígado. O guerreiro caiu aos pés de Aquiles.

Aquiles atacou Moúlios e feriu-o no ouvido. A ponta de bronze foi sair no outro ouvido. Aquiles feriu ainda, em cheio na cabeça, Équeclos, filho de Agenor, com a espada, que ficou toda coberta de sangue, recebendo a visita de Tânatos, que o levaria à casa de Hádes.

Em seguida, Aquiles atravessou, com a lança, o braço de Deucálion, junto aos tendões do cotovelo, e Deucálion aguardou-o, sentindo pesar-lhe o braço, vendo diante de si a imagem de Tânatos, e Aquiles golpeou-o no pescoço com a espada e cortou-o. O sangue esguichou das vértebras e ele ficou estendido no chão.

Aquiles avançou, então, contra Rigmos, filho de Peires, um guerreiro admirável vindo da Trácia. Atingiu-o no meio do corpo com um dardo e o bronze penetrou em seu ventre, e ele caiu do carro. Areítous, o áuriga e escudeiro, na tentativa de tocar os cavalos para a fuga, Aquiles feriu-o nas costas com a lança e atirou-o fora do carro, e os cavalos se espantaram.

Aquiles, ora no carro, ora em terra firme, causava medonha carnificina, manchando de sangue a vasta planície troiana. Os cavalos de Aquiles esmagavam, ao mesmo tempo, corpos e escudos. O eixo do carro estava todo coberto de sangue. O filho de Peleus avançava para conquistar a glória e suas invencíveis mãos homicidas estavam manchadas de sangue e cobertas de pó.

A FÚRIA DO ESCAMANDROS

E quando a luta se estendeu até a corrente do Escamandros, cuja fonte ficava no lago Gárgaros, os troianos começaram a recuar, divididos. Aquiles, os mirmidões e os demais aqueus saíram em perseguição dos fugitivos. Aquiles dividiu-os em dois grupos: uma parte seguiu para a planície, em direção à cidade, através da estrada, e outra metade seguiu o percurso do rio.

— Aqui, às margens do Escamandros, misturarei as águas cristalinas com o sangue torvo desses cães!

Os troianos, encurralados no rio, sob o monte Ida, nadavam de um lado para outro, até caírem nos turbilhões do rio furioso. As águas, diante de Aquiles, encheram-se de homens e cavalos em confusão. E Aquiles começou a atirar seus dardos, todos que encontrava, contra seus inimigos, que caíam como num matadouro. Quando restava-lhe apenas uma lança, ali, na margem, Aquiles deixou-a encostada em uma moita de tamarizes e saltou como um deus, empunhando apenas a espada e com a fúria no coração, desfechou golpes para todos os lados. Horríveis gemidos elevaram-se daqueles que ele feria com a espada, e a água se avermelhou de sangue. E, quando as mãos de Aquiles se cansaram de matar, ele escolheu doze jovens vivos no rio como o resgate de sangue pela morte de Pátroclos e entregou-os aos seus mirmidões, aprisionando-os e amarrando suas mãos às costas. Depois, avançou de novo, rumo ao Escamandros.

Encontrou, de súbito, Licáon, filho de Príamos, que certa vez aprisionara, contra a vontade, no pomar de seu pai, quando fizera um ataque durante a noite. O Destino colocava Licáon novamente para fora dos muros de Tróia e novamente nas mãos de Aquiles. Licáon se encontrava em desespero para escapar da fúria do rio, por isso teve que abandonar o elmo, o escudo w a espada que eram pesados e podiam afoga-lo. Saindo da água, meio cambaleante, dominado pelo suor e com a fraqueza pesando em seus joelhos, retirou a couraça e, levantando os olhos, deparou-se com a terrível imagem do mais poderoso herói grego, que disse:

— Uma grande maravilha é o que os meus olhos contemplam. Os troianos que matei levantar-se-ão de novo da escuridão, assim como este homem veio fugindo da Morte, depois de ter sido vendido na sagrada Lemnos. A largura do mar cinzento não o conteve, embora contenha muitos contra a vontade. Agora, ele provará a ponta da lança, a fim de que eu possa saber se também dali ele voltará, ou se a Terra o deterá, ela que prende mesmo os poderosos.

Assim ponderou, esperando, e Licáon aproximou-se dele, confuso, desejoso de apertar-lhe os joelhos e implorar-lhe clemência. Mas Aquiles, erguendo a lança, pronto para feri-lo, causou pânico ao coração de Licáon,, que correu, abaixou-se e apertou-lhe os joelhos. A lança, sem ser jogada, passou sobre o seu ombro e cravou-se no chão. Com uma das mãos, Licáon segurou, suplicante, os joelhos de Aquiles e com a outra segurou a lança, para não deixá-la avançar. E suplicou:

— Aperto teus joelhos, Aquiles. Ouve-me e tem piedade. Vês em mim um suplicante que merece consideração, eis que foste o primeiro com quem comi o alimento de Deméter naquele dia em que me capturaste, no belo pomar, e me mandaste para longe de meu pai e de meus amigos, e me vendeste na sagrada Lemnos, e eu te trouxe o preço de cem bois. Mas fui libertado, pagando três vezes aquele resgate, e este é o décimo-segundo dia, desde que regressei a Ílion, após muitas desgraças. Agora, o cruel Destino pôs-me de novo em tuas mãos. Certamente, devo ser odiado pelo Pai Zeus. Minha mãe gerou-me para que eu vivesse pouco: Laótoe, filha do velho Altes, rei dos léleges, no alcantilado Pédasos, sobre o Satnoieis. Príamos desposou sua filha e desposou também muitas outras. Ela teve dois filhos: o outro, meu irmão Pámon, tu já o mataste entre os primeiros infantes, quando o feriste com a lança. E agora, vejo a Morte em minha frente. Não creio que escaparei de tuas mãos, já que o deus te enviou contra mim. Outra coisa dir-te-ei e deves guardá-la em teu coração: não me mates, eis que não vim do mesmo ventre que Heitor, que matou teu amável e forte companheiro.

Licáon teve que ouvir uma rude resposta:

— Louco! Não me vens falar de resgate! Nem penses nisso. Se Pátroclos não tivesse tombado, eu te perdoaria de boa vontade, como a muitos capturei e vendi como escravos, mas não haverá mais nenhum que escapará da Morte sempre que os deuses o lancem às minhas mãos, diante de Ílion, especialmente os filhos de Príamos. Agora, morre tu também, e não me olhes com esses olhos de súplica. Até mesmo Pátroclos morreu, ele que era mais nobre que tu. Olha para mim: não vês quanto formoso e altivo eu sou? Descendo de um bravo pai e de uma deusa. Contudo, também sobre mim paira a Morte e o Destino. Haverá uma manhã, ou uma tarde, ou um meio-dia, em que alguém há de tirar-me a vida na batalha, ferindo-me com uma lança ou a seta de um arco. Por que tu não podes morrer?

Os joelhos de Licáon e o próprio coração fraquejaram. Ele largou a lança e sentou-se com as mãos estendidas ao longo do corpo. Aquiles sacou a afiada espada e deu o golpe fatal no pescoço, logo acima da clavícula, e a espada de dois gumes afundou até o cabo. Licáon ficou estendido no chão e o sangue dele correu e ensopou a terra. Então, Aquiles pegou-o pelo pé e atirou-o ao rio, vangloriando-se:

— Fica aí com os peixes, que lamberão o sangue de tua ferida e não chorarão por teres morrido. Tua mãe não te colocará no leito e nem chorará por ti, mas o Escamandros há de te levar para o fundo do mar. Os animais do mar comerão tua carne.

E erguendo os olhos, gritou:

— Morrei, troianos, até que tomemos Ílion, vós fugindo e eu, atrás de vós, matando. E o rio com seus redemoinhos não vos salvará, o rio ao qual oferecerei muitos touros e atirarei aos seus redemoinhos cavalos vivos: mesmo assim, haveis de morrer cruelmente, até que todos vós expieis a morte de Pátroclos e a matança dos aqueus que abatestes junto aos navios, longe dos meus olhos.

Assim falou, e o deus-rio Escamandros, aquele mesmo que os deuses chamavam de Xantos, enfureceu-se e resolveu afogá-lo. Entrementes, o filho de Peleus, empunhando a lança e seu escudo, investiu contra Asteropaeus, filho de Pélegon, ansioso por matá-lo. Asteropaeus enfrentou-o no leito do rio, empunhando duas lanças. Ao aproximarem-se um do outro, Aquiles disse-lhe:

— Quem és tu que ousas enfrentar-me de perto? Desventurados aqueles cujos filhos encontram o meu poder!

— Aquiles, por que indagas sobre minha origem? Interessa-te de onde vim? Ah, sim! Ouvi dizer que os aqueus gostam de exibir seus troféus e, por isso, precisam saber a quem pertenceu. Pois bem. Sou da Peônia, vim de muito longe — não muito, aliás, de tua Pátria —, e comando meus peonianos em favor do mais nobre dos reis da Terra, o rei Príamos. Fazem hoje onze dias que cheguei a Ílion. Minha estirpe? Meu pai Pélegon fora gerado pelo Áxios, o mais belo rio que corre na terra, e por Peronéa, a mais velha das filhas do grande Acessâmenos. Satisfeito? Agora, lutemos, mirmidão!

E Aquiles, semelhante aos deuses, levantou a lança, enquanto Asteropaeus arremessava duas lanças ao mesmo tempo, pois era ambidestro. Com uma delas, atingiu o escudo, mas não o atravessou, pois o ouro deteve a lança. Com a outra, arranhou o braço direito de Aquiles e foi cravar-se no chão. Então, Aquiles arremessou a lança contra Asteropaeus, ávido de matá-lo. Errou e atingiu a ribanceira do Escamandros. Então, Aquiles sacou a espada e investiu furiosamente, e o peônio não pôde alcançar a lança perdida de Aquiles. Três vezes a sacudiu, em sua ânsia de retirá-la, pois estava enterrada pela metade no chão, e três vezes suas forças se esgotaram. Da quarta vez, ele desejou dobrar e quebrar a lança do filho de Peleus, só que Aquiles o privou da vida com sua espada, ferindo-o no umbigo, e suas entranhas se arrastaram pelo chão. Aquiles saltou sobre seu peito e despojou-o da armadura.

— Fica aí, homem! É difícil combater os filhos de Zeus, mesmo para o descendente de um rio. Disseste que eras filho de Áxios, mas eu me gabo de ser da raça divina do poderoso Zeus, pois o homem que me gerou reina sobre muitos mirmidões, Peleus, filho de Éacos e neto de Zeus. Portanto, assim como Zeus é mais poderoso que os Rios, assim é a raça de Zeus mais poderosa que a de um rio. Tens um bem ao teu lado, se ele puder socorrer-te, mas é impossível combater Zeus, com o qual fluem todos os rios, mesmo o mar, e todas as fontes e poços profundos. Mesmo ele teme os raios de Zeus e o temível trovão, quando ruge no céu.

Arrancou a lança da ribanceira e deixou o peônio estendido na areia, agora que lhe tirara a vida: e a negra água o levou. Sobre ele, as enguias e os peixes rasgaram e comeram a gordura acima de seus rins, e Aquiles saiu em perseguição dos peônios, que ainda fugiam ao lado do rio, ao verem os mortos que caíram nas mãos do pelida. Então, ele matou Tersílocos, Mídon, Astípilos, Mnesos, Trásios, Ênios e Oflelestes. E, quando preparava-se para perseguir outros guerreiros, o Escamandros, sob a aparência semi-humana de um velho todo descabelado e repleto de algas pelo corpo, indignado com Aquiles, emergiu e gritou:

— Pára, Aquiles! Ultrapassas todos os homens em valor, mas tua chacina é espantosa, e supera tudo aquilo de que é capaz um homem, eis que os próprios deuses sempre te defendem. Se Zeus te permitiu matar todos os troianos, afasta-os de mim e vai praticar teus horríveis feitos na planície. O meu leito está repleto de cadáveres, e as águas mal conseguem desaguar no Helesponto, porque os corpos bloqueiam a passagem, parecendo uma represa, mas tu matas sem te deteres.

— Será como pedes, Escamandros. Não cessarei, porém, de matar os troianos, enquanto não os encerre na cidade e experimente minhas forças em combate singular com Heitor, para que ele me mate ou eu o mate.

— Basta, Aquiles! Estou atônito!

— Silencia tuas queixas, portentoso rio! Minha vontade já decidiu que o curso de tuas espumosas águas será interrompido até que os peixes que nelas habitam tenham despido toda a gordura que reveste os ossos de meus inimigos!

Assim falando, como um deus, investiu contra os troianos, que ainda tentavam sair do Escamandros, e o deus pediu socorro a Apolo, que foi até ele.

— Deus do arco de prata, descendente de Zeus, não viste a vontade do filho de Cronos, que te deu muitas ordens para protegeres os troianos, até que a Noite caia e espalhe suas sombras sobre a Terra. Terei, então, que agir ao meu modo.

Aquiles pulou da ribanceira para o meio dele, em perseguição dos troianos. Encapelando-se em uma onda, o rio subiu em torno dele, e rugindo levantou toda a correnteza e correu ao longo dos muitos corpos que nele se encontravam e que Aquiles havia matado. Soltando um rugido semelhante a de um touro, ele os atirou para a terra seca, mas tentou salvar os vivos em sua correnteza, escondendo-os nos largos e profundos redemoinhos.

E o deus gritou:

— Aquiles, semelhante aos deuses! Tua sede de sangue ultrapassou todos os limites e agora infringe também os sagrados limites do temor aos deuses. Por isto, farei desabar, agora, sobre ti, a força de meus braços!

Uma onda ergueu-se em torno de Aquiles, com um terrível rugido, e a correnteza empurrou seu escudo, derrubando-o. E, por um instante, ele desapareceu sob suas ondas, e só depois veio à tona para poder respirar. Aquiles tomou fôlego e gritou:

— Rio divino, por que te metes em um assunto que não te diz respeito?

E conseguiu empunhar a espada, tentando inutilmente cortar as águas que o cercavam. Mas Escamandros, de cenho franzido, não lhe respondeu e fez desabar sobre o herói todo o fragor de suas águas. Aquiles, dando um salto, pôs o escudo às costas e tratou de fugir,amedrontado, para a planície, mas o furioso deus-rio não lhe deu tréguas e saiu em sua perseguição através de uma onda com o formato de um poderoso braço, a fim de fazê-lo perecer.

— Por mais que corras, Aquiles, não poderás fugir ao meu braço feroz, que só busca vingar a torva ofensa que fizeste aos deuses! Mesmo que teus pé ligeiros tentem levar-te, nada conseguirás com esse escudo preso às costas!

E o braço poderoso de Escamandros bateu violentamente nas costas de Aquiles e atirou-o longe. Mas este, ainda com muito vigor, assim que caiu novamente nas águas furiosas, agarrou-se em um olmo alto e frondoso, mas a árvore caiu, com as raízes, e fez desmoronar toda a ribanceira e cobriu a corrente com suas raízes, bloqueando a própria corrente, caindo inteiramente.

Então, estirando os braços de sólida musculatura, Aquiles, o descendente de Zeus, lançou-se com um grito de guerra ao peito portentoso do Escamandros furioso, bracejando em suas águas temperadas pelo sangue dos troianos. Após travar rude combate, num corpo a corpo viril com o próprio rio, conseguiu alcançar a margem.

— É inútil, Aquiles, não escaparás da minha ira! Onde puseres os pés, serás agarrado e trazido de volta ao meu leito!

Aquiles, virando-se, arremessou sua lança deixada à margem para atingir o vazio. Correu da inundação, e o rio, crescendo atrás dele, seguiu-o decididamente. Cada vez que o herói tratava de resistir, as ondas lhe açoitavam os ombros, e o chão se lhe afundava sob os pés. O deus-rio enfraquecia seus joelhos, fazendo correr suas águas velozmente em seu curso. E Aquiles, agarrando-se a um rochedo, voltando-se para o céu, gritou bem alto:

— Pai Zeus, por que permites que a fúria de um deus menor se sobreponha ao teu poder? Por que nenhum dos deuses procura livrar-me da fúria deste rio maldito? Minha mãe me enganou quando me profetizou que estava destinado a morrer pela flecha de Apolo, aos pés das muralhas de Tróia. Melhor seria morrer sob os golpes de Heitor, ele, o melhor dos homens deste país. Então, um valente mataria e despojaria outro valente! Agora, meu destino é morrer vergonhosamente, dominado por um rio furioso, como um pastor de porcos! Queres mesmo dar este lastimoso fim ao rompedor de muralhas?

Enquanto dizia isto, as águas do Escamandros já lhe agarravam os pés novamente. Porém, Poseidon e Atena dele se aproximaram e, cada um tomou uma de suas mãos e o encorajaram. Disse Poseidon:

— Aquiles, não tremas tanto, não tenhas medo, eis que, tais como somos, viemos em teu socorro, entre os deuses, mesmo Palas e eu, com a aprovação de Zeus, pois não é teu destino cair diante do poderoso Xantos, que vós humanos conheceis por Escamandros. Esta corrente dentro em pouco se retirará e tu mesmo saberás. Temos alguns bons conselhos para te dar, se queres ouvir. Não afastes tuas mãos da guerra, até que encurrales os guerreiros troianos, todos os que fugirem, dentro das muralhas de Ílion. Quando tiveres tirado a vida de Heitor, volta aos navios. Nós te glorificamos pela vitória.

Escamandros não se intimidou, e não deu a mínima aos deuses que vinham em seu socorro, e pensou em buscar ajuda ao seu irmão, o deus-rio Símoeis. Poseidon e Atena partiram e foram se juntar aos demais Imortais. E a deusa Héra, tomando uma decisão, surgiu ao lado do rei do Olimpo.

— Basta, meu tresloucado esposo! E foi ter com o seu filho Hefaístos, ocupado com os seus labores nas forjas do vulcão Etna.

A planície já estava parcialmente inundada, e Aquiles pôs-se a nadar para ali, eis que a ordem do deus grandemente o animara. Aquiles passou a avançar contra a corrente, e o deus-rio não conseguiu detê-lo, pois Atena incutia-lhe grande valor. Escamandros não conseguiu abater-lhe o ânimo, mas se tornou mais irado contra o herói, e levantou as ondas de sua crista, cada vez mais poderosas. E, com um grito, chamou seu irmão, o deus-rio Símoeis:

— Irmão, detenhamos juntos o ímpeto deste herói, eis que em breve ele saqueará a cidade de Príamos, e os troianos não resistirão. Ajuda-me e enche os teus canais com a água das fontes. Faze com que o leito do rio se dilate, e levanta uma forte onda. Produz um grande ruído e talvez possamos deter este homem furioso, que tem agora o poderio e ousa imitar os deuses. Afirmo que nem seu valor, nem sua beleza lhe valerão, nem sua bela armadura, que ficará enterrada na lama do mar. E quanto a ele próprio, eu o cobrirei de areia, lançando muito cascalho em torno dele, e os aqueus não saberão como recolher os assos, tal será a camada de lama em que os esconderei. Aqui será seu túmulo, e não haverá necessidade de cobri-lo com terra, quando os aqueus realizarem seus funerais.

Assim falando, investiu contra o filho de Peleus, com a furiosa inundação,cheio de espuma, sangue e cadáveres. A onda do rio subiu e iria arrastar Aquiles, quando Héra deu um terrível grito, temendo que o grande e turbilhonante Escamandros o afogasse e, sem demora, chamou Hefaístos:

— Depressa, Hefaístos, meu filho, eis que és tu quem o torrentoso Xantos deve enfrentar na batalha! Vai em socorro e emprega amplamente teu fogo. Entrementes, irei provocar no mar uma violenta tempestade do Vento Oeste e do Vento Sul, que queimará as cabeças e as armaduras dos troianos quando trouxeres as chamas sinistras. De teu lado, queima as árvores ao longo das margens do Xantos, e lança o fogo também contra ele, e não deixes que ele te desvie, por meio de palavras gentis ou de ameaças. Não cesses de empregar tua força, até que eu te chame, depois domina o fogo.

E Hefaístos, utilizando seus foles vigorosos, prontamente lançou um portentoso rio de fogo. A princípio, o fogo queimou a planície e consumiu muitos mortos que ali se amontoavam, abatidos por Aquiles, e toda a planície secou-se e a água foi contida. Então, Hefaístos dirigiu as chamas para o rio. Queimados os olmos, os salgueiros, os tamarizes, os lótus, os juncos e as ervas, as enguias e os peixes se afligiram e saltaram pelos canais, atormentados pelo calor do deus do fogo.

— Xantos, deus decrépito, pretendes fazer frente ao fogo insaciável de meus foles?

O deus ameaçou-o, sacando de sua portentosa aljava os raios forjados pelos Ciclopes em suas furnas. O choque dos dois exércitos, as chamas e as águas, abalaram o céu e a terra, e as águas do Escamandros começavam a chiar, lançando para cima uma gigantesca nuvem de vapor, fazendo subir peixes mortos aos milhares. Então, Escamandros, envolto pelas chamas, emergiu e gritou ao filho de Zeus e Héra:

— Hefaístos, cessa a ira! Nenhum deus pode enfrentar-te, e não lutarei contigo, quando lanças assim o teu fogo. Abandona tua ira. Que me importam as divergências dos troianos e de Aquiles?

E, enquanto ferviam suas águas, Escamandros dirigiu-se ainda, em súplica, à rainha dos deuses:

— Héra, por que teu filho caiu sobre a minha corrente? Não tenho tanta culpa quanto a têm rodos os outros que ajudaram os troianos. Em verdade, desistirei, se me ordenares, e se ele também desistir. Além disso, jurarei que não hei de adiar o dia da provação dos troianos, nem mesmo quando toda Tróia estiver incendiando, entregue ao fogo devorador, ateado pelos belicosos aqueus.

Héra, voltando-se para o filho, disse-lhe:

— Hefaístos, meu glorioso filho, afasta-te agora. Não continues torturando um imortal por causa de simples mortais.

Assim falou, e Hefaístos dominou o fogo e, novamente, as águas rolaram em sua correnteza. E Aquiles, extremamente exausto, deitou-se de bruços e, em seguida, voltou os olhos para o Céu em sinal de agradecimento.

A BATALHA DOS DEUSES

Quando o poderio do Escamandros foi dominado, Héra fez cessar a disputa, embora estivesse irada. Os demais deuses nutriam mútua hostilidade, estavam divididos, e se atiraram uns contra os outros com tal violência que toda a vasta Terra estremeceu e os Céus ressoaram como clarins poderosos. Zeus, no Olimpo, ouviu tudo aquilo e entristeceu-se ao ver que os Imortais investiam-se uns contra os outros, como muitas vezes havia acontecido noutros tempos.

Áres foi o primeiro a avançar. Empunhando a lança e o escudo, atacou Atena, lançando-lhe injúrias:

— Então, Atritônia, lanças os deuses uns contra os outros, com tua tempestuosa coragem? Por que tanto te incita o coração? Não te lembras de quando incitaste Diómedes a ferir-me e tu mesma, abertamente, empunhaste tua lança e a arremessaste contra mim e me feriste? Pois agora ajustemos contas, tu e eu, deusa indomável!

E investiu contra a terrível égide de Atena, que nem mesmo o raio de Zeus podia destruir. O sanguinário Áres arremessou contra ela sua lança, mas Atena esquivou-se e agarrou uma enorme pedra, a mesma usada pelos homens para marcar os limites dos campos cultivados. Com essa pedra, ela atingiu Áres no pescoço, e suas pernas fraquejaram, caindo como uma árvore no solo.

Atena deu uma risada e, vangloriando-se, disse:

— Louco! Não percebeste ainda que sou superior a ti e não podes medir forças comigo? Assim paga as censuras de tua mãe Héra, zangadíssima contigo por te haveres separado dos gregos e defendido os insolentes troianos, justo os gregos que te adoram!

Disse isso e desviou os olhos do deus, deixando-o ali mesmo. Mas Afrodite, compadecida, tomou-o pela mão e levou-o para fora do campo de batalha, pois se encontrava muito mal e gemendo muito, da maneira imortal.

Ao vê-la, Héra disse a Atena:

— Palas, não notas com que provocação a deusa do amor retira do tumulto o deus da guerra? Não a perseguirás?

A deusa guerreira não estimava Afrodite, visto que esta havia ofendido o irmão e esposo Hefaístos com a infidelidade, unindo-se ao deus Áres, união esta reprovada pela maioria dos deuses. Ademais, tanto ela quanto Héra haviam sido vencidas pela deusa do amor num concurso de beleza, tendo o troiano Páris por juiz. E Atena apressou-se em persegui-los, e, aproximando-se, bateu com força, com o punho cerrado, no peito de Afrodite, fazendo-a fraquejar e cair no chão, arrastando na queda o deus ferido. E disse-lhes:

— Tombem assim todos os que se atreverem a auxiliar os troianos! Se todos os nossos tivessem conseguido o que eu consegui, há muito que estaríamos sossegados e Tróia completamente aniquilada!

Héra sorriu de satisfação. Poseidon, aproveitando o momento, dirigiu-se a Apolo:

— Febo-Apolo, por que nos mantemos afastados se os demais iniciaram a luta? Seria vergonhoso para nós voltarmos ao Olimpo sem ao menos combatermos. Vai na frente, pois és o mais moço: não convém a mim, que nasci antes e sou mais experiente. Louco, como tu és insensato! Nem ao menos agora tu te lembras dos males que só nós, entre os deuses, sofremos em Ílion, quando, mandados por Zeus, como homens, para junto de Laómedon, o servimos durante um ano, mediante um salário, e ele nos dava ordens como se fôssemos seus escravos. Construí uma grande e bela muralha em torno da cidade dos troianos, para que ela se tornasse inexpugnável. E tu, Febo, pastoreavas o gado de chifres retorcidos, com tua túnica flutuante, nos vales do Ida. Quando, porém, chegou a estação de recebermos o pagamento do salário, o terrível Laómedon nos lesou de tudo e nos despediu com ameaças. Ameaçou amarrar nossos pés e mãos e mandar-nos para ilhas distantes, e cortar nossas orelhas a fio de espada. Assim, partimos com ira no coração, furiosos por causa da maldade daquele rei. Por isso, agora agradeces ao seu povo e não nos ajudas para que os insolentes troianos sejam levados à ruína, com seus filhos e mulheres.

— Ora, Poseidon, não poderias chamar-me de insensato se eu lutasse contigo por causa de desgraçados mortais, que, como as folhas, ora florescem com a chama da vida, comendo os frutos do campo, ora são levados pela Morte. Por isso, retiremo-nos sem demora da batalha e deixemos que lutem sozinhos.

Apolo, negando-se a erguer o braço contra o irmão de seu pai, deu-lhe as costas, deparando-se com sua irmã Ártemis, que ria com sarcasmo. E disse a Apolo:

— Foges, Apolo? Pretendes deixar a vitória a Poseidon? Tu deste a ele uma glória imerecida... irmão. Tu és um tolo, pois portas inutilmente este arco e estas flechas... Não quero mais ouvir tuas gabolices nos salões de nosso pai, como sempre fizeste, entre os Olímpicos, que podes combater Poseidon frente a frente.

Apolo permaneceu calado, muito confuso. Héra, percebendo, ofendeu-se com aquele sarcasmo, e interveio:

— Víbora desavergonhada! Quererás, porventura, medir as tuas forças com as minhas pelo fato de levares algumas flechas em tua aljava? Será difícil para ti enfrentar-me, já que Zeus te fez um leão entre as mulheres e te permitiu matar a quem quiseres? Sim, é melhor matar os animais, as feras e as corças selvagens, nas montanhas, do que lutar contra os que são mais fortes que tu. Se queres, porém, aprender algo sobre a guerra, já que és tão teimosa, disso poderás saber muito bem: que sou muito melhor que tu se medires tuas forças comigo...

Assim falou, agarrou Ártemis pelos pulsos, com a mão esquerda e, com a direita, arrancou o arco e a aljava de seus ombros, sorrindo, e bateu com eles em seu ouvido e as setas caíram todas no chão. Ártemis, chorando, afastou-se correndo, como uma pomba fugindo do falcão. Sua mãe Leto quis acorrer em seu auxílio, mas Hermes impediu-a, dizendo:

— Leto, não lutarei contigo, pois é difícil enfrentar as esposas de Zeus. Podes vangloriar-te entre os deuses de teres me vencido com tua força poderosa. Mas acalma-te...

Hermes proferiu tais palavras em tom apaziguador. Leto, inconformada, apanhou o arco, a aljava e as setas dispersas pelo chão, e com elas rumou para o Olimpo, em busca da filha. Foi à casa de Zesu e a encontrou sentada, chorando sobre os joelhos do pai, como uma criança. Zeus abraçou-a e, carinhosamente, perguntou-lhe:

— Quem, do Olimpo, ousou maltratar-te, querida filha, ainda que tenhas errado?

— Pai, foi tua esposa Héra. Ela bateu-me, ela por cuja culpa a Discórdia reina entre os Imortais.

Zeus desatou a rir, e acariciando Ártemis, dirigiu-lhe palavras de consolo. Entrementes, Febo-Apolo entrou na sagrada Ílion, eis que estava preocupado com o destino da muralha, receando que os gregos a rompessem naquele dia, antes do tempo. Os demais deuses voltaram ao alcantilado Olimpo: alguns irados e outros grandemente orgulhosos, e se sentaram ao lado de seu pai, que estava envolvido em nuvens escuras.

AQUILES E HEITOR DIANTE DE TRÓIA

Entretanto, Aquiles matava tanto os troianos quanto seus cavalos, parecendo um ceifador nos campos. O velho Príamos, de pé na torre, contemplava Aquiles arrebatando os troianos, cujo valor os abandonara. Ele os perseguia, sem que nenhum deus ou mortal ousasse impedir-lhe de prosseguir. Dando um suspiro, o rei desceu da torre, incitando os guardiões das portas, ao longo da muralha:

— Abri as portas e mantende-as abertas até que todos os que fogem entrem na cidade, eis que Aquiles os persegue e está bem próximo. Creio que ainda haverão muitas desgraças. Quando, porém, eles estiverem a salvo dentro das muralhas, e puderem respirar, fechai novamente as portas, para que aquele homem não entre.

Os guardas fizeram correr os ferrolhos, os dois batentes da porta se separaram, e as portas abertas trouxeram a salvação.

Mas enquanto os troianos, mortos de sede e cobertos de pós, corriam em direção das portas escaneanas, Aquiles os perseguia empunhando a sua lança. E, enquanto Aquiles combatia, em perseguição dos troianos fugitivos, muito perto das portas da cidade, um vulto radiante lhe chamou a atenção, e parou, permitindo que muitos se safassem. E, voltando os olhos para cima, nas ameias das muralhas, avistou uma jovem, que era uma das filhas de Príamos, Políxena, cuja formosura ofuscara os olhos do herói. Estupefato, passou, por um instante, a contemplar a belíssima troiana, e não pôde evitar de lhe dizer:

— Filha de Príamos, se estivesses disposta a ser minha, quem sabe se eu, por minha vez, não me disporia a tratar a paz entre teu pai e os gregos!

Lastimou, certamente, proferir aquelas palavras, lembrando-se do que devia aos seus e a seu amigo Pátroclos. Mas Políxena gravara-as no âmago do coração, e a partir desse instante, passara a nutrir secreto amor pelo inimigo de Tróia, e, desde então, Aquiles, quando pudesse, achegaria, de madrugada, aos pés daqueles muros, na esperança de revê-la, desejando-a desposar em dia.

Foi então que Apolo, aproveitando o momento de distração de Aquiles, decidiu salvar os seus protegidos, os que ainda estavam fora dos muros da cidade. O deus saltou para fora do muro, encontrando Agenor, um filho de Antenor, a fim de incutir-lhe coragem, e ele próprio, encostando-se a um carvalho e escondido em uma espessa nuvem, ficou ao seu lado, para salvá-lo do cruel destino. Ao ver Aquiles, Agenor parou e esperou, cheio de temor e pensou:

— Se eu fugir diante de Aquiles, como os outros fogem, ele me alcançará, de qualquer forma, e me matará. E, se eu os deixar fugir, e eu fugir para outra direção, para o vale do Ida, a fim de me esconder, poderei voltar a Ílion em outra ocasião... mas por que minha alma me diz isto? Que ele não me veja deixando a cidade para ir à planície, e, perseguindo-me, me alcançará. Não é possível evitar a Morte, eis que é mais forte do que todos os homens. Antes enfrentá-lo diante da cidade! Em verdade, ele também é feito de carne e ossos, que o bronze pode ferir, e deve ter uma alma dentro dele, pois dizem que é mortal, embora Zeus o glorifique.

Assim, preparou-se e esperou Aquiles aproximar-se, sem mais pensar em fugir. Manteve diante de si o escudo e, apontando a lança para Aquiles, gritou:

— Aquiles!

O pelida nada respondeu. Parecia hipnotizado, olhando para o alto da muralha. Agenor olhou também para o alto e viu Políxena, e encontrou aí uma boa oportunidade de desafiá-lo.

— Aquiles! Não esperes destruir tão cedo a cidade dos troianos, louco! Ainda há muitas provações a sofrer para sua captura. Eis que nós somos muitos e temos valor; lutaremos por Ílion, diante de nossos pais, esposas e filhos. E aqui encontrarás o teu destino, embora sejas um guerreiro terrível e muito bravo.

Aquiles, finalmente, voltou os olhos para o desafiador, com ar de desprezo, pois considerava que ele o teria tirado de uma agradável concentração. E preparou-se para um duelo.

Agenor arremessou sua lança, que foi atingir Aquiles na joelheira de estanho, ricocheteando, sem feri-lo. Então, o pelida investiu contra Agenor, mas Apolo não permitiu que o matasse, e o arrebatou e escondeu-o numa espessa nuvem, e o levou para longe da batalha. Depois, graças a um ardil, afastou Aquiles dali, pois o deus, com o aspecto de Agenor, colocou-se em seu caminho e correu, e o herói o perseguiu. Enquanto ele o perseguia pela planície coberta de trigais, seguindo-o ao longo do Escamandros e correndo apenas um pouco à frente, os outros troianos, em pânico e ainda perseguidos pelos gregos, mas distantes de Aquiles, conseguiram entrar na cidade. Estes nem mesmo esperavam os que estavam ainda fora da muralha, ou sabiam quem escapara e quem morrera na batalha, mas todos se precipitaram para a cidade, todos aqueles que os pés e os joelhos puderam salvar.

Assim, depois de fugirem como corças, os guerreiros, tanto troianos como aliados, enxugaram o suor e beberam para matar a sede, recostando-se nas ameias das muralhas. As mulheres e os anciãos foram-lhes ao encontro para abraçá-los e confortá-los.

Entrementes, os aqueus aproximaram-se da cidade, apoiando os escudos no ombro. Porém, o Destino incitara Heitor a ficar onde estava, não passando através das portas escéias. Ele e poucos guerreiros ainda não haviam entrado na cidade.