A Saga de Hércules

— Vamos, ladrão de galinhas, aparece!

Chegando a uma galeria profunda, o herói, com muito cuidado, para não ser surpreendido, olhava para todos os lados, para cada canto escuro.

Quando, de repente, o infeliz gigante, soltando um grito, tentou pegá-lo de surpresa, vomitando fogo pela boca. Héracles, esquivando-se, agarrou-o pelo pescoço e torceu-o até que o gigante desistisse. Esperto e ágil, conseguiu, tomando da espada, enterrou-a na garganta do monstro que caiu morto, exalando uma última fumaça pela boca. E, de uma pequenina língua de fogo que ainda exalava com seu último suspiro, Héracles acendeu um archote e, com ele, conseguiu finalmente encontrar os bois roubados.

Héracles levou os animais de volta até onde havia ficado Íolas, e não havia percebido que um dos bois havia fugido durante a luta e, entrando no mar, foi arrastado para a ilha vizinha daquele país. Quando Héracles notou a falta de um de seus bois, talvez o mais bela da manada, ficou furioso.

— Héra está ficando insuportável! Foi obra da deusa!

Certamente, Héra empurrava Héracles e seu navio para inúmeros perigos, com o fito de que, de um momento para outro, sucumbisse.

Os pastores rodearam Héracles, que os havia livrado de um dos bandidos mais temidos daquela terra. Evandros chegou e lhe agradeceu pessoalmente, e ouviu a narrativa dos que testemunharam o duelo do herói estrangeiro com o monstro Cacos. Então, Evandros percebeu que estava diante de um homem incomum, não só pelo porte e aspecto a que se apresentava, mas provavelmente era filho de um deus.

— Amigo, como te chamas? De onde vens?

— Meu nome é Héracles, sou filho do poderoso Zeus. Venho de Tebas, na Hélade, e sigo para Micenas conduzindo a manada de Gérion, o terrível gigante que está a caminho do Hádes.

— Oh, Héracles, filho de Zeus! Salve, sê bem-vindo! Sou Evandros, rei desta terra, e meu pai é o deus Hermes. Também vim da Hélade, há muitos anos atrás, para este país habitar. Minha mãe, Carmenta, que era uma autêntica intérprete dos deuses, predisse que tu haverias de aumentar o número dos habitantes do céu, e que te seria dedicado um altar neste sítio. A este altar, o povo que será o mais importante e poderoso de toda a terra lhe dará o nome de Ara Maxima, e te dará culto segundo o próprio rito.

Héracles respondeu oferecendo sua mão a Evandros como sinal de aceitação e amizade, e disse:

— Estou de acordo com tudo o que disseste, Majestade, exceto que eu mesmo erguerei o altar, não a mim, mas em honra de meu pai, a quem devo a minha vida.

Então, tomou um de seus bois e com ele celebrou o primeiro sacrifício ao deus seu pai. Em seguida, em memória de seu triunfo, Héracles ergueu o altar a Zeus-Sóter, Salvador, que mais tarde os romanos haveriam de chamar Ara Maxima. E Zeus lhes deus um sinal de aprovação: um trovão retumbou, e o povo inteiro explodiu em júbilos.

Havia duas famílias importantes naquelas paragens: eram os Pontitio e os Pinario. As duas foram convidadas ao banquete ritual que se faria depois do sacrifício. Sucedeu que os Potitio chegaram a tempo em que se servia a carne consagrada, enquanto que os Pinario chegaram tarde, após o banquete. Esse foi o motivo de que, a partir de então, a estirpe dos Pinario não poderiam participar dos banquetes rituais depois dos sacrifícios. Mas os Potitio foram nomeados por Evandros sacerdotes perpétuos para que celebrassem os sacrifícios em honra de Héracles. E assim seria até que não houvessem mais descendentes dessa família.

Para relembrar tal feito heroico, os habitantes da região passariam a celebrar, todos os anos, a partir de então, um festa em honra de Héracles. Inclusive Evandros, aconselhado pela mãe Nicóstrata, resolveu sanear o Palatino, depois que Héracles o livrou do temível Cacos. Carmenta, assim também chamada Nicóstrata por ser sacerdotisa que proferia seus oráculos em versos, era considerada por muitos uma ninfa, já havia contribuído de forma essencial para o desenvolvimento daquela gente: levou para a Itália o alfabeto arcadiano e inúmeros conhecimentos úteis à vida de um povo tão ignorante, que eram os Aborígenes. Mais tarde, Roma, reconhecida, atribuiria ao seu culto um dos sacerdotes mais venerados pelo povo, o flamen carmentalis. E passaria a ser venerada como deusa tutelar das crianças, presidindo aos nascimentos.

Não bastasse a admiração daquele povo pelo seu novo herói, durante a viagem de Héracles pela Itália, alguns habitantes de Alba decidiram acompanhá-lo para o Oriente. Eles seguiriam para além da Hélade e chegariam até a longínqua região do Cáucaso, onde fundariam um reino, a Albânia.

Héracles, pensando seriamente em recuperar o seu boi desaparecido, desceu com seus companheiros e alguns albanos para o sul da Itália. Chegando na terra dos Sabélios, o rei daquele território, Cróton, filho de Féax e Peribéia, acolheu os viajantes e deu-lhes pouso e um farto banquete. Lócros e Alcínous eram seus irmãos. Tinham um meio-irmão chamado Rexénor, filho de Nausítoos. Quando residiam na ilha de Córcira, Cróton e Lócros se desentenderam com Alcínoos, e resolveram deixar Córcira para o irmão e foram para a Itália, onde foram bem recebidos pelo rei Lacímnios, filho da ninfa Círene, que deu a Lócros a mão de sua filha Laurine em casamento e uma terra para reinar.

O rei vizinho, Lacímnios, tentou roubar a manada. Héracles, que se preparava para cruzar o estreito em direção da Trinácria, saiu em perseguição ao ladrão. Cróton e Lócros, pensando em dar auxílio ao hóspede, também foram em seguida procurar os bois que haviam sido furtados. Entretanto, Héracles, pensando que seus anfitriões era guerreiros que vinham em socorro de Lacímnios, matou-os a flechadas. Héracles, reconhecendo o erro, deu sepultura a ambos e teve ainda tempo de recuperar seus bois e matar o verdadeiro ladrão. Em seguida, como expiação, Héracles construiu aos reis Lócros e Cróton um túmulo imenso e um templo dedicado ironicamente a Héra-Lacímnia, e profetizou que naquelas paragens surgiria uma grandiosa cidade chamada Króton (a futura Crotona).

Héracles e seus companheiros, conduzindo a manada, atravessavam o estreito de Messina. O filho de Zeus mal conhecia aquele lugar. Apenas sabia do que havia ouvido falar. Os albanos, conhecedores dos perigos daquele estreito e daquele mar, passaram todas as informações necessárias para que se preparassem.

— Cila, filha de Fórcis e Hécate, era uma ninfa muito bela, pela qual se apaixonou o deus Glaucos. Não sendo correspondido, Glaucos pediu à feiticeira Circe um filtro do amor. Circe, a filha do Sol, amava Glaucos e quis prejudicar a rival. Circe deu ervas mágicas ao deus; por sua vez, pensando ser coisa boa, Glaucos atirou-as na fonte onde a ninfa costumava banhar-se, e ela foi transformada num monstro de seis cabeças, com a parte inferior formada de seis cães ferozes e doze patas. Seus uivos contínuos causavam horror aos viajantes. Assim sendo, horrorizada, a ninfa, ou melhor, o monstro atirou-se no mar e veio habitar neste estreito. Inseparável de Cila, a ninfa Caríbdis, filha de Poseidon e Géa, a acompanhou e veio com ela viver e alimentá-la.

— Que história horrível...!

— Sim. Ao atirar-se no mar, passou a habitar uma grande caverna em uma rocha coberta de névoa, lisa e escorregadia. Logo chegaremos ao lugar onde Caríbdis e o monstro vivem.

E, em pouco tempo, atravessando densa camada de névoa, avistaram uma grande caverna no meio do estreito. Avisado pelos albanos, Héracles orientou seus remadores a manterem certa distância da caverna, apenas tomando o cuidado de desviar-se dos recifes, que estreitavam a passagem do barco para o outro lado. Tendo que parar numa das rochas para que Héracles pudesse abrir caminho derrubando alguns recifes, surgiu Caríbdis, a ninfa, que tentou raptar os bois, com o fito de acumular farta refeição para a sua amiga Cila. Mas Zeus, de cima das nuvens, lançou um raio e fulminou Caríbdis, transformando-a num terrível sorvedouro, um turbilhão, que, três vezes ao dia, sua goela abriria-se, engolindo as ondas do mar, e, a seguir, as vomitaria com ruído formidável. Héracles e seus amigos testemunharam tal transformação. E as ondas lançaram o navio para perto da caverna que, inevitavelmente, entrou e ficou frente a frente com Cila. Esta, furiosa com o que havia acontecido com Caríbdis, atacou os marinheiros e conseguiu abocanhar alguns. Héracles, mais do que depressa, lançou suas setas envenenadas contra o monstro, que sucumbiu. Então, livres do monstro, os marinheiros continuaram sua viagem rumo à Trinácria.

Pouco mais tarde, com grandes tochas acesas, Fórcis realizaria mágicas e faria a filha ressuscitar. Então, Cila e Caríbdis passariam a formar um terrível obstáculo na passagem obrigatória daqueles que pretendiam cortar caminho pelo estreito rumo ao outro lado da ilha. Era quase inevitável: evitar Cila para enfrentar Caríbdis, ou livrar-se de Caríbdis para cair nas mandíbulas de Cila.

A deusa Héra havia desgarrado um dos bois da manada de Héracles, e levou-o até a Trinácria, onde um homem poderoso dos hélimos, chamado Érix, filho de Butes e de Licasta, encontrou-o e tomou-o para si. E imediatamente juntou-o aos seus rebanhos particulares. Foi por isso que uma de suas cidades, Rhegion, mais tarde, levou esse nome, que significa “soltar-se”. E o país, onde o herói Héracles se encontrava, foi então chamado de Vitália, (sendo que uitulus era o nome nativo do novilho), para não dizer que Itália já era o nome daquele país, devido ao seu civilizador, Ítalos.

Héracles, atraído pela deusa, foi ter com Érix, que levava fama de ser o mais forte pugilista daquela terra. Quando pediu a devolução do animal, Érix, que era rei de Erícia, caiu em gargalhadas e respondeu que só o devolveria se o herói o derrotasse em um combate singular. Era um homem muito popular na Trinácria. Apelidado Veno, era neto do vento Bóreas, desfrutava da maiores honras, era o principal atleta do país e o povo o adorava.

Então, eles lutaram pela primeira vez, e Héracles saiu vencedor. Mesmo assim, o teimoso Érix não devolveu o animal, prometendo que o entregaria se fosse derrotado pela segunda vez. Entretanto, só depois da terceira derrota, no qual o rei sucumbiu, foi que Héracles conseguiu reaver o que pertencia. Esse fato serviu de apelação aos espartanos quando o Império Romano invadiu a Grécia.

Héracles pôs o boi nas costas e foi encontrar-se com os seus companheiros, que se encontravam na praia, a sua espera.

Com a morte de Érix, o povo de Erícia pôs seu nome ao monte no qual viviam, a fim de homenageá-lo. Hoje chama-se Trápani, onde antes havia um culto à deusa Afrodite. Érix foi posto no rol dos semi-deuses do país, como filho de Poseidon e Afrodite.

Leucáspis, um príncipe sícano, travou combate contra Héracles, quando este ainda se encontrava na Trinácria. Na luta, Leucáspis e seus súditos foram mortos.

O seu povo, para homenageá-lo, passaram a venerá-lo como um deus.

HÉRACLES NA GIGANTOMAQUIA

Voltando confiantes em direção da Hélade, no meio do caminho ainda havia o profundíssimo e violento rio Estrímon para atravessar. Primeiro, encheu-o de pedras, formando pequenos diques, a fim de torná-lo menos violento, pelo menos até que conseguirem atravessá-lo. Tal atitude tornaria o Estrímon inavegável. Em seguida, Héracles arrancou árvores pela raiz, uniu-as com cipós, construíram uma balsa e, afinal, depois de várias travessias perigosas, conseguiram levar o gado para a outra margem.

— Finalmente, rumo a Micenas!

E foi neste país que os albanos se separaram dos demais, decidindo seguir viagem para o Oriente, onde o Destino havia-lhes preparado um lugar para ficar e perpetuar.

A deusa Héra, ocupada ora com os problemas de Héracles ora com a luta contra os Gigantes, voltou a profetizar aos Olímpicos, quando os filhos de Géa mostravam superioridade e ameaçavam invadir novamente a Hélade e conquistar o Olimpo.

— Agora, somente um campeão, mortal com pele de leão, virá nos salvar.

Héra não suspeitava, mas referia-se única, exclusiva e ironicamente a Héracles, seu maior inimigo. Por isso, Zeus contaria com a realização dos últimos trabalhos de seu filho para entrar na batalha. E, mesmo que soubesse se tratar de Héracles, Héra teria, com isso, mais uma série de oportunidades para livrar-se do filho de Zeus e Alcmena.

Os Gigantes, na sua maioria, eram filhos da Terra, nascidos do sangue de Úranos, mutilado por Cronos. Mas mesmo de origem divina, eram mortais e viviam entre os homens. Géa, a Terra, havia produzido uma erva mágica, que os curava de golpes mortais. Zeus, porém, juntou nuvens escuras e proibiu o Sol, a Lua e a Aurora de brilharem, para que ninguém encontrasse a planta antes que ele se apoderasse dela. Esses Gigantes, com serpentes em vez de pernas, revoltaram-se contra Zeus e resolveram atacar ainda com mais fúria o Olimpo.

Mas o Oráculo já havia sido anunciado: os Deuses jamais venceriam se não tivessem o concurso de um mortal poderoso; um deus e um mortal deveriam matar cada gigante ao mesmo tempo. Esse homem, certamente, não se tratava de Prometeus, que, mesmo vivendo por séculos, era mortal; ele se encontrava acorrentado no Cáucaso e não faria parte da batalha. E Dionisos estava distante, em terras longínquas, ocupado com seus ritos orgíacos e suas bebedeiras coletivas. Restava um semi-deus à altura de vencer os Gigantes, e Héra não imaginava que seria aquele a quem mais odiava.

Então, preocupado, Zeus chamou sua filha Atena e, após uma longa conversa a sós com ela, mandou-a buscar Héracles, o herói da pele de leão.

Finalmente, Héracles e seus companheiros entraram na região dos Campos Flegreanos, na Macedônia. Depararam-se com um gigante que estava decidido a matá-los, lançando contra eles enormes pedras. Íolas e os outros tomaram conta dos bois, enquanto que Héracles tomava a frente, armando-se de arco e flechas.

Alcíon era o nome do gigante e tratava-se do líder da rebelião que se sucedia pela posse do Olimpo. Era muito maior que o herói e parecia superá-lo também em força. Mas Héracles não teve medo e, colocando uma flecha em seu arco, atirou contra Alcíon, que caiu duro no chão, mas reergueu-se em seguida, revivido pelo contato com sua mãe, a Terra.

E Atena, sabendo do poder do monstro, gritou:

— Depressa, Héracles! Essa criatura recupera as forças quando está em contato com sua terra natal. Os Gigantes atraíram os deuses do Olimpo para este país e pretendem derrotá-los.

O filho de Zeus, inspirado por Atena, lembrou-se de Anteus e percebeu que teria que arrastá-lo para longe do território de Pálene, onde Géa imperava protegendo seus filhos. Héracles, agarrando-o pelos cabelos, arrastou-o para as regiões além da Trácia, nos confins da Cítia, eo espancou a golpes de clava.

De repente, ouviu-se uma explosão de gritos desesperados. Eram as sete filhas de Alcíon, as Alcíones, em sua grande mágoa. Elas, amalucadas, atiraram-se ao mar e foram metamorfoseadas em pássaros, os alcíones.

Héracles e os seus, recuperados do choque, foram encontrar-se com os que haviam ficado na costa da Ilíria, agora com um número bem reduzido de tripulantes. Desceram para o Heptanesos, nas costas da Hélade, a ocidente da Acarnânia. Perto dali reinava Laertes, que lhe deu hospitalidade. Laertes ficou muito contente ao saber que era Héracles quem visitava seu país, a Ítaca. Laertes era filho de Arcésios, o quinto filho de Céfalos, rei da Cefalênia. Céfalos havia sido amigo e aliado de Anfitríon, pai mortal de Héracles.

Depois de pernoitarem, seguiram viagem rumo a Tebas. Porém, mal saindo do Heptanesos, Zácintos, em herói beócio, foi picado por uma serpente e morreu. Héracles, querendo homenageá-lo de forma mais suntuosa, enterrou-o numa das ilhas, que levou o nome de Zácintos, a futura Zante.

Em seguida, Héracles e seus amigos levaram a manada para Tebas. Depois, tomaram o caminho em direção de Micenas, onde, no caminho, encontrou-se com Télamon, seu amigo.

Chegando no istmo de Corinto, acamparam para dar pasto e água aos animais. Os habitantes da região, sabendo da chegada do herói, enviaram para ele doze carros ricamente carregados, a fim de honrá-lo.

Mas um certo Alcioneus, um dos comandantes dos Gigantes, que lá habitava, ao saber que Héracles lá se encontrava, desejou matá-lo. Ajudado por sua mãe, tomou os caminhos subterrâneos e chegou ao Istmo antes de Héracles para lá esperá-lo. Alcioneus, então, já o esperava algum tempo, avisado pela mãe Géa que fora o assassino de seu irmão Anteus.

O gigante arrebatou os doze carros destinados a Héracles e, com uma enorme pedra, esmagou com um só golpe vinte e quatro pessoas da comitiva de Héracles, e alguns bois. Em seguida, avançou contra Héracles, que, apanhando uma de suas flechas envenenadas, atirou-a contra o seu gigantesco corpo, fazendo-o tombar por terra, mas não logrou fazer-lhe algum mal. Por sua vez, Alcioneus ergueu-se do chão e lançou contra o herói um rochedo, que este conseguiu aparar com sua maça. O rochedo dividiu-se em dois, demarcando os limites do Itmo com a Beócia.

Héracles pensou em enfrentá-lo corpo-a-corpo, mas Atena sussurrou-lhe ao ouvido, pedindo que fugisse, pois naquelas paragens Alcioneus era invencível. Por isso, Héracles voltou as costas para o gigante e correu para os limites da Beócia. Passou pelos rochedos, cruzou a fronteira e esperou-o do outro lado para o duelo final. Alcioneus hesitou em cruzar os limites de sua terra, mas Héracles provocava-o, tanto que Alcioneus não hesitou mais, e avançou furiosamente. Logo que pôs os pés na Beócia, Alcioneus começou a sentir os efeitos maléficos da flecha envenenada de Héracles. Este, percebendo que o gigante enfraquecia, partiu contra o ele e matou-o a pauladas.

Então, Héracles, certo de seu dever cumprido, realizando dez provas em oito anos e um mês, ele e seus companheiros retornaram a Micenas, tangendo os bois que restavam. Desse modo, Héracles deveria ter sido libertado de se curvar perante Euristeus e, assim, voltar a levar uma vida comum, de homem livre. Porém, a conselho de Héra, Euristeus disse-lhe:

— Tu não executaste meu segundo trabalho adequadamente, pois descobri que teu amigo Íolas te ajudaste a matar a Hidra. Não cumpriste direito teu quinto trabalho, porque Áugias te pagaste por haver limpado os seus estábulos. E onde estão todos os bois de Gérion? Só me trouxeste alguns...

— Mas que injustiça!

Héracles reclamou, batendo no peito. E continuou:

— Eu chamei Íolas porque Héra interferiu, mandando um caranguejo morder meu pé. E, embora Áugias tivesse apostado comigo como eu não poderia limpar seus estábulos em um só dia, do mesmo jeito eu teria realizado o trabalho. Quanto aos bois, na verdade pertenciam aos povos vizinhos daquela terra, e tive que devolver a maior parte; os que te trouxe foram-me dados por gratidão e para que eu pudesse cumprir minha missão...!

— Nada de discussões, súdito! Tu fizeste a aposta, de modo que, em vez de trabalhar só para mim, recebeste vinte vacas de outro homem.

— Bobagem, rei Euristeus! Áugias se recusou a me pagar, dizendo que não fui eu e sim os deuses-Rios que fizeram o trabalho!...

— E tens toda a razão. Esse trabalho não pode ser contado como sendo obra tua. Nem cumpriste o último trabalho como deverias. Assim, tu terás de realizar mais duas tarefas...

— ... Mas levarei o tempo que eu precisar.

Euristeus pensou... e concordou, acenando a cabeça.

— Tudo bem, rei Euristeus. E, se eu viver para terminá-los, fica longe de mim, pois será pior para ti e tua família. Porém, antes, tenho um inadiável serviço a prestar a meu pai.

Então, Héracles, inspirado por Atena e acompanhado de seus amigos Cástor e Polideuces, foi em auxílio dos deuses, que, neste momento, sofriam a dura e impetuosa ação dos Gigantes, que empurravam os Olímpicos de volta ao monte Olimpo. Lá, fizeram uma imensa pilha de rochedos junto às íngremes muralhas do palácio para, de cima delas, poder saltar para o interior e assumir o poder do Universo.

Enquanto Héracles seguia para a Tessália, Euristeus mandou que sacrificassem os bois de Gérion em honra da deusa Héra.

O gigante Porfírion, agora o líder da rebelião contra os Olímpicos, já que Alcíon e Alcioneus haviam sido derrotados, tentou estrangular a deusa Héra. Éros, porém, cego e imprudente, atravessou-lhe o coração com uma flecha de seu pequeno arco, o que fez com que ele se apaixonasse perdidamente por ela e, agarrando a mão da deusa, cobriu-a de beijos babados. Zeus, indignado, lançou um raio em Porfírion, que o interceptou ao atingir seu escudo, e tornou a beijar Héra, desta vez nos lábios, como um estupro. Héracles voltou, acompanhado de Cástor e Polideuces, justo a tempo de quebrar o pescoço do gigante e segurá-lo fora do chão até que morresse. Héra, sem o dizer, ficou muito agradecida ao seu inimigo, e sem demonstrar.

O deus Áres conduzia o seu carro de guerra, com os cavalos relinchantes, em meio à multidão densa de inimigos que contra-atacavam. Seu escudo dourado reluzia mais do que o fogo, e o penacho alto de seu elmo oscilava, brilhante. Em meio à confusão da batalha, ele perfurou o gigante Péloros, cujos pés eram duas serpentes enormes. Em seguida, esmagou os membros do gigante caído com seu carro. Ainda meio tonto, tentou levantar-se, mas Áres atravessou-lhe o gládio em um dos olhos.

Mas um dos Gigantes, Efialtos, com seus olhos enormes, vendo o irmão cair, agarrou a ilha de Lemnos para atirá-la contra o deus. Áres foi atingido na cabeça, e caiu de joelhos, gemendo de dor. E Héracles, virando-se para Apolo, sugeriu-lhe:

— Eis aí alvos bem visíveis para as nossas flechas!

Áres foi salvo por seu irmão Apolo, que atirou uma seta no olho direito do gigante, enquanto Héracles atingia-lhe o esquerdo.

No mesmo instante, Hefaístos cegou Mimas com uma colherada de ouro derretido que lhe atirou ao rosto. Então, Héracles agarrou os dois Gigantes e correu com eles, levando um debaixo de cada braço, até cruzarem a fronteira, onde espancou-os, batendo-lhes na cabeça.

Enquanto prosseguia a batalha, Afrodite se escondeu em um guarda-roupa, e Deméter e Héstia ficaram tremendo junto a uma das janelas do palácio. Ártemis pulava de um lado para outro flechando os Gigantes nos lugares mais inconvenientes. Grátion foi um deles.

Atena procurou enfrentar o gigante Ágis, que vomitava chamas com uma fumaça negra e espessa, que já havia desolado a Frígia, o monte Cáucaso, cujas florestas queimou até a Índia, depois a região montanhosa dos fenícios, o Egito e a Líbia, mais ou menos o que Faéton, filho de Hélios, já havia feito antes, ao pretender conduzir o Carro do Sol.

Morria também Dâmisos, o mais veloz e o mais ágil dos Gigantes, enquanto que a deusa Hécate fazia morrer, a golpes de tochas, o terrível gigante Clítios, ambos com o golpe de misericórdia de Héracles.

Despertadas pelo barulho, as três Moiras abandonaram sua sala de fiar e correram para a cozinha, onde cada uma se armou com um pilão de ouro, do tipo usado para amassar salsa ou alho em um almofariz, o que levou todos os Gigantes a fugirem, porque entendiam que não havia ninguém que pudesse lutar contra as que decidiam o Destino de todos os seres. Suas vítimas foram os Gigantes Tóon, Ágrios e Toas, e Héracles, com suas flechas, teve que ajudá-las.

Chegava a comitiva de Dionisos para auxiliar os Deuses na batalha. O deus, armado de tirso, atingiu Êuritos, e Héracles desfechou o golpe mortal. E o mesmo fim teve Alpos, um gigante oriundo da Trinácria, que tinha muitos braços e cem víboras na cabeça; morreu, e seu corpo foi agarrado pelas ondas do mar. Enquanto isso, Dionisos transformava-se em leão e ia dilacerar com seu tirso o gigante Retos, enquanto Héracles o abatia com sua maça.

O gigante Damástor, não tendo mais armas, depois de ter lançado todas as árvores e rochas que estavam ao seu alcance, usou o corpo de um irmão seu, petrificado por Atena, e lançou-o contra os Deuses.

O asno de Sileno pôs-se a zurrar com tal força que o exército de Gigantes que ainda insistia em lutar, horrorizado, fugiu. Porém, conseguiram ferir de morte Dionisos, estraçalhando-o. As partes de seu corpo semi-deus foram levadas para a deusa Deméter, que lhe devolveu a vida. Daí, foi considerada, depois de Sémele, sua mãe imortal.

Os Olímpicos atiravam tudo o que estivesse à mão sobre o inimigo em retirada para a ilha de Cós. Uma imensa pedra arrancada da ilha e atirada por Poseidon, esmagou Políbotes, caindo no mar, enquanto uma flecha de Héracles lhe feria o peito, e foi transformada na ilha de Nísiros.

Os Gigantes armaram sua última resistência em Trápesos, na Arcádia. Poseidon, Zeus e Áres — que até então não haviam brilhado muito, seguidos de Héracles, passaram a lutar ferozmente, com tridente, raios e dardos, respectivamente, enquanto Hermes, que pedira emprestado o elmo de invisibilidade a Hádes, apunhalava o inimigo Hipólitos por trás.

Pálas foi morto por Héracles e esfolado por Atena, que se serviu de sua pele como uma couraça. Também tombava seu irmão Córidon.

Enfim, o último foco de resistência, na Arcádia, foi vencido. Os últimos Gigantes, então, ali morreram, dando lugar a que todavia hoje os árcades os recordam quando em seus trabalhos agrícolas afloram grandes pedras às que chamam “ossos de Gigantes”.

A guerra só acabou com a derrota do gigante Encélados, filho de Tártaros e Géa, que havia assumido a liderança pela morte de Porfírion. Encélados foi atropelado pelo carro de Atena. Ferido, tentando fugir, conseguiu chegar na Trinácria, mas foi perseguido, semi-fulminado e sepultado por Zeus no monte Etna, onde ficaria prisioneiro para sempre.

Héracles, no entanto, matou mais Gigantes do que todos os deuses juntos, e Héra, logo que a batalha terminou, aproximando-se, agradeceu a ele por tê-la livrado do repugnante Porfírion. E acrescentou:

— Sinto-me envergonhada pelo mal que tenho praticado.

E Héracles reverenciou, notando a falsidade da deusa:

— Ora, esquece, rainha.

Mas Héra não esquecia. Era apenas uma fachada para o mal que ainda viria. Héra torcia por seu fracasso e pretendia matá-lo com os dois últimos trabalhos que Euristeus o mandaria realizar. E, com o objetivo de alcançar a sua liberdade, Héracles seguiu o seu caminho. Os deuses voltaram para o Olimpo para organizá-lo e reconstruir o que havia sido destruído. E o banquete interrompido pôde prosseguir. Em volta do trono de Zeus, deuses e deusas reencontraram sua alegria, tomando sua bebida habitual, o néctar, e deliciando-se com seu petisco favorito, a ambrosia. Afinal, ao se tratar de banquetes, o que importava para eles o mundo lá fora?

QUÍRON FERIDO POR HÉRACLES – TEIODAMAS

Andando pela Tessália, Héracles, ainda não esquecido do episódio do combate que tivera contra os Centauros, na casa de seu amigo Fólos, que causou a sua morte, teve outro encontro com os Centauros que ainda restavam na Hélade. Atacou-os a flechadas e os fez fugir para Maléia. Lá estava morando Quíron, o mais sábio de todos de sua raça e também amigo de Héracles. O herói estava irado; seguiu-os até Maléia e, mesmo nos domínios de Quíron, continuou a persegui-los.

Aconteceu que uma das suas setas atravessou o braço de um dos Centauros e ficou pendurada num dos joelhos de Quíron. Héracles arrancou a flecha e passou na ferida um remédio, que o próprio Quíron, conhecedor da medicina, preparara. Mas a ferida com o veneno da Hidra era incurável e viria a acarretar-lhe terríveis sofrimentos — Quíron pertencia à raça dos imortais, ao contrário dos demais Centauros, e não podia morrer, tendo que suportar a dor de seu ferimento por toda a eternidade.

Com isso, o desespero de Héracles, nessa ocasião, não teve limites. Em meio às lágrimas, despediu-se e prometeu que, a todo custo, lhe enviaria a Morte, e para vingá-lo, voltou-se contra os Centauros com fúria ainda maior. E poucos se salvaram: só os que conseguiram alcançar um promontório, em Maléia, onde o deus das águas, Poseidon, transportou-os para a ilha das Sereias, a ocidente da Hespéria. E foi nessa ilha que se extinguiu a raça dos Centauros, filhos de Íxion e Néfele.

Héracles chegou ao país dos dríopes, aonde se encontrou com seu rei, Teiodamas, que estava lavrando a terra com seus servos. Faminto, se dirigiu a ele para que lhe concedesse algo que comer, mas este se negou. Héracles, indignado pela falta de bondade do rei, roubou um de seus bois, matou-o e o devorou. O rei, vendo que o invasor era poderoso e muito perigoso, partiu em busca de ajuda e atacou o herói com um destacamento. Mas Héracles venceu a todos e matou Teiodamas. Em seguida, entrou em sua cidade, saqueou-a e raptou o filho do rei, Hilas, e fê-lo seu servo, que, aos poucos, se tornou seu amigo e escudeiro.

Talvez devido à tristeza que sentia pelo destino de seu amigo Quíron, ou ainda por todas as perseguições que sofria, mesmo depois do auxílio que prestara à deusa Héra, o filho de Zeus começava a atormentar-se a cada obstáculo que lhe atravessasse o caminho, principalmente no que envolvesse a sua própria família, que era algo que jamais poderia suportar. E Héra preparou-lhe uma nova armadilha com o objetivo de lhe anular o ânimo e não conseguir realizar as últimas tarefas, o que lhe causou profundo sofrimento: voltando a Tebas, Héracles surpreendeu sua fiel esposa Mégare nos braços de outro homem. Terrivelmente furioso, matou-o e recambiou sua esposa para a casa de Créon, declarando que a partir daquele momento não mais seria sua esposa. Relembrava, porém, como haviam sido felizes no passado e sofreu amargamente com a separação.

A EXPEDIÇÃO DOS ARGONAUTAS

Em Iolcos, Jáson, desafiado por seu tio Pélias a ir buscar o famoso velocino de ouro na longínqua Cólquida, resolveu aventurar-se, convidando os melhores homens da Hélade para uma expedição. Foi em busca de heróis desde a Trácia até a Messênia, e das ilhas do Arquipélago ao Épiros. Entre eles, haviam guerreiros, príncipes, artesãos, áugures, marinheiros, pastores e pescadores. Alguns nobres, outros, homens do povo. Eram muitos, havia bem mais de cinqüenta, quase cem. Jáson procurou convidar seus melhores amigos, a maioria deles discípulos do centauro Quíron, e outros indicados por eles para fazerem parte, por algum ou outro motivo. Outros ainda, sem mesmo serem convidados, sabendo da novidade, resolviam inscrever-se. Aos amigos, Jáson dizia-lhes:

— Desejas compartilhar a aventura do Tosão de Ouro?

E Héra tocou o coração dos príncipes, e eles deixaram seus vales e vieram para as areias amarelas de Págasai.

Héracles, ouvindo falar da grande expedição que pretendia se empenhar Jáson e um grande número de heróis da fina flor da juventude helênica, em direção do Oriente, resolveu ausentar-se de Tebas e do convívio de Mégare, também aproveitar e preparar sua expedição contra Tróia e seu rei, Laómedon. Por isso, decidiu juntar-se a eles e com eles aventurar-se. No entanto, os planos de Héra falharam, pois Héracles caiu em si, lembrando que um dia fora perdoado pelo assassínio de filhos seus, e Mégare foi a primeira a receber-lhe de braços abertos. Era hora de resignar-se e procurar ouvi-la, e assim soube que o homem que com ela encontrou era um instrumento da deusa Héra para lhe prejudicar. Com a ajuda de testemunhas, Mégare provou-lhe ter sido usada num embuste, e havia sido violada por um homem estranho e sedutor quando Héracles foi-lhe ao encontro. O herói, convencido de sua fidelidade, encheu o peito voltando o olhar para o Céu. Quis atirar os piores ultrajes à deusa, mas manteve-se firme em respeito ao pai.

Então, adquirindo ainda mais vontade de prosseguir e alcançar a Glória, despediu-se de sua querida esposa e de seus filhos, e, acompanhado do sobrinho Íolas e seu criado Hilas, foi visitar um amigo, Télamon, filho de Éacos.

Ao visitá-lo em sua casa, na Salamina, encontrou-o à mesa. Télamon levantou-se da mesa, ofereceu ao bem-vindo hóspede e amigo uma taça de ouro cheia de vinho e convidou-o a sentar-se com ele. Em longa conversa, Héracles tocou no assunto, que, certamente, atiçou a vontade de Télamon a fazer parte das expedições, tanto de Jáson quanto de Héracles.

— Sim, Héracles, temos de acertar contas com o rei Laómedon de Tróia, porque, quando lhe salvaste a filha do monstro que ia devorá-la, se recusou a entregar a recompensa prometida. Se ele ofendeu ao meu melhor amigo, ofendeu também a mim.

— É, meu amigo, e lembro-me lhe haver dito um dia, voltaria para buscar o que me pertence. Esse dia, penso eu, já chegou.

Logo, apareceu um menino, Ájax, filho de Télamon. Apesar de sua tenra idade, tinha um porte superior aos demais meninos da cidade, que o fazia especial. Héracles, atraído pela curiosidade e vê-lo como um herói, envolveu-o na sua pele de leão e pediu a Zeus:

— Zeus, meu pai, se alguma vez ouviste com misericórdia as minhas preces, concede a Télamon a alegria de ter um filho corajoso e invulnerável como eu, que está sob a pele do Leão de Neméia!

Mal terminou de pronunciar essas palavras, Zeus enviou-lhe uma majestosa águia. E Héracles dirigiu-se a Télamon:

— Sim, Télamon, meu amigo, este é teu filho, que te honrará e será o melhor entre os melhores. Ájax é um nome forte, e o poder de Zeus paira sobre seus ombros.

O jovem Ájax tornou-se invulnerável, o que em parte foi concedido, pois excetuavam as partes que sustentavam o carcaz, nos ombros, nas costas e também a parte das axilas.

Dias se passaram, e o primeiro a chegar em Iolcos foi Héracles, com sua clava, vestido de pele de leão, acompanhado por seu sobrinho Íolas e Hilas, o jovem escudeiro, que carregava suas flechas e seu arco; assim que soube que era Jáson quem o convidava, partiu imediatamente. E o coração de Jáson pulou de alegria ao vê-lo se aproximar.

— De todo o coração me rejubilo em ver-te, pois aceitaste o meu convite.

Em seguida veio Butes, o mais belo dos homens; e Cástor e Polideuces, os gêmeos, filhos do Cisne encantado; e Ceneus, o mais forte dos mortais, depois de Héracles; e depois vieram Zetes e Cálais, os quais, havia um boato, eram filhos do Vento, e ninguém jamais ouvira falar de alguma façanha que tivessem realizado. Jáson conhecia-os pela boca do velho Quíron, que dizia-lhe terem um destino pré-estabelecido, e que Jáson precisaria um dia da ajuda dos filhos do Vento.

E assim, surgiram outros convidados e voluntários, muitos deles príncipes, como os irmãos Peleus e Télamon, também Oíleo, e Mopsos, o sábio adivinho, que conhecia a linguagem dos pássaros; e Ídmon, a quem Apolo concebera o dom de predizer o futuro; e Anceus, que sabia ler as estrelas e conhecia todos os círculos dos céus, e muitos outros heróis, revestidos de elmos de bronze e ouro, com longas cimeiras de crinas de cavalo, tintas em cores vivas, túnicas de linho bordadas sob as couraças de malha, e grevas de estanho polido para proteger os joelhos durante as batalhas; cada qual trazia um escudo sobre o ombro, feito de tiras sobrepostas de sólido couro de boi, e no cinto guarnecido de prata uma espada de bronze temperado; e, na mão direita, um par de lanças de madeira de freixo, brancas e pesadas.

E ao chegarem em Iolcos, a cidade inteira foi-lhes ao encontro, pois jamais haviam visto tantos heróis famosos de uma só vez, não se cansando de admirar-lhes a elevada estatura, a beleza, o porte garboso e o brilho das armas marchetadas.

— Nunca, desde que os helenos conquistaram o país, vimos um grupo de heróis igual a este.

E as mulheres suspiravam e murmuravam:

— Ai deles! Vão para a Morte!

Logo, não eram mais cinqüenta, nem cem, eram centenas deles em Iolcos. Jáson se viu obrigado a recusar a maioria, selecionando-os, pois o Árgo só comportaria cinqüenta remadores. Selecionou-os com provas atléticas, e alguns deles por sua experiência e utilidade, eliminando os menos aptos ou úteis, ficando de fora excelentes heróis como Anfiaraus, Aréios, Autólicos, Eurimédon, Álmenos, Áctor, Euríalos, Hipálimos, Fílamon, Clímenos, Cometes, Ázoros, Glaucos, Eumédon, Laocóon, Píritous, Príasos e Estáfilos.
Em seguida, à noite, o soberano Pélias ofereceu aos vencedores uma festa digna, e eles dormiram no átrio do palácio. Houveram muitos nomes que fariam parte da expedição. Afinal, Jáson pretendia mesmo escolher cinqüenta bons remadores e outros tripulantes importantes para o sucesso da jornada. Seria a expedição mais ousada até então experimentada. Nunca antes houvera nau formada por tantos homens, muito menos por nomes tão importantes.

E seus nomes passariam para a história: Jáson, capitão da nau, e seu tio Íficles, filho do rei Fílacos; Héracles, o mais forte de todos eles, seu sobrinho e escudeiro Íolas e seu criado Hilas, filho do rei Teiodamas, que certamente, por ser tão jovem, não tomaria o remo, mas serviria como escanção; Péas, filho de Táumacos; os irmãos Butes e Eríbotes, filhos de Téleon e Zêuxipe; os irmãos Dióscuros — Cástor, domador de cavalos, e Polideuces, o pugilista — e seu tio Íficles, filho do rei Téstios; os irmãos Peleus e Télamon, filhos do rei e herói Éacos; os irmãos Polífemos e Ceneus, filhos do lápita Élates e Hipe, e ainda Côronos e Fócas, filhos de Ceneus; Ífitos e Clítios, filhos de Êuritos; os poderosos irmãos Ídas e Linces, filhos de Afareus — Linces, que tinha o dom da visão penetrante, foi escolhido para vigia no alto do Árgo; o músico trácio Orfeus, filho de Éagros — seguia na qualidade de animador, dando ritmo aos remadores; Cefeus e Anfídamas, filhos do famoso rei Aloeus, dos árcades; o príncipe cretense Deucálion, filho do grande rei Minos; Ídmon, filho de Apolo, que seguia na qualidade de adivinho; os irmãos Êuritos e Equíon, filhos do deus Hermes, com o encargo de mensageiros e embaixadores; os irmãos Boréades — Zetes e Cálais, os filhos do Vento, que tinham fama de serem alados; Admetos — que, no regresso, desejava casar-se com a princesa Alceste, filha de Pélias; Asclépios, filho de Apolo, que seguia na qualidade de médico da expedição; Menoécios, filho de Áctor; Anfíon, filho do soberano Hiperásios, de Palene; Pálemon, filho do herói Étolos; Náuplios, experiente marujo, filho do famoso navegante Náuplios; Astérion, herói pertencente à casa real de Estênelos, filho do herói Perseus — portanto, parente de Héracles; Fáleros, filho do famoso arqueiro Álcon; o adivinho Mopsos, filho de Âmpix; Oíleo, filho de Laódocos; o timoneiro Éufemos, filho de Poseidon — que herdara do pai o dom de caminhar sobre as águas;

... o pastor Laertes, filho de Arcésios e descendente de Céfalos; o timoneiro oficial do Árgo, Tífis, filho de Forbas — segundo um boato, diziam-no filho de Poseidon; o herói árcade Anceus, filho do deus Poseidon, que seguia também na qualidade de timoneiro; Meléagros, príncipe da casa de Oineus, rei de Cálidon; Eurítion e Eurídamas, filhos do rei Áctor, de Opunte, na Élide; os filhos de Dionisos — Flias, Fanos e Eumédon; Erginos, filho de Poseidon, senhor dos mares, e companheiro de Flias; Cantos, filho de Abas; Anceus, filho do deus Áres; Aetálides, filho do deus Hermes e Eupóleme; a jovem e belíssima Atalanta, a única mulher do grupo, foi admitida no Árgo, a convite de Jáson, apesar dos protestos, já que não faria parte do grupo de remadores; e os irmãos Nestor, Periclímenos e Astérios, filhos de Neleus, portanto sobrinhos do rei Pélias. No entanto, ao saber o rei que Nestor pretendia acompanhar Jáson, foi retido e impedido de prosseguir. Pélias não admitiria que um parente seu se aventurasse em tal expedição, já que esperava que tal feito viesse a falhar e morressem todos. No entanto, Periclímenos e Astérios, para evitar que o rei lhes impedissem também de prosseguir, não fizeram parte do banquete no palácio. Então, Pélias não soubera que se faziam presentes em Iolcos, e não pôde impedi-los.

Pélias esperava que Jáson fosse sozinho à Cólquida, mas, apesar das chances serem bem mais favoráveis ao filho de Aéson, de retornar, o rei ainda pensava:

— É melhor mesmo que todos os príncipes vão com ele e, com ele, nunca voltem; pois então serei senhor de todo Minuai, e sem heróis atormentando por aí, certamente serei de toda a Hélade. Meus inimigos se curvarão ante meu poder.

Héracles, o mais forte dos homens, ao juntar-se à tripulação, havia sido escolhido por todos como comandante da nau Árgo, e a opinião não foi outra de Jáson:

— É mais justo que tu mesmo comandes esta expedição em vez de embarcar sob as ordens de quem ainda não conquistou fama alguma, senão por eu usar uma única sandália.

Mas Héracles preferiu passar o comando a Jáson, que era o idealizador da expedição e incentivador de todos os heróis:

— Esta honra tem que ser de Jáson, e não minha. Jáson é um príncipe, que logo se tornará rei; eu, no entanto, não passo de um escravo. Bem... pelo menos por enquanto.

Todos puseram-se a rir, aprovando por unanimidade. O herói Héracles sabia que tinha em seu comando uma expedição paralela contra Tróia: seis barcos aguardariam em Crisa para que se organizassem e levantassem um assédio contra a cidade do rei Laómedon.

Era o dia da partida, nas praias de Afeta, numa manhã de início de primavera. Jáson já com seus Argonautas, entusiasmados, ultimaram os preparativos, como provisões, armas e utensílios. Orfeus fez uma pilha de lenha, matou um touro, ofereceu-o a Héra, e pediu aos heróis que fizessem um círculo ao redor, tendo a cabeça coroada com folhas de oliveira, e que ferissem o touro com suas espadas. Depois encheu uma taça de ouro com o sangue do touro, com farinha de trigo, mel, vinho e água do mar, e mandou que os heróis provassem. E todos provaram o conteúdo da taça, passando-a de mão em mão, e fizeram um juramento solene; juraram pelo Sol, pela Noite e pelo Mar, que permaneceriam ao lado de Jáson, fielmente, enquanto durasse a aventura do Tosão de Ouro; e quem recuasse ou desobedecesse ou traísse o juramento, seria entregue à justiça das terríveis Erínias, que puniam os homens culpados.

Jáson acendeu a fogueira e queimou a carcaça do touro. Os heróis ofereceram sacrifícios aos deuses, obedecendo todos os ritos favoráveis à sua partida. Chegaram a fazer uma homenagem a Apolo-Embásios, o deus do embarque, cujo sacrifício e prelúdio foi executado também por Orfeus, seu filho, pois de todos os mortais era o que mais bem conhecia o caminho para o mundo subterrâneo e o do regresso à terra dos vivos. Na véspera da partida, ele contou o princípio das coisas e dos deuses. Era a preparação para uma jornada especialmente sagrada.

Porém, começaram os primeiros problemas. O Árgo estava concluído, mas era muito grande e pesado, e os heróis não conseguiam mover a nau e lançá-la ao mar. Tinha a mão dos deuses na construção daquela nau. Nem mesmo a força de Héracles era suficiente para fazê-lo.

Aí, Jáson, lembrando-se da figura da proa, perguntou-lhe:

— Que posso fazer?

— Não desespera, Jáson. Será mais fácil do que tu podes imaginar. Manda os homens subirem a bordo, a não ser Héracles. Que cada qual se sente no seu banco e empunhe o seu remo.

— Remar sobre a areia?

— Orfeus não está contigo?

— Sim! Foi um dos primeiros que chegaram! Eu não precisava de um músico; quase o eliminei do grupo. Além do mais, ele anda meio melancólico...

— Então faz o que eu digo. Pede somente que Orfeus dedilhe a sua lira.

— Só isso?

— Isso basta.

Jáson obedeceu e mandou que a tripulação se posicionasse. Tífis se posicionou no tabuleiro da popa, perto do timão, Ídmon ficou ao seu lado, Linces à proa, os demais tripulantes nos remos, sendo que Héracles ocupou um assento na parte anterior do navio, e Peleus e Télamon, na parte posterior. Orfeus, empunhando sua lira, subiu a bordo e, em seguida, subiu Jáson. Somente Héracles permaneceu fora, pois tinha um trabalho a fazer. Então, a um sinal do comandante Jáson, Orfeus, que conhecia os dons mágicos de sua lira, correu os dedos no seu instrumento, produzindo um som tão suave e atraente, enquanto cantava:

— Quão doce é vagar sobre as vagas e saltar de onda em onda, enquanto o vento canta alegremente no cordame, e os remos relampejam por entre a espuma! Quão doce é errar através dos mares, conhecer novas e maravilhosas cidades, e depois regressar à terra natal, carregado de tesouros, e conquistar imorredoura fama!

E o Árgo, ouvindo a canção, desejou partir, pareceu flutuar, facilitando o trabalho de Héracles, que conseguiu empurrá-lo do alto monte onde havia sido construído, até o mar, como uma pluma ao vento. Gritos e vivas saudaram aquele prodígio, diante dos olhos estupefatos do povo de Iolcos, que aclamaram tal feito. Somente uma pessoa não mostrava alegria alguma: o rei Pélias, que do alto de um promontório, acompanhado de seus soldados, a tudo observava, quando deu por falta de seu filho, Acastos, que não o havia visto entre os nobres.

— Onde anda o meu filho Acastos? Por que ele não vem prestigiar a minha vitória que é sua também?

E zarparam, com Orfeus dando ânimo e ritmo aos remadores. O braço de Atena, na proa, apontava o caminho. O barco deslizou, manso, sobre as ondas do golfo Pagaseus. Os Argonautas deram adeus a Iolcos, ao porto Pagásai e às praias de Iolcos, que, daquele momento em diante, passou a serem denominadas Afeta, o lugar da partida, deixando suas famílias e amigos para trás.

Deixaram a ilha de Ciatos, com o cabo de Sépios à esquerda, e aproaram para o norte. Abandonando a Magnésia, rumaram em direção do Pélion, ao longo da praia Magnesiana, a pedido de Peleus, para que fossem reaver o sábio Quíron, antes que deixassem a Hélade.

— Aportemos aqui e escalemos pela última vez nossa velha e querida colina. Visitemos Quíron, mestre de nossa infância, e peçamos-lhe a bênção antes da partida para o Oriente.