A Saga de Hércules

À direita ficava o mar alto e à esquerda erguia-se o velho Pélion, com nuvens boiando em torno de suas florestas de pinheiros e de suas cristas coroadas pelas neves do estio. Os corações dos Argonautas palpitaram diante da velha e querida montanha, enquanto se lembravam dos aprazíveis dias passados, dos jogos da meninice, e da aprendizagem na caverna escavada no rochedo.

Tífis, o timoneiro, obedecendo a Jáson, conduziu o Árgo para a praia sombreada pelos rochedos do Pélion. Desceram os antigos discípulos do centauro e permaneceram no navio os demais tripulantes. Os heróis embrenharam-se pelas sombrias florestas de pinheiros, em direção à caverna do Sábio Centauro. Encontraram-no em uma clareira, na base do penhasco coroado de neve; ele estava descansando, enquanto um jovem discípulo tocava harpa para a alegria do velho filho de Cronos.

O centauro, ao ver surpreso os estranhos que ali chegavam, reconheceu Jáson, que recentemente havia deixado o Pélion, mas, em seguida, reconheceu a todos e saudou-os muito contente. Abraçou e beijou cada um deles, em seguida preparou-lhes um banquete com carne de porco, enquanto o menino servia-lhes vinho.

Quíron, recordando os bons tempos em que aqueles heróis eram seus discípulos, Télamon lembrou-lhes que seu filho Ájax também recebeu sua sábia educação, e já se encontrava em sua casa, em Salamina. Quíron e Télamon brindaram-no pelos bons resultados, e com a aprovação de Héracles.

Passaram horas comendo e bebendo.

Terminada a ceia, os heróis bateram palmas e pediram a Orfeus que cantasse; mas ele recusou, dizendo:

— Como poderei, sendo mais moço, cantar diante de nosso antigo mestre?

Então rogaram a Quíron que cantasse, e o menino foi buscar a harpa. Quíron iniciou uma maravilhosa canção: as famosas histórias dos velhos tempos. Depois Orfeus empunhou a lira e cantou o Caos, o nascimento do Mundo, e como todas as coisas foram engendradas pelo Amor, que não pôde viver sozinho no Abismo. E sua voz elevou-se pela caverna acima, ascendeu pelos rochedos, pelo cume das árvores, e pelas encostas de carvalhos e pinheiros. E as árvores inclinavam e retiniam, os animais da floresta aproximavam-se, para ouvi-lo, os pássaros abandonavam os ninhos e adejavam ao derredor. E o velho Quíron batia as mãos, e batia os cascos no chão, embevecido pela canção mágica.

Mais tarde, sem muita demora, os Argonautas tiveram que partir, enquanto o filho de Cronos, depois de abençoá-los e de subir a um despenhadeiro, erguia preces a Zeus para que os heróis regressassem sãos e salvos. E, de pé, no alto do rochedo, as mãos musculosas levantadas para o céu e as madeixas brancas ondulando ao vento, ele ficou contemplando-os enquanto se afastavam; e os Argonautas aguçaram os olhos, tentando divisá-lo, pois sentiam que nunca mais o veriam de novo.

Deixando para trás o Pélion e o Olimpo, rumaram em direção da Macedônia e do monte Áthos.

Só então é que encontraram Acastos escondido entre as provisões do Árgo. Acastos, o primogênito do rei Pélias e futuro sucessor do trono, foi juntar-se ao número dos Argonautas, sem o conhecimento dos mesmos e sem o consentimento do pai. Ao ser descoberto, já era tarde demais; haviam zarpado, e o mesmo conseguiu convencê-los de que viajava sem a permissão do pai. Ademais, Jáson, seu primo, protegeu-o, livrando de ser jogado ao mar.

— Poupai sua vida, meus amigos. Este jovem, que é meu parente, poderá nos ser útil, já que, assim, se o rei Pélias se recusar em entregar o trono, após o nosso regresso, ao menos trocaremos por ele um belo resgate.

Todos concordaram e deixaram-no viver. Jáson levou-o para um canto e o advertiu:

— Salvei tua vida, Acastos, agora estás em dívida comigo. Jamais me atraiçoarás, nem ouses desobedecer-me. Se pisares em falso, terás pelo menos cinqüenta punhais enterrados em tuas costas. Sê fiel, e terás um lugar na corte que já é minha por direito.

A viagem seria longa, dura, difícil. Cólquida era distante. Para os povos do Ocidente daquela época, ficava num dos extremos do mundo, para além do país dos frígios, dos capadócios e dos citas. Sabiam os Argonautas que teriam de enfrentar monstros, Gigantes e povos bárbaros. Os inimigos que iriam surgir pela frente nem sempre seriam vencidos pela força. Às vezes, teriam que ser superados pela astúcia ou por práticas de magia.

OS ARGONAUTAS EM LEMNOS

Os Argonautas rumaram para a costa ocidental da Ásia. Contornando o mar da Trácia, chegaram em Lemnos, aonde reinava Hipsípile, filha de Toas e Mírine. Lá chegaram para arranjar mais provisões.

E Tífis observou:

— Vede! Há algumas mulheres ali para nos recepcionar!

— Vamos ter diversão?

— Estão armadas... mas não parecem hostis.

Toas, “o que se move depressa”, até pouco tempo, há um ano, era rei em Lemnos. Tinha irmãos famosos: Estáfilos, Pepáretos e Enópion, rei de Quios. Eram todos filhos de Dionisos e Erígone, a filha de Icários. Até então, era senhor absoluto daquela ilha. Porém, um dia, as mulheres lêmnias faltaram com o respeito a Afrodite e negligenciaram o seu culto, demonstrando frieza para com seus maridos. A deusa, para vingar-se, inspirou nos homens violento amor pelas escravas que haviam, certa feita, conquistado na Trácia, e abandonaram as esposas. As lêmnias, furiosas e ofendidas, formaram uma conspiração e assassinaram todos os homens no prazo de uma única noite. Somente Hipsípile conservou a vida do rei seu pai, que ela fez ocultar numa caixa e transportar secretamente para Quios, aonde reinava o irmão Enópion. Após a conspiração, Hipsípile foi eleita rainha de Lemnos. Desde então elas temiam um ataque por parte dos trácios e, cautelosas, olhavam freqüentemente para o mar. Por isso, quando viram o navio Árgo se aproximando, saíram assustadas pelas portas da cidade e dirigiram-se para a praia armadas como as Amazonas. No entanto, não se mostraram hostis e aguardaram.

Os heróis minuanos ficaram muito admirados ao verem o porto inteiro ocupado apenas por mulheres armadas, sem nenhum homem para comandá-las. Num batel, enviaram dois mensageiros, Equíon e Êuritos, os filhos de Hermes, portando o bastão da paz para aquela estranha congregação. Os mensageiros foram levados pelas mulheres perante sua rainha, Hipsípile. Com palavras modestas, comunicaram o pedido dos navegantes do Árgo, que desejavam descansar na praia. A rainha reuniu suas súditas mais fiéis, na ágora, e sentou-se no trono de pedras de seu pai. Depois de comunicar à assembléia o pedido pacífico dos Argonautas, disse:

— Caras irmãs, cometemos um grande crime e em nossa loucura nos privamos de todos os nossos homens. Quando bons amigos se aproximam de nós, não devemos rejeitá-los. Mas precisamos cuidar para que não descubram nada do que fizemos. Sugiro, pois, que levemos alimentos, vinho e outros víveres aos estrangeiros em seus navios. Com esse gesto amigável, os manteremos longe de nossas muralhas.

A rainha tornou a sentar-se e sua velha ama se levantou. Custava-lhe muito esforço falar.

— Mandai presentes aos estrangeiros, pois isso é certo. Mas pensai também no que tereis que enfrentar quando os trácios vierem. E se um deus misericordioso evitar isso, acaso vós estareis protegidas de todos os perigos? As mulheres velhas, como eu, nada precisam temer, pois morreremos antes que a carestia se torne insuportável e todos os nossos recursos se acabem. Mas vós, as mais jovens, do que é que ireis viver? Por acaso os bois vão se colocar por vontade própria sob o arado e lavrar os campos? Ou colher os grãos para vós quando chegar a época? Pois não tereis como fazer sozinhas esses trabalhos pesados. Por isso, aconselho, e não desprezais as minhas palavras: entregai todos os vossos bens a esses nobres estrangeiros e deixai que eles administrem esta cidade! Ou então, sacrifiquemo-los em honra de Afrodite a fim de que a deusa nos perdoe e nos dê fartura!

O conselho foi bem aceito por todas. A rainha enviou uma virgem com os mensageiros ao navio para informar os Argonautas da decisão da assembléia. Os heróis alegraram-se com a notícia. Pensavam que Hipsípile tinha sucedido a seu pai pacificamente, depois de sua morte. Jáson era sobrinho de Toas, o antigo rei da ilha, por seu pai Aéson, irmão da rainha Mírine. Ele, então, estava mais seguro e ansioso por conhecer seus parentes de Lemnos. Vestiu-se com um manto de púrpura que lhe fora dado pela deusa Atena e dirigiu-se à cidade, com alguns homens, permanecendo os demais. Quando atravessou os portões, guiado pela donzela de Lemnos, as mulheres se aproximaram dele e o cumprimentaram amigavelmente, felizes por recebê-lo como hóspede. Foram bem-recebidos, cobertos de flores e coroas de louros.

Os visitantes comentavam entre si:

— Onde deverão estar os homens deste lugar?

— Só podem estar descansando...

Héracles, por sua vez, comentou:

— Isto me faz lembrar a cidade das Amazonas.

Mas de olhos baixos, como mandava o costume, dirigiu-se ao palácio da rainha. Serviçais abriram-lhe os altos portões e a donzela o conduziu aos aposentos da rainha. Jáson sentou-se à frente dela, numa cadeira esplêndida.

Hipsípile baixou os olhos e suas bochechas coraram. Com voz suave, ela dirigiu-lhe a palavra:

— Estrangeiro, por que permaneceis tão timidamente fora de nossa cidade? Lemnos não é habitada por homens. Portanto, nada têm a temer. Nossos maridos infiéis nos abandonaram, e com as mulheres dos trácios, que conquistaram na guerra, mudaram-se daqui. Levaram consigo os escravos e todos os seus filhos homens, enquanto nós, desamparadas, ficamos para trás. Vinde, pois, para junto de nós e, se assim o desejares, tu poderás reinar sobre nós no lugar de meu pai Toas.

— Teu pai Toas é meu parente. Sou filho de Aéson, o rei de Iolcos e irmão de tua mãe, Mírine. Lamento saber que abandonou este país à própria sorte.

Hipsípile deteve-se por um instante, pois ficou surpresa. Tinha à sua frente um nobre, seu primo, que vinha do outro lado do pélago para a ele unir-se. E perguntou-lhe:

— Como te chamas?

— Jáson. Sou o capitão da nau que segue rumo ao longínquo país da Cólquida a fim de resgatar o famoso Velo de Ouro que carrega o espírito de nosso antepassado Frixos.

— Jáson... Não tereis motivos para vos queixar da terra, pois esta é a ilha mais fértil do pélago. Vai e transmite nossa proposta aos teus companheiros. Não permaneçais mais fora de nossa cidade. Sois bem-vindos.

— Rainha, é com o coração agradecido que recebemos a ajuda que nos ofereces. Depois de transmitir tua mensagem aos mensageiros, voltarei à tua cidade, mas fica com o teu cetro e com tua ilha... Não te desprezo, mas aguardam-me difíceis empresas em terras distantes.

Jáson estendeu a mão à rainha virgem para despedir-se e correu de volta à praia. Logo chegaram também as mulheres, em velozes carruagens, trazendo presentes. Não lhes foi difícil convencer os heróis, já informados por Jáson, a entrar na cidade e hospedar-se em suas casas. Jáson relutou, mas encantado com a beleza e a graça da rainha, resolveu ceder, pelo menos por um tempo. Jáson abrigou-se no palácio real, os demais em outras residências. Só Atalanta e Héracles, que desprezava as mulheres por seu amor à Mégare, permaneceram no navio com alguns poucos companheiros mais fiéis e desconfiados. Mas Jáson e seus companheiros foram atraídos e ficaram por tempo indefinido, esquecendo-se do que realmente faziam e para onde iam. Cada qual teve uma mulher por companheira.

Então, houve uma bela festa, com refeições opulentas e danças animadas, que tomou conta de toda a cidade. O aroma das oferendas elevou-se aos céus; anfitriãs e hóspedes honraram o deus protetor da ilha, Hefaístos, e sua esposa, Afrodite.

Realizaram-se também jogos atléticos; aos Argonautas vencedores deram-se bonitas vestes e assim se celebrou a união entre eles e aquele povo de mulheres hospitaleiras. Erginos estava prematuramente grisalho, e as mulheres riram-se dele quando participou da corrida com toda a sua armadura, mas ele venceu e, assim, mostrou que a mocidade e as cãs podem andar juntas.

Houve mais uma festa, desta vez para celebrar a união dos enamorados Jáson e Hipsípile, a rainha das lêmnias, que tinha esperança de um dia repovoar de homens a sua ilha. Na grande festa de núpcias, reapareceram os Cabiros na ilha e encheram os jarros de vinho. O festival durou vários dias, meses talvez. E Afrodite reconciliou-se com Hipsípile.

A partida era sempre adiada, e os heróis teriam se demorado muito mais junto a suas amigáveis anfitriãs se Héracles, por fim, não os tivesse repreendido:

— Insensatos! Acaso não tendes, em vossas tendas, mulheres em número suficiente? Viestes até aqui para celebrar vossas bodas? Quereis ficar vivendo em Lemnos como camponeses, arando a terra? Imaginais que algum deus irá buscar o velocino para nós e depositá-lo aos nossos pés?

E continuou, desta vez dirigindo-se a Jáson:

— E tu, foi para isto que te empenhaste e nos invitaste a uma grande e gloriosa aventura? Tens orgulho? Levanta-te e reúne teus amigos, e voltemos para casa. Por mim, se quiseres, casa-te com Hipsípile, povoa Lemnos com os teus filhos e deixa que te contem os feitos heroicos de outros mais honrados que tu!

Jáson, persuadido por Héracles, que ainda lembrou-lhe a história absurda da ausência de homens na ilha, desvencilhou-se das sedutoras habitantes de Lemnos e foi conhecer melhor a ilha. Andou sozinho por tudo, até descobrir a necrópolis. Ali estavam os túmulos de centenas de homens, todos mortos mais ou menos à mesma época, como se tivessem tombado numa guerra.

Jáson foi seguido, e uma voz feminina indagou:

— Gostas de túmulos, comandante?

Jáson voltou-se, surpreso com a presença inesperada. Era a mesma mulher que havia sido enviada até eles como emissária de boas-vindas. E disse, num tom irônico:

— Parece que é este o lugar onde descansam todos os homens da ilha.

— É... aqui eles estão livres dos problemas...

E o herói, decidido, agarrou-a pelos ombros e obrigou que dissesse a verdade:

— Afinal, diz o que está acontecendo por aqui!

E a moça, passando de leve o nariz aquilino sobre o peito robusto de Jáson, tentou acalmá-lo:

— Não te zangue, guerreiro. Deves relaxar...

Jáson sacudiu-a com força.

— Deixa de asneiras e diz o que foi feito dos homens!

Apesar do vigor do chefe dos Argonautas, a moça conseguiu desvencilhar-se.

— Queres mesmo saber? Pois bem, nós os matamos!

— Mataram... todos?

— Naturalmente! Eles nos traíam o tempo todo, e este foi o castigo.

E apontou para os túmulos, alegre e desafiadora.

Em breves palavras ela descreveu, então, as humilhações que tiveram de suportar de seus maridos. Não havia um único dia em que não tivessem notícia da traição de algum deles. Finalmente, revoltadas, decidiram pôr um fim em tudo, matando-os. E no dia seguinte, não havia mais um só homem vivo em toda a ilha.

E continuou:

— Afrodite, no entanto, irou-se conosco e nos inspirou um ardente desejo por novas núpcias. Desde então, vivemos na ânsia de contrair novo himeneu, o que, no entanto, jamais se realiza.

— Por que não?

— Bem, não possuímos um navio enorme como o teu, nem saberíamos construí-lo, para partir em busca de novos maridos.

E aproximou-se com seu passo felino e sensual.

Jáson, por alguns instantes, aceitou as carícias; porém, lembrando da sua missão e as palavras de Héracles, repeliu-a outra vez. Com uma gargalhada divertida, ela rodopiou, fazendo uma volta inteira sobre si mesma, enquanto erguia com as mãos os belos cabelos negros, recolhendo-os acima da cabeça. Era extremamente sensual, muito mais do que a sua própria beleza. Era uma visão positivamente tentadora para um homem da juventude e da virilidade de Jáson.

Mas ele soube resistir aos seus impulsos, pedindo mentalmente o auxílio de sua protetora Héra. Então, deu as costas à nativa, quando quis retornar para a nau Árgo, mas sentiu que a sedenta mulher agarrava-se às suas costas, como uma onça, e cravava os dentes em seu ombro. Jáson agarrou-a pelos cabelos e jogou-a com toda a força ao solo, fazendo-a rolar já sem vida.

Jáson retornou ao navio. Ao chegar lá, não encontrou ninguém. Furioso, desceu a procurar Atalanta e Héracles, e encontrou-os na escuridão da noite. E foi-lhes mostrar um plano. Resolveu reunir todos no navio, durante a noite, sob o pretexto de lhes dirigir uma alocução. Aos poucos foi encontrando um a um, sempre nos braços de uma ou duas mulheres. Por alguns momentos teve o desejo de retornar e completar o que deixara pela metade, mas outra vez o senso do dever o obrigou a refrear seus instintos. De maneira rude pôs fim à folgança de seus tripulantes, separando um a um os amantes, pondo à prova pela primeira vez a força do seu braço. E, pouco a pouco, foi obrigando-os a se retirarem para o porto.

Hipsípile, que observava os movimentos de Jáson, aproximou-se dele, em particular, e tentou persuadi-lo a mudar de ideia. Mas foi em vão. E ela, que havia sido a única a não ter morto seu pai, o único homem a sobreviver ao holocausto, contou-lhe a verdadeira história. E, por fim, aos soluços, disse-lhe:

— Então, vai. Possam os deuses amparar-te e teus companheiros na conquista do Velocino de Ouro! Se um dia quiseres voltar para nós, esta ilha e o cetro de meu pai te aguardam. Bem sei, porém, que não é esse o teu intento. Mas pelo menos pensa em mim quando estiveres longe...!

Jáson foi o primeiro a embarcar e chamou seus companheiros para o interior da nau. Enquanto isso, Héracles cortou o cabo de amarra, e fez o barco zarpar, sob protestos dos demais heróis, que não queriam partir. Porém, Jáson avisou-os do provável holocausto que sofreriam. E zarparam rumo ao seu destino. Quando as mulheres se deram por conta, já era tarde demais. Já estavam partindo, e nada poderiam fazer, senão lamentar e suplicar que retornassem.

Fanos, um dos filhos de Dionisos, imprudentemente atirou-se para fora do navio e correu ao encontro das moças que o atraíam.

— Fanos, não!

— Eu vou ficar! Estou aqui, minhas queridas! Sou de todas vós! Eu serei o substituto de cinqüenta homens!

E foi reunir-se a elas, sendo o primeiro a abandonar a expedição, pensando em ser feliz como o único homem daquele país. De fato, foi extremamente prazerosa a sua permanência na ilha, até que, depois de um tempo, elas acabaram por descobrir que ele as traía, desrespeitando o rodízio estabelecido por aquelas ardentes e insaciáveis mulheres, já que era humano e não aguentaria tanta atividade, e terminaram por matá-lo e acrescentar uma lápide no cemitério.

Hipsípile, antes que pudesse ordenar a matança dos heróis da Hélade, mesmo que forçada pelas leis daquela terra, havia-se enamorado de Jáson. No tempo em que estivera com ele, engravidou e, futuramente, haveria de dar à luz dois filhos, Eunéo e Nefrônios (ou Évenos e Toas) — mas sabia que deveria jogá-los ao mar, para que a lei contra os homens perpetuasse no país — mas contra sua vontade, e conseguiu mandá-los para lugar seguro, sem o conhecimento das demais mulheres da ilha. No entanto, as lêmnias haviam descoberto que Toas ainda vivia, e desconfiaram do paradeiro dos dois meninos que Hipsípile tivera. Muito iradas, querendo matá-la, obrigaram Hipsípile a fugir do país com seus dois filhos. À deriva, tentando chegar em Quios, foi aprisionada por piratas e vendida a Licurgos, rei de Neméia, na Argólida. Lá estando, o rei confiou-lhe a educação do filho Arquêmoros. Mais tarde, alguns anos depois, Eunéo recuperaria o trono de sua mãe e reinaria em Lemnos. Porém, outro mal recairia sobre aquele povo: o morticínio das concubinas áticas dos lêmnios.

O ATAQUE A TRÓIA

Incentivados pelos Cabiros em Lemnos, os Argonautas foram para a vizinha Samotrácia, onde os Dióscuros, Héracles e Orfeus foram iniciados em seus mistérios e compartiram da epifania dos Grandes Deuses, razão que os faria sempre bem-afortunados em suas viagens e campanhas. E as taças oferecidas pelos Argonautas, mais tarde, foram mostradas pelo samotrácios às gerações futuras.

Assim, santificando a viagem para a região do Cáucasos, os heróis Argonautas partiram rumo a Crisa. Héracles, antes de prosseguir o Árgo para o seu destino, tinha uma tarefa a cumprir.

E os Argonautas foram aportar na ilha de Crisa, aonde ergueram um altar a Palas-Atena. Lá aguardavam seis naus helênicas comandadas por Deímacos e Teseus, amigos de Héracles, a fim de empreender uma das grandes expedições militares do século XIII a.C., e que entraria para a História.

Com os companheiros Argonautas e as seis naus helênicas, Héracles voltou a Tróia, como havia prometido, frente a uma expedição de assédio. Ao chegar na praia, deixou a pequena frota aos cuidados de Oicleus (Oikles), neto de Melampos, e alguns remadores, enquanto, à frente de seus guerreiros, fortemente armados, cruzou a planície de acesso à cidade.

O rei de Tróia, já havia muito, tinha esquecido esse caso do compromisso rompido e da ameaça de Héracles; ou, se jamais o recordava, era apenas para rir-se da loucura de um homem que pensava impor sua vontade ao rico soberano de uma das mais poderosas cidades da Ásia. No próprio poder da cidade residia, entretanto, sua fraqueza; como ninguém ousasse atacá-la, longos anos de paz e segurança tornaram seus habitantes desprevenidos. As portas da cidade eram fechadas ao por-do-sol e abertas somente de manhã; dia e noite, porém, as sentinelas que guardavam as fortificações pensavam mais em seu conforto e prazeres do que em repelir um possível mas improvável ataque de surpresa.

Porém, vigiados desde que chegaram por alguns homens fiéis ao seu rei, foram logo surpreendidos por uma notícia desastrosa: enquanto se dirigiam para Tróia, Oicleus e os outros haviam sido abatidos pela guarda costeira do soberano, e um sobrevivente havia ido avisar-lhe. Dando meia volta, não sem antes introduzir na cidade alguns homens disfarçados, Héracles e sua tropa voltaram para a praia, mas era tarde demais: já estavam mortos. E saíram a perseguir os agressores, que foram refugiar-se no interior das muralhas de Tróia, onde deram o alarme.

Então Héracles, sagaz na guerra e acompanhado dos melhores guerreiros de sua época, destemidos e aguerridos, encontrou na tomada de Tróia um problema mais fácil de resolver do que supunha o rei Laómedon. E, na escuridão da noite, com as tochas apagadas, aproximou suas forças do sopé das muralhas, enquanto sabiam os troianos estarem bem protegidos, iniciando os gregos um silencioso assédio.

Enquanto a cidade dormia e os guardas cochilavam em seus postos, num excesso de confiança, os agentes gregos, introduzidos na cidade, abriram uma pequena porta lateral, após dominar os seus guardiões. Héracles e seus homens precipitaram-se por ela e invadiram a cidade. O primeiro companheiro de Héracles que avançou contra os troianos foi o seu amigo Télamon, e já de cara fez tombar um bom número de troianos, o que lhe causou uma certa inveja, apesar de reconhecer nele o mais corajoso de seus guerreiros. Porém, apesar de serem surpreendidos, conseguiram os troianos revidar. Poucos puderam transpor a porta, Télamon foi rechaçado, alguns helenos ficaram encurralados e os demais ficaram de fora. A porta se fechou, e os que ficaram no interior das muralhas foram mortos a punhaladas pelo número excessivo de oponentes.

Deímacos, um herói da Beócia, filho de Eléon, enquanto perseguia alguns troianos que fugiam, retirados à força pela porta aberta de Tróia, encontrou uma ninfa troiana de nome Gláucia, filha do deus-rio Escamandros, e por ela se apaixonou. Gláucia era irmã de Calírroe e Teucros, o primeiro rei da Frígia.

Enquanto o assédio à Tróia se verificava, os dois uniram-se. Porém, tão logo, Deímacos morreu em combate. E Héracles tomou a mãe, viúva, e deu-lhe proteção, e, assim que a guerra atingisse o seu final, a mandaria para a Hélade, aonde deveria ser entregue a Eléon, para que a adotasse, e lá a ninfa tivesse o seu filho.

Tróia não conseguia resistir aos duros ataques de heróis tão poderosos. E começou a cair no momento que Télamon, lugar-tenente de Héracles, escalou e transpôs as muralhas da cidade. Enfurecido por este ser demasiado ousado e mais valente, agindo constantemente por conta própria, desta vez Héracles não resistiu: quis surpreendê-lo e castigá-lo. Aquela era a primeira vez, em sua vida, que via sua coragem ser superada por outro herói. Por isso, o filho de Zeus não perdeu tempo em segui-lo e abatê-lo. Ao alcançá-lo, se deteve ao vê-lo recolher e acumular pedras. Intrigado, perguntou-lhe:

— Não temes a Morte, Télamon? Enlouqueceste? O que estás fazendo?

— Erigindo um altar em tua honra, e chamar-te-ás Héracles-Nicéforos, o herói que um dia saqueou Tróia.

Por um momento, Héracles quase deixou cair a espada e o escudo de suas mãos, arrependido de pretender matá-lo, e reconheceu ainda no amigo e companheiro, além de muita coragem, nobreza e fidelidade. Aquele amontoado de pedras acabou se tornando o primeiro monumento a Héracles, que Télamon intitulou Nicéforos, “vitorioso”, e tardiamente foi denominado Calínicos (Kallinikos) ou Alexícacos, referente ao herói Héracles como “afastador do mal”.

Héracles e seu exército, encontrando as ruas desertas da cidade, pois todos, temerosos haviam ido se esconder, conquistaram Tróia e pilharam-na. Em curto espaço de tempo, tanto o palácio de Laómedon como todas as casas da cidade ardiam em chamas. O herói matou a flechadas Laómedon e seus filhos, exceto o jovem Podarces, “pé-ligeiro”, protegido nos braços de Hesíone.

— Ó valente filho dos deuses, compadece deste jovem indefeso! Lembra-te de quando seu pai recusou o prêmio que te foi prometido, os alvos corcéis! Tens um débito com ele!

Héracles baixou o arco e, encarando o jovem príncipe, lembrou-se dele e do que havia feito, e falou-lhe:

— Não temas, garoto, quando teu pai me recusou o prêmio que me prometeu, tu intercedeste a meu favor, dizendo que a recompensa fora prometida e ganha honestamente, e não devia, portanto, ser recusada. Tens a nobreza em teu sangue, mereces um dia ocupar o lugar entre reis justos. Por causa disso, pouparei tua vida. Mas te levarei prisioneiro para a Hélade.

— E o que será de minha irmã Hesíone? Não quero abandoná-la. É o meu sustento, o meu regaço...

— Ela me deve a vida; levá-la-ei comigo, junto com os corcéis brancos do curral.

Porém, lembrando-se de Télamon — que separara-se da esposa Peribéia —, como prêmio por sua coragem, Héracles deu-lhe, na partilha dos despojos, a bela princesa Hesíone, para servir-lhe de esposa e mãe de seus filhos. A princesa, não querendo se separar de seu irmão mais novo, atirou-se aos pés de Télamon e pediu-lhe que permitisse com ele ficar. Télamon, então, pediu a Héracles que libertasse o jovem príncipe. Mas o filho de Zeus se negou, já que o havia escolhido como escravo. Era prêmio seu. Para tanto, só aceitaria em troca de um resgate. Hesíone ofereceu ao herói o seu diadema e um velo dourado que tinha em seus aposentos, e Héracles lhe entregou Podarces. Em seguida, foi apoderar-se das éguas e dos corcéis de Laómedon.

Mais tarde, os mortos foram sepultados aos pés das muralhas de Tróia. A tumba de Laómedon se encontrava fora da cidade, frente à porta Escéia. E então, seguiu-se a previsão do Oráculo: a cidade seria inexpugnável enquanto a tumba permanecesse intacta, e permaneceria assim por um longo tempo.

Depois, Héracles mandou de volta para a Hélade os companheiros e suas seis naus, como heróis, e incumbiu-os de conduzir Hesíone, Podarces, Gláucia e outros escravos para aquele país, até que voltassem os Argonautas da expedição à Cólquida. Hesíone e Podarces seriam levados para Salamina, e Gláucia para a Beócia, na corte do rei Eléon, onde deu à luz um menino, Escamandros.

NA CORTE DO REI CÍZICOS

A nau Árgo abandonou o Helespontos e entrou no Prepontos, o pequeno mar que separava o Arquipélago do Euxinos. Uma tempestade atirou a nau Árgo para mais longe ainda, através do estreito de Ábidos, ao longo das costas trácicas da Ásia, à costa do Quersonesos, aonde se erguia uma elevada montanha, o Díndimos. Alcançaram a ilha do Urso e chegaram na cidade de Propontis, dos doliones, descendentes de Poseidon, aonde o jovem rei Cízicos, da idade de Jáson, os recebeu festivamente, pois conhecia o Oráculo, que um dia lhe revelou:

— Quando chegar o nobre exército de heróis, recebe-os amigavelmente e não com guerra.

Cízicos, filho de Eussoros, recebeu-os em plena lua-de-mel com sua esposa Clita (ou Cleite), “a famosa”, filha de Mérops, adivinho e rei de Percotes. Acolhidos como irmãos, com todas as honras, e uma grande festa, os heróis da Hélade perceberam o olhar preocupado e inquieto do soberano e senhor daquele país. Souberam então que a rainha, chamada Clita, estava de cama, acometida de grave doença. No entanto, algum mal maior deveria atormentá-lo. E um dos Argonautas achegou-se a Jáson:

— Alguma coisa o atormenta violentamente. Pergunta-lhe o que há. Talvez possamos, de alguma forma, retribuir o bom acolhimento que nos deu.

— Tens razão. O rei Cízicos e seus súditos vivem sob a opressão de algum inimigo... É o que parece. Vou interrogá-lo.

Jáson foi consultar o imberbe rei que, jovem ainda, mas cheio de confiança no herói, abriu seu coração, revelando-lhe o que se passava. Jáson e Cízicos gesticulavam e apontavam para o lado da montanha vizinha... Certamente, era algum inimigo feroz que morava na montanha. Os Argonautas estavam curiosos e precisavam saber de tudo.

Finalmente, após um longo tempo de conversa, Jáson voltou para seus amigos, dizendo-lhes, resumidamente:

— São os filhos de Géa, um punhado de Gigantes que moram com os ursos. Possuem seis braços, dois em seus ombros colossais e quatro nos flancos. Eles voltam sempre, matando, violentando, depredando. O rei me disse que, em pouco tempo, estarão aqui novamente. É de costume. Pediu-nos ajuda. Mas não vos preocupeis: também nos mostrou o caminho para a Cólquida caso pretendamos seguir adiante sem lhe prestar auxílio.

E os Argonautas foram-se deitar, pois imaginavam que teriam muito trabalho numa batalha próxima, e pretendiam organizar uma expedição contra os monstros.

E todos na cidade foram dormir, exceto as sentinelas que serviam ao rei daquela cidade. O herói Linces, inquieto, resolveu sondar ao longe para se certificar de que estavam seguros. E, com sua visão prodigiosa, distinguiu um movimento suspeito de muito longe. E, olhando mais atentamente para o Díndimos, acordou seu irmão Ídas e alertou:

— Os Gigantes! Eles estão descendo a montanha!

E, voltando o olhar para o longínquo porto, viu que estava bloqueado com grandes rochas, e Héracles, que havia ficado no Árgo, já abatia alguns deles com suas flechas, e os afastava em direção da cidade.

Ídas e Linces foram acordar Jáson e os demais, também o rei e seus oficiais doliones, para dar-lhes as notícias. Todos olharam e só viram a montanha, verde, calma e tranquila. Mas Linces, com seus olhos prodigiosos, ficou alarmado.

— Preparai-vos, homens, eles estão vindo para cá... Estão a caminho da cidade.

O rei quase caiu, assustado com a notícia de mais um ataque. Mas seus guardas, que nada viam, não vieram-lhe dar a notícia, e o rei permaneceu paralisado, sem saber como agir. Não podia acreditar na visão penetrante do herói. Linces continuava a alertar:

— Que bichos horríveis! Nunca vi coisa igual!

O rei, percebendo que Linces era demasiadamente talentoso, confirmou:

— É... O tamanho deles não é nada. Pior são seus braços...

— Seis! Jáson, eles têm seis braços! Em cada braço uma arma diferente! E eles vêm aí...

Cízicos levantou-se num ímpeto. E Jáson dirigiu-se a ele.

— É toda uma nação?

— Felizmente, não. É apenas uma família. Se fosse um povo, há muito teriam-nos liquidado. Mas cada um vale por, no mínimo, seis guerreiros, além de seu tamanho.

— Bem, tanto melhor que sejam apenas alguns. Linces, quantos são?

— Ah... deixa-me ver... uns... uns... cinquenta!! Jáson, são em torno de cinqüenta Gigantes!!

Jáson sorriu.

— Eles terão também seis corações cada um?

— Pouco provável.

— Então vamos ao encontro deles. Dá um para cada um de nós. Mas não enfrentemos os braços; visemos os corações. Eles ainda estão distantes. Há tempo suficiente para prepararmos uma emboscada.

Os Argonautas foram-se posicionar fora da cidade. E os Gigantes, descidos das montanhas, começaram a atirar grandes pedras à entrada do porto onde estava a nau Árgo. Quando os Gigantes vieram chegando para invadir a cidade, tiveram uma grande surpresa. Pela primeira vez havia o povo de Cízicos reagido. Flechas velozes cortaram o ar. Muitos foram tombando, atingidos num ponto vital, às vezes com duas ou três flechas cravadas em cada coração. Caíam em grupos, bracejando assustados, e suas armas caíam também. Os outros ainda tiveram tempo de avançar, furiosamente.

— No coração! Visai o coração!

Novos Gigantes tombaram. E, de repente, para alegria de Cízicos e seu povo, viu-se que os sobreviventes e feridos debandavam-se, num confuso pavor, e voltavam a correr para a montanha, perseguidos por Héracles, que chegava do porto disposto a abater os que haviam sobrado. E muitos ainda foram abatidos pelas flechas certeiras.

Quando a paz voltou, antes do amanhecer, vários Gigantes mortos, um dos Argonautas examinou de perto os vencidos:

— É... O azar deles foi ter tantos braços... Se eles tivessem seis pernas teriam conseguido fugir...

Calmo, Orfeus tangeu sua lira, celebrando a vitória...

Bem antes do amanhecer, após desobstruírem a saída do porto, levantaram âncora e foram orientados a seguir para o Oriente, e partiram rumo ao Bósforo. Mas os Ventos tempestuosos, fazendo o Árgo girar sobre si mesmo, empurraram-nos de volta, e andaram em círculos, perdendo o rumo. O rei Cízicos e os doliones, pensando que fossem piratas, muito comum no mar da Propôntida, atacaram-nos. Foi uma batalha breve. Foi aí que o guerreiro Ídmon, da guarda do rei, morreu pelas flechas de Héracles. O rei Cízicos foi morto com uma lança no peito atirada por Jáson; e os Argonautas, fatidicamente, venceram, pois pensavam ter travado batalha contra algum povo da Frígia, onde pensavam estar então. E os doliones, vencidos, fugiram e refugiaram-se no interior das muralhas de Propontis.

E pretenderam seguir viagem. Porém, os Ventos eram-lhes desfavoráveis, e não conseguiam fazê-lo. Desencadeou-se um furacão, fazendo o Árgo rodopiar; as guindaletas emaranharam-se, e ninguém conseguiu soltá-las. Então o timoneiro Tífis, depois de perder o leme, gritou:

— São os deuses os responsáveis por esta desgraça!

Mas Jáson encaminhou-se para a proa, a fim de aconselhar-se com o ramo encantado, que respondeu:

— Isso acontece porque mataste Cízicos, teu amigo. Tereis que aplacar a sua alma, sob pena de nunca mais deixardes esta praia.

Jáson voltou, cheio de tristeza, e transmitiu aos heróis o que ouvira. E eles desceram à praia e procuraram o corpo de Cízicos que só encontraram ao amanhecer, envolto em poeira e sangue, no meio dos cadáveres de seus doliones. Jáson, reconhecendo o cadáver do rei entre os que tombaram, chorou inconsolavelmente. Os Argonautas, sob os olhares daquele povo abatido por tantas desgraças, deitaram-no num belo leito, que recobriram com um grande monte de terra, e fizeram-lhe brilhantes exéquias, durante três dias. Orfeus cantou uma canção mágica, a fim de que seu espírito pudesse repousar.

Depois, de acordo com o costume daqueles tempos, disputaram jogos junto ao sepulcro, e Jáson distribuiu prêmios aos vencedores. Deu a Anceus uma taça de ouro, pois era o melhor lutador; uma de prata a Héracles, pois era o mais forte de todos; para Cástor, que montava melhor, um elmo de prata; Polideuces, o boxeador, recebeu um valioso tapete; e a canção de Orfeus foi retribuída com uma sandália com asas de ouro. Jáson, porém, era o melhor dos arqueiros, e os minuanos coroaram-no com uma coroa de oliveira. E a alma do bom Cízicos foi aplacada, e os heróis puderam continuar sua viagem em paz. Deram seu nome à península onde Propontis ficava: passou a levar o nome de Cízicos, e a cidade levou então o nome de Cízica. Quanto ao local da batalha, a costa passou a ser chamada de Rocha Sagrada, no seu sentido mais sombrio.

Clita, a rainha, depois que os Argonautas voltaram a zarpar, não resistiu tanta dor e, ainda bastante doente, foi-se enforcar. As Dríades da Frígia choraram sua morte, e suas lágrimas transformaram-se numa fonte que levou seu nome: Clita.

Depois disso, ventos contrários, que sopraram durante doze dias, impediam os Argonautas de ir mais adiante. No décimo-segundo dia, o adivinho Mopsos reparou no grito do alcião e compreendeu-o. Aconselhou Jáson a apaziguar a Grande-Mãe e a orientar-se com o ramo encantado. Depois de fazer isto, Jáson chamou seus companheiros e juntos subiram o Díndimos e encontraram na floresta uma vide extraordinariamente grossa, que crescia no meio do mato. Deveria ser uma espécie de santuário para aquele povo de Gigantes. Esculpiram-na em forma de uma estátua, lembrando a deusa Réia, para quem, dentre todas as deusas, a videira era seguramente sagrada. Chamaram-lhe Dindimena, em atenção ao nome da montanha e de outras também assim chamadas.

Assim, com os Ventos a seu favor, os Argonautas continuaram a remar ao longo da praia da Míssia, passando pela embocadura do Ríndacos. E foi naquela região que encontraram-se com um gigante benfeitor, Sóstenes, quem lhes predisse que sairiam vitoriosos na luta que teriam com um rei da Bitínia. Em agradecimento, levantaram para ele um santuário.

EM BUSCA DE HILAS

Durante a travessia pela Propôntida, rumo ao Bósforo, através da embocadura do Ríndacos, encontraram uma aprazível baía, abrigada pela cadeia dos recifes de Argantos, e por altas muralhas de basalto.

Lá, os Argonautas realizaram uma competição amistosa para ver qual deles podia remar durante mais tempo. Héracles, Jáson e os gêmeos Cástor e Polideuces aguentaram uma noite inteira, até a manhã seguinte, enquanto os demais adormeceram nos remos. Ao meio-dia só competiam Jáson e Héracles, cada um remando de um lado da nave. Ao cair da noite, Jáson desmaiou e, no mesmo momento, o remo de Héracles se partiu.

Então, ao raiar do dia, desembarcaram na baía de Bitínia, perto de um pequeno povoado. Os míssios, que ali viviam, os receberam cordialmente, prepararam madeira seca para uma fogueira, fizeram camas de relva verde para os recém-chegados e serviram-lhes vinho e iguarias para o jantar. Alguns saíram para matar veados para o banquete. Todos se dedicaram, menos Héracles, que desprezava todos os confortos nessa viagem, e resolveu abandonar seus companheiros para adentrar-se na floresta e talhar para si um remo melhor, para o seu porte.

Héracles, armado de arco e flechas, saiu pela floresta a fim de cortar uma árvore para o seu novo remo, enquanto que Hilas, seu grumete, havia ido encher de água um cântaro de bronze para o ensopado, nas proximidades do Ascânios, ao pé de uma colina. Hilas era um jovem órfão de grande beleza, que Héracles havia arrebatado de Teiodamas, o rei dos dríopes — e desde então tomou-o para servi-lo.

Héracles avistou um pequeno pinheiro. Vendo nele o que procurava, pousou no chão o arco e a aljava, tirou a pele de leão com a qual se cobria e com ambas as mãos arrancou o troco juntamente com as raízes e a terra à sua volta, de maneira que o pinheiro ficou ali caído como se tivesse sido derrubado por uma tempestade.

Porém, enquanto isso, Hilas separava-se demais do grupo e descobria uma fonte próxima do Ascânios. Chamava-se Pegas. Não quis ir informar aos companheiros, e esse foi o seu erro. As Ninfas da fonte, vendo-o tão formoso, como costumavam fazer, atraíram-no, a fim de transmitir-lhe imortalidade e com elas viver. Hilas, chegando perto demais da fonte, deitou a urna no leito para apanhar a água. Foi quando viu a imagem de uma bela moça refletida. Inclinando-se sobre a margem, para ver melhor, Dríope, a mais assanhada de todas, atraiu-o, e duas Náiades estenderam os braços para fora, agarraram-no e puxaram-no para dentro da água, que ainda conseguiu soltar um grito de socorro. Héracles, a partir de então, jamais o veria de novo. Beijando-o e acariciando-o, a náiade Dríope deu a Hilas o dom de viver e respirar sob as águas, que, assustado, chorava e debatia-se muito. Mas não morreu, tornou-se imortal.

Héracles, de volta à praia, começou a chamar e procurar por Hilas.

— Hilas! Hilas!

E Polífemos, que havia ouvido um grito de socorro, sacou sua espada e correu em direção de onde ouvira a voz de Hilas, temendo que ele tivesse sucumbido pelas bestas selvagens ou por homens que o tivessem feito uma emboscada. Mas tudo o que encontrou foi o cântaro perto de uma fonte. Correndo de um lado para outro, brandindo sua espada, foi encontrar Héracles, que avançava na escuridão da mata fechada, para lhe dar a notícia:

— Meu pobre amigo, lamento ser portador de tão amargas notícias, mas tenho que te dizer. Hilas não voltou da fonte. Ou ele foi raptado por bandidos ou despedaçado por animais selvagens. Ouvi um grito de terror, e parecia de Hilas. Mas não o ouvi mais.

Furioso, com o suor lhe escorrendo da testa, Héracles atirou seu pinheiro ao chão e correu em direção à fonte, aos gritos, e não o encontrou.

Os Argonautas já se preparavam para partir, quando a Estrela da Manhã já aparecia no alto das montanhas e um vento propício começava a soprar; e foi quando notaram a ausência e a demora de Héracles e Hilas.

O filho de Zeus, muito preocupado, quis procurá-lo, e ordenou para que os demais o esperassem até que voltasse. Depois, voltou para os seus companheiros e exigiu que eles declarassem guerra às camponesas da Míssia, acusando-as de esconderem Hilas. Mas eles recusaram. E Héracles voltou a procurá-lo, na companhia de Polífemos, e só conseguiram avistar a ânfora de Hilas no meio da água. A sua procura foi inútil e demorou demais para retornar. O príncipe Jáson e os seus pensaram em desembarcar para procurá-los a fim de seguirem logo para a Cólquida. Porém, vendo que Héracles estava extremamente excitado e comportando-se de modo tão estranho — todos repararam que o novo remo tinha o dobro do tamanho do anterior; isto causou desconfiança e desentendimento. Estaria louco? E formou-se uma disputa acalorada sobre o destino dos três ausentes.

Jáson não disse uma só palavra. Encontrava-se triste, sentado num canto do navio. E Télamon enfureceu-se:

— Como podes continuar aí sentado tão tranquilamente? Tu decerto temes que Héracles seja capaz de superar ainda mais a tua fama. Mas para que tantas palavras? Se todos te derem razão, voltarei sozinho para junto do herói abandonado, pois Héracles é meu amigo e companheiro!

— E Polífemos é meu irmão!

Assim gritou Ceneus, o filho de Élates.

E Télamon agarrou o timoneiro Tífis; seus olhos reluziam como chamas, e ele teria obrigado os navegantes a voltar se os dois filhos de Bóreas, Cálais e Zetes, não o tivessem contido.

Jáson, então, levantando-se, procurou defender-se:

— Não é verdade que preocupo-me com minha fama, pois é pequena demais para alcançar a de Héracles. E a prova do que digo é que em Iolcos ofereci o comando da expedição a ele, que não o quis aceitar. Apesar disso, para que não haja inimizades entre nós esperemos até que ele retorne.