A Saga de Hércules

As serpentes, entrando por uma fenda da janela, encontraram-nos dormindo em um escudo que lhes servia de berço. Era o mesmo escudo de bronze que Anfitríon havia tomado do rei dos teléboas. Todos os dias, após o banho e o aleitamento dos meninos, deitava-os Alcmena no escudo para os acalentar, antes de levá-los ao berço. E ela mesmo voltou para o leito a descansar.

As serpentes tinham os olhos vermelhos de fogo e as línguas de fora. A escuridão era completa; ninguém as viu entrar. E Zeus, notando a alegria de Héra, viu chegar a coruja de Atena soltando pios de pavor; voltou os olhos para as crianças e viu com espanto que duas serpentes terríveis sibilavam ferozmente, enroladas no pescoço de Alcides. E, com seu poder, fez abrir a janela do quarto, e a claridade intensa iluminou-o, acordando as crianças, ofuscadas pela luz.

Íficles foi o que despertou primeiro, gritou, rolou para fora do escudo e começou a chorar, despertando também o irmãozinho Alcides. E, antes que as serpentes pudessem sufocá-lo e dar o bote fatal, Alcides agarrou as duas serpentes pelo pescoço, uma em cada mão, e começou a asfixiá-las. As serpentes enrolaram-se nele, tomadas de horríveis convulsões, mas suas mãos não afrouxaram o aperto, de modo que elas não tiveram outro remédio senão dar seu último sibilo.

Neste momento, despertou a mãe Alcmena ao ouvir o grito de Íficles. Com os pés descalços, levantou-se da cama e acudiu-lhes a mãe apavorada. Ante aquela cena apavorante, ela conseguiu tomar Íficles nos braços, enquanto sucumbiam as serpentes de Héra e sorria maliciosamente o filho Alcides, como se brincasse com seus brinquedos. Ouviu-se enorme alarido, e todos, com as armas em punho, com Anfitríon à frente, segurando sua espada, acudiram até o quarto dos bebês, e se perguntavam:

— Que aconteceu? Os inimigos penetraram na cidade? O palácio está em chamas?

Anfitríon e os servos da casa presenciaram tal cena, estupefatos, cuja intervenção só poderia vir do Olimpo. E achou necessário consultar o profeta de Zeus, o adivinho Tirésias.

Naquele mesmo dia, Alcmena foi consultar o famoso adivinho Tirésias, para que lhe tirasse a sorte do menino. Tirésias, olhando para aquele menino, nos braços da mãe, concentrou-se e falou:

— Vosso filho, que de agora em diante havereis de chamá-lo Héracles, a glória de Héra, vai tornar-se um herói invencível e acabará transformado numa das Constelações do Céu, mas isso depois de haver cá na Terra destroçado os monstros mais medonhos e sobrepujado os guerreiros mais terríveis. O Destino lhe imporá Doze Trabalhos de grande vulto. Por fim, morrerá devorado pelo fogo de um centauro malvado — e então sua viverá no Olimpo, onde irá desposar Ivi, a deusa eterna da juventude.

Desde pequeno, Héracles sempre demonstrou possuir uma força excepcional. Certa feita, Alcmena surpreendeu-o, com apenas uma das mãos segurando Íficles no ar. Estavam apenas brincando, pois Héracles jamais iria ferir o seu irmãozinho.

Quíron, também chamado Eurimédon, filho do titã Cronos e da oceânide Fílire, foi um dos seus mestres. Héracles, vivendo um tempo com ele nas florestas entre o Pélion e o Ossa, na Tessália, aprendeu a manejar o arco e a lança. Mas ensinou-lhe também o Sábio Centauro a viver com dignidade e moral, com bondade, gratidão e sabedoria.

No dia em que o pequeno Diómedes, que a partir de então seria chamado de Jáson, foi levado pela mãe diante do centauro Quíron, o menino foi apresentado aos seus demais alunos quando voltavam de uma caçada. Quíron deu saltos de alegria e seus cascos fizeram a caverna ressoar, ao ouvir os meninos gritarem:

— Vem para fora, pai Quíron. Vem e vê o que caçamos.

— Matei dois veados.

— E eu apanhei um gato selvagem entre os rochedos.

Héracles, um dos mais velhos, já famoso por ter estrangulado no berço duas serpentes enormes, arrastava uma cabra selvagem pelos chifres, pois ele era mais alto e mais forte; Ceneus carregava um filhote de urso sob cada um dos braços e ria-se quando o arranhavam e mordiam, pois nem dentes, nem mesmo o ferro logravam feri-lo.

E Quíron elogiou todos eles, segundo o merecimento de cada um.

O EXÍLIO DE HÉRACLES

A educação de Alcides, ou melhor, de Hércules, foi orientada por Linos, um filho de Apolo, o qual ensinou as ciências e as letras. Entretanto, tivera outros professores bem dedicados. Seu pai mortal, Anfitríon, ensinou-o a domar cavalos e tomar as rédeas num carro de guerra. Aprendeu também a conduzir os carros de corrida. Ensinou-o ainda a ler, a escrever, deu-lhe aulas de filosofia e astronomia, apesar que, nessas áreas, não foi um bom aluno.

Polideuces ensinou-o a usar as armas, a enristar a lança, a defender-se com o escudo, a atacar os inimigos com a espada, a livrar-se de seus golpes e a organizar um exército. Aprendeu com ele também a manejar a clava.

Com Autólicos, filho do deus Hermes e Quíone, aprendeu a lutar, enquanto que Harpálicos ensinou-lhe a arte da ginástica e da esgrima.

Castos ensinou-o a combater munido de todo e qualquer tipo de arma, de uso geral.

Na Trácia, Eumolpos, filho de Poseidon e Quíone, educou-lhe a voz e ensinou-o a tocar lira. Tal professor era poeta, guerreiro, áugure, vidente e legislador, e ensinou-lhe um pouco de cada coisa.

Com Êuritos, neto de Apolo, aprendeu a atirar flechas.

Desde muito cedo, acostumado à guerra, dormia sobre uma pele de leão ao ar livre e alimentava-se de carne assada e pão de cevada, ao invés de bolos de mel e tortas de frutas. E alimentava-se bem apenas uma vez ao dia, chegando a tornar-se um excelente glutão, capaz de devorar três carneiros numa única refeição. Costumava vestir uma túnica curta, menor que o normal. Em seus conhecimentos, tinha a faculdade de entender com facilidade o voo e o sinal das aves. Segundo ele, contrariando a maioria dos adivinhos, os abutres eram os mais seguros para os presságios.

Em Tebas, Anfitríon ficou extremamente orgulhoso pelo fato de haver sido seu filho Alcides, ou Héracles, o menino nomeado para o posto de jovem sacerdote, cargo este que ocupava um jovem a cada ano, e ele foi coroado de louros, como se tivesse vencido um torneio de jogos atléticos.

Héracles e Íficles cresciam juntos, porém, de forma diferente. Héracles passava os dias nas montanhas com os pastores e protegia os rebanhos contra as feras, que matava sem usar qualquer espécie de arma, somente com a formidável força de seus potentíssimos braços; era preparado para a guerra, no passo que Íficles era educado mais ao convívio familiar. Nem por isso, Íficles deixava de aprender com o irmão sobre as artes bélicas, e Héracles sobre a vida em família. Ambos cresciam como verdadeiros príncipes e amigos, de uma amizade proverbial.

Mais tarde, nasceria um novo irmãozinho, Ífidos, da união legítima entre Anfitríon e Alcmena.

Héracles tornou-se um jovem boníssimo, um taludão capaz de derrubar montanhas, mas incapaz de matar um mosquito sequer... a não ser que o mesmo o irritasse muito. Ele possuía um coração de ovelha, mas quando ficava zangado fazia as maiores pancadarias e, depois, diante do que provocara, arrependia-se e chorava como uma criança.

Foi o que aconteceu em relação a Linos, um de seus professores de música, que aliás era um mestre de renome, tanto que foi o inventor do ritmo e da melodia das canções; deu nomes e formas às letras do alfabeto fenício, passado a ele pelo herói Cadmos.

Linos, na ausência de Eumolpos, queria que Héracles aprendesse a tocar harpa. Mas os dedos de Héracles eram grossos, quando ia dedilhar arrebentavam-se as cordas. Para Linos, Héracles era um aluno fraco e apático. Constantemente o censurava e o punia. Já lhe havia censurado vinte vezes, e a paciência do mestre já chegava ao limite.

Querendo Linos, certa vez, avaliar os progressos do discípulo, já que era pago para ensiná-lo, pediu-lhe que escolhesse a melhor obra de uma estante cheia de obras-primas. Héracles escolheu o “Manual do Perfeito Cozinheiro”, de um tal Símon. Linos, danado, passou-lhe uma descompostura, batendo-lhe de leve na cabeça. Héracles, perdendo a cabeça, pegou a harpa que estava ao seu alcance e aplicou em Linos um dos golpes que o mesmo lhe havia ensinado. Infelizmente, ainda não sabendo controlar a própria força, matou-o. Depois, vendo o que havia feito, começou a chorar arrependido...

O jovem Héracles foi levado a um tribunal de justiça, e se defendeu citando a célebre “Lei de Radamantes”, que não considerava crime o homicídio cometido contra um agressor. Linos o havia atacado com palavras violentas e atitudes; ele, como sendo um jovem de pouca eloquência, restou-lhe responder com a força que ele mesmo não controlava. Simplesmente disse:

— Linos me bateu primeiro. A única coisa que fiz foi me defender.

Foi absolvido... Mas Anfitríon compreendeu que o filho poderia cometer outras violências devido o seu temperamento explosivo e, para evitar novas desgraças, enviou o filho a passar uns tempos no monte Citéron, a viver entre pastores. Héracles ficou feliz por se livrar das lições de música... e foi levado a Téspias, uma cidade entre o Citéron e o Hélicon. Lá é que o desenvolvimento de Héracles se completaria.

Quanto a Linos, que teve um digno funeral, passou, daí em diante, a ser lembrado e chorado em todos os festivais e banquetes, por cantores e harpistas.

Héracles, recebido em Téspias, o rei epônimo, Téspios, fez dele seu pastor de confiança. O filho de Zeus, com os demais pastores, constantemente levava sua manada ao monte Citéron, onde lá permanecia por alguns dias. E nas invernadas cresceu, até que aos dezoito anos já tinha quatro côvados de altura. O fogo dos olhos revelava-lhe a natureza divina. Nunca errava o alvo quando atirava com o arco ou arremessava a lança contra os lobos que tentavam dizimar os rebanhos. Um grande pedaço de carne assada e uma cesta cheia de pães pretos era a sua ração diária. Vivia ao ar livre e gostava de dormir ao relento.

O LEÃO DO CITÉRON

Em Esparta, o rei Tíndaros era destronado por seu meio-irmão Hipocóon, que forçou ele e seu irmão Icários a exilarem-se para o reino de Cálidon, na Etólia, e pedir asilo ao rei Téstios.

Naquela época, passava Héracles a infância e a mocidade bem perto de Tebas, longe de Micenas, sendo que o nome de Euristeus pouco mais significava para ele do que um parente que não tinha legítimo direito ao trono de Micenas, porém ele já sabia que sua submissão estava prestes a acontecer, a qualquer momento. E o infeliz Destino preparava para o filho de Zeus um caminho tortuoso, mas não sem glória. Ignorava o seu futuro, quando pensava que se tornaria pastor de ovelhas para o resto de sua vida, mas que haveria de servir a quem ele mais odiava.

Sendo de grande estatura e corpulento, auxiliava os desamparados. Sendo forte, ajudava os fracos, com simples e pequenos favores, grandes para os que ele ajudava, como trocar as rodas das carroças, sustentar a ponte para ser consertada, arrastar os bois para os currais, derrubar pinheiros, mover rochas de um lado para outro. Era muito gentil e simpático com seus vizinhos e amigos.

Certo dia, Téspios chegou correndo atrás do amigo Héracles, que, nesta época, tinha dezoito anos de idade: ia-lhe dizer que havia aparecido naquelas paragens um horrível leão, e estava matando os seus rebanhos e também as reses de seu pai Anfitríon. E Héracles, sem perda de tempo, pegou suas armas, subiu em uma biga e foi ao encalço do leão, que no momento ele se encontrava em algum lugar do monte Citéron.

Ao encontrá-lo, teve que persegui-lo durante dias em direção da Argólida. O leão várias vezes tentou atacá-lo, mas acabou fugindo, até que Héracles conseguiu alcançá-lo e matá-lo. Em seguida, arrancou-lhe a pele para transformá-la em troféu, na intenção de dá-la ao amigo Téspios.

E, segundo consta, outros tantos leões que ali haviam, tanto no Citéron como no Hélicon, acabaram desaparecendo graças a Héracles, que empreendeu uma guerra contra aqueles animais, tanto que, nos tempos históricos, já naquelas paragens, não haviam mais leões.

Héracles, encontrando-se na região de Árgos, decidiu ir a Troézen, na casa de seu amigo Piteus, filho de Pélops. Foi lá que conheceu um garoto de sete anos de idade chamado Teseus, neto de Piteus e filho de Aetra. Junto com seus amiguinhos, o pequeno Teseus correu a espiar e matar a curiosidade: quem seria aquele homem forte que visitava a casa de seu avô.

Héracles, antes de sentar-se à mesa, largou a pele de leão, seu troféu, e atirou-a num canto da sala, bem perto da porta onde estavam as crianças. De repente, viram a pele de leão a sua frente e fugiram horrorizadas; só Teseus não correu para os braços da mãe, em vez disso, correu para a cozinha e tomou um machado de um criado e caiu furiosamente sobre a suposta fera. E fê-lo em pedaços. Héracles impediu-o tarde demais; seu troféu já era. Nada podia fazer. Mas orgulhou-se do menino, reconhecendo nele um futuro herói, um homem corajoso. Gostou muito dele e resolveu tomá-lo por discípulo e, então, ensiná-lo a lutar.

Desde essa visita Teseus sonhava por realizar algo semelhante às proezas de Héracles. Além do mais, ambos eram parentes consanguíneos, já que suas mães eram filhas de irmãos. E, desse dia em diante, Teseus passou a vê-lo de vez em quando, em Tebas ou na casa de seu avô Piteus.

Um tempo depois, inesperadamente, Héracles voltava para Téspias com a pele esfolada do leão que havia morto e deu-a de presente ao rei. Este ficou tão contente que o convidou para um banquete, à noite.

O soberano Téspios tinha a segunda intenção de ter netos como Héracles, talvez formar um exército como ele, por isso, todas as noites, a partir de então, após as correrias do dia e um farto banquete, com vinho à vontade, mandava sempre uma de suas cinqüenta filhas para com ele se deitar. Héracles, tomado pelo vinho, pensava fosse uma só que o procurava e desconhecia ter o rei tantas filhas. Somente com o passar do tempo é que ficou sabendo da verdade, mas era tarde demais. Mas soube também que somente uma delas resistiu em desempenhar tal embuste, e por isso foi a que estreitamente acabou se ligando a ele, porque comprometeu-se em se tornar a sua sacerdotisa para o resto da vida.

Nasceram-lhe cinqüenta e um filhos, já que a mais velha e a mais nova das princesas tespíades tiveram filhos gêmeos. Os filhos que dele nasceram jamais seriam semi-deuses nem teriam a sua força, mas foram os primeiros de uma longa lista de descendentes, os Heráclidas.

E o Destino já traçava aos filhos de Héracles o dom da Imortalidade: eles jamais morreriam, jamais seriam sepultados e jamais seriam cremados na pira funerária. Eles, no tempo de sua passagem para o outro mundo, dormiriam de profundo sono, um sono eterno.

HÉRACLES E A DERROTA DE ERGINOS

Durante o tempo em que Héracles havia estado nos campos, Tebas foi invadida e derrotada pelos mínios de Orcômenos, o rei Créon perdeu suas forças e a cidade se viu obrigada a pagar um pesadíssimo tributo aos invasores, cem vacas todos os anos, durante um período de vinte, devida à morte de Clímenos, seu antigo rei, pela família de Créon, durante o festival de Poseidon, em Onchestos. Diziam ter sido executado por Perieres, o áuriga do rei Meneceus. Por esse motivo, Anfitríon mandou buscar Héracles em Téspias, pois sabia que ele talvez pudesse fazer alguma coisa.

E Héracles, despedindo-se de seus filhos e de suas cinqüenta mulheres, tomou suas armas e foi rumo a Tebas, onde viviam seus pais e seus irmãos Íficles e Ífidos, que havia nascido depois.

No caminho para Tebas, Héracles parou para descansar e passou a meditar sobre seu futuro, como costumava fazer. Sentado sobre a relva, ao pé de uma árvore, viu aproximar-se duas mulheres altas, ambas jovens e formosas, uma vestida de branco e com simplicidade, a outra com trajes suntuosos de cores múltiplas. Eram a Virtude (com um caminho cheio de dores, trabalhos, sofrimentos, mas com glória) e a Volúpia (com um caminho de prazeres, atopetado de flores, sem nada no final a oferecer). A primeira era filha da Verdade e assentava-se no Olimpo aos pés da Volúpia, que, por sua vez, era filha de Éros e Psiqué.

A Volúpia, rechonchuda e opulenta, carregada de maquilagem, com olhos arregalados e trajes mais justos ao corpo, para mostrar suas formas, olhava a si mesma com prazer, e então fitava à sua volta para ver se também agradava aos outros. Para chegar antes da outra, correu em direção do jovem filho de Zeus, e assim lhe falou:

— Héracles, vejo que estás indeciso sobre que caminho tomar na vida. Se me escolheres como amiga, hei de conduzir-te pela estrada mais aprazível e confortável. Nenhuma vontade tua deixará de ser satisfeita, e tu serás poupado de todos os desconfortos. Não precisas preocupar-se com guerras nem com negócios; as mais deliciosas iguarias e bebidas estarão à tua disposição, tu sempre dormirás sobre uma cama macia, desfrutando de todos esses prazeres sem esforço nem trabalho. Não tenhas receio de esforços físicos ou mentais, pois só desfrutarás dos frutos do trabalho alheio e não precisarás conquistar nada que te traga lucros, pois dou aos meus amigos o direito de tudo usar.

Ante essas promessas tentadoras, Héracles perguntou, admirado:

— Quem és tu, bela mulher?

— Na verdade, meu nome é Kakia, a Volúpia. Meus amigos me tratam como Bem-Aventurança, mas meus inimigos, depreciando-me, me chamam de Preguiça.

Enquanto isso a outra mulher, também se aproximara.

— Também vim ter contigo, querido Héracles, porque conheço os teus pais, tua disposição e tua educação. Isso tudo me dá esperança de que, se me seguires, tu te tornarás um mestre em tudo o que é bom e virtuoso. Mas não te quero apresentar deleites, desejo apenas mostrar as coisas tais como os deuses as quiseram. De tudo o que é bom e desejável, eles não concedem nada aos mortais sem trabalho ou esforço. Se quiseres que os deuses te sejam bons, terás que honrá-los. Se quiseres ser amado pelos teus amigos, terás que lhes fazer o bem; se quiseres ser honrado pelo Estado, terás que prestar-lhe serviços; se quiseres ser admirado por toda a Hélade por causa de tuas virtudes, terás que tornar-te um benfeitor da Hélade; se quiseres colher, terás que plantar; se quiseres guerrear e vencer, terás que aprender as artes da guerra; se quiseres ter domínio sobre o próprio corpo, terás que endurecê-lo por meio de árduo trabalho e...

Nesse momento, ela foi interrompida pela Preguiça.

— Estás vendo, meu caro Héracles, por que caminho longo e espinhoso essa mulher quer levar-te à felicidade? Eu, porém, vou conduzir-te à felicidade pelo caminho mais curto e mais cômodo.

Retrucou a Virtude:

— Mentirosa! Como é que tu podes possuir algo de bom, e que prazer pode conhecer se satisfazes a todos os seus desejos antes mesmo que eles apareçam!? Tu comes antes de ter fome e bebes antes de ter sede. Não há cama suficientemente macia para ti, tu fazes com que os teus amigos passem a noite em claro e durmam a maior parte do dia, eles vagueiam sem direção e, na velhice, arrastam-se com esforço. E tu mesma, embora sejas imortal, és igualmente desprezada pelos deuses e pelas pessoas bondosas. Jamais recebeste elogios nem fizeste qualquer obra de valor. E, ao contrário, sou amiga dos deuses e de todas as pessoas de bem. Para os artistas sou uma ajudante bem-vinda, para os pais de família uma vigilante fiel, amparando também amorosamente os criados. Ajudo nos negócios da paz e sou confiável na guerra, sou a mais fiel de todas as amigas. Comida, sono e bebida têm para os meus amigos um gosto melhor do que para os preguiçosos. Os jovens alegram-se com o reconhecimento dos mais velhos, os mais velhos são honrados pelos jovens. Com prazer eles se lembram de seus feitos anteriores e sentem-se felizes com sua atividade atual. Graças a mim as pessoas são amadas pelos deuses e estimadas pelos amigos e pela pátria. E quando chega o fim, eles não são enterrados e esquecidos, mas lembrados pela posteridade. Se optares por esse tipo de vida, Héracles, tu serás feliz. Chamo-me Aretí, a Virtude.

Cada uma delas ofereceu seus dons para que o herói escolhesse como queria viver a sua vida. Héracles, mesmo tentado pela vida de prazeres e facilidades, vestido pela riqueza, pelo poder, pela maldade e pela libertinagem, preferiu ficar com a Virtude, pois poderia defender os pobres, lutar em favor dos oprimidos e ajudar a humanidade. Preferiu arranjar uma esposa fiel, casar e ter filhos seus herdeiros.

Enquanto isso, Íficles, privado por Zeus do entendimento, ocioso na casa de seus pais, entregou-se de boa mente ao serviço do rei Euristeus, em Micenas e Tirinto.

Indo a Tebas, encontrou essa cidade vencida por um rei estrangeiro, o qual impôs aos tebanos o pagamento de um tributo anual de cem bois, durante vinte anos. Héracles chegou à cidade exatamente no dia em que os emissários de Erginos estavam a reclamar os cem bois do primeiro pagamento.

— Que história de bois é essa?

Um dos cidadãos disse-lhe acerca de tudo o que se passava, sobre a imposição daquele tirano de Orcômenos.

— Um homem da Beócia chamado Clímenos, durante uma festa em honra de Poseidon, foi morto a pedradas no bosque sagrado do deus, em Onchestos, pelos tebanos liderados por Perieres, um áuriga do velho Meneceus, pai do rei Créon. Para vingar-lhe a morte, um filho seu, Erginos, que assumiu o trono de Orcômenos, invadiu Tebas e impôs ao povo um pesado tributo, depois de ter matado muita gente. Esse tributo consiste em sacrificar cem bois durante vinte longos anos!...

O capitão da tropa de Orcômenos, um sujeito arrogante, ordenou que Héracles saísse do caminho e tratou-o mal. Héracles, desafiando os emissários do rei, agarrou-os, cortou-lhes os narizes e as orelhas e pendurou-os ao pescoço, mandando-os embora.

— Dizei a vosso rei Erginos que os cem bois são estes narizes e estas orelhas cortadas.

Os emissários de Erginos, cambaleantes, cheios de dor, fugiram de volta para Orcômenos a galope.

Quando Anfitríon soube, empalideceu e disse:

— Agora Erginos, rei dos mínios, virá para se vingar...!

— Deixa que eles venham, meu pai, pois vão se arrepender! Embora Erginos nos tenha proibido que nos armássemos, vamos desobedecer e formar um exército. No templo de Zeus existem muitas espadas, lanças, escudos e armaduras que nossos soldados ali deixaram como oferendas. Já fui informado. Pois aí está: Íficles e os jovens de Tebas me ajudarão a derrotar os orcomênios!

E um grito de júbilo se ouviu pelas ruas de Tebas, em sinal de aprovação, e correram para o Templo de Zeus buscar as armas. No entanto, a deusa Atena chamou Héracles ao seu Templo e armou-o com suas próprias armas.

Ofensa mais grave não era possível, e Erginos, após ver seus homens feridos gravemente, levantou um exército para atacar os tebanos, ajudados pelos pílios do rei Neleus. Os orcomênios atacaram Tebas, mas Héracles, armado pela deusa Atena, e contando com a ajuda de Anfitríon e seus tebanos, ofereceram forte resistência. Erginos, filho de Clímenos e Búzige, e os seus homens, vendo-se perdidos diante dos muros da cidade, fugiram em direção da planície, lugar onde levariam vantagem, já que eram ótimos lutadores em campo aberto.

A grande força do exército mínio estava na cavalaria, mas Héracles, à frente dos tebanos, havia usado de um recurso: forrou de enormes pedras a única passagem entre montanhas por onde poderiam passar os cavaleiros. Fechou a gruta pela qual o rio Céfisos atravessava a montanha para despejar-se no mar, e as águas represadas formaram o lago Cópais. Isso atrapalhou a fuga de Erginos e seus homens, e tiveram que fugir para as montanhas, onde não guerreavam direito sem seus carros de guerra. Aí, Erginos foi ferido e os orcomênios foram derrotados.

A maior perda para Tebas foi a morte de Anfitríon, padrasto de Héracles e pai de Íficles e Ífidos. Por tal perda, Héracles viu-se ressentido pela participação de Neleus no combate, mas procurou esquecer esse fato, já que o respeitava, era sábio e um soberano justo.

No entanto, Héracles, para vingar a morte do pai, conduziu o seu exército para dentro das muralhas de Orcômenos, causando-lhe a ruína. Os tebanos, então, impuseram ao reino de Erginos o pagamento de um tributo de duzentos bois. Graças a Héracles, a situação havia-se invertido. Muito gratos de sua preciosa ajuda, os tebanos consagraram ao herói vários templos e lhe erigiram diversas estátuas. Duas delas foram denominadas Rinokloustes, “o que corta narizes”, e outra, Hipódetes, “o que barra os cavalos”.

Então, após a vitória sobre os mínios, Héracles colocou uma imagem de um leão defronte do Templo de Ártemis-Eucléia, sendo uma “leoa para as mulheres”, como divindade do mundo subterrâneo. Em seguida, realizou os funerais em honra de seu querido Anfitríon.

Agradecido pela vitória de Héracles, o soberano Créon deu-lhe o prêmio merecido:

— Tu demonstraste ser bom chefe e soldado valente, e Tebas muito te deve. Estou ficando velho, e meu filho primogênito é ainda muito moço para assumir o poder. Eu não poderia encontrar em lugar algum um herdeiro mais digno do que tu. Desejo que te cases com minha filha Mégare, de maneira que tu e teus filhos sejais um dia reis de Tebas.

E, virando-se para Íficles, o irmão de Héracles, disse-lhe:

— E tu, Íficles, que lutaste como um bravo ao lado do teu irmão, dou-te a mão de minha filha mais nova, Pirra, e cedo a metade de meu palácio para ti e para Héracles e vossas esposas.

Porém, Íficles teve que abandonar a sua mulher Automedusa, mãe do pequeno Íolas e de Íope, pois não pôde recusar.

Ao som de flautas, Héracles e Íflicles levaram suas esposas para suas casas, em Tebas. O casamento de Héracles com Mégare foi estupendo, e os deuses — menos Héra — compareceram, levando presentes. Zeus deu-lhe um escudo como não existia outro igual. Atena deu um peitoral de ouro. Hefaístos deu um elmo incrustado de diamantes. Apolo deu um arco de ouro e uma seteira recheada. Hermes deu uma espada pontiaguda. E Poseidon deu dois cavalos tão velozes quanto os furacões. Mégare, por sua vez, recebeu belíssimos presentes das deusas.

A vida de Héracles, então, entrou numa fase boa, e ele foi pai de três filhos: Antímacos, Deícon e Democóon. Héra, enquanto isso, continuava maquinando a sua vingança.

A LOUCURA DE HÉRACLES

Um dia, o velho Licos (ou Lykos), que já havia governado Tebas, aproveitando a debilidade dos exércitos desarrumados da cidade, aliou-se a Piraecmes, rei dos eubeanos, que estavam dispostos a vingar os aliados mínias, entrou à força e conquistou o trono, depois de assassinar a muitos. O povo rebelou-se, e Licos ameaçou matar Mégare e seus filhos. E já estava com a espada erguida sobre a cabeça da princesa, quando Héracles apareceu de surpresa e o matou. Em seguida, atiçando o povo, se rebelaram e avançaram contra os eubeanos. E venceram.

O rei Piraecmes foi condenado à morte pelo filho de Zeus. Héracles semeou o terror por toda a Hélade, ordenando que o corpo de Piraecmes fosse amarrado e feito em pedaços, fazendo potros correrem em direções opostas. Em seguida, juntou as partes divididas do corpo do infeliz e abandonou-os sem enterrá-los junto do rio Heráclios.

Essa atitude bárbara atiçou a Héra o desejo de vingança, e o que fizesse contra Héracles deveria parecer justo aos olhos dos demais deuses.

Aconteceu que, certa tarde, enquanto observava seus filhos — garotinhos de mais de dez anos — que estavam brincando, Héracles se encontrava a oferecer aos deuses um sacrifício. Graças a um encantamento de Héra, lhe jogou um pó nos olhos, enviando-lhe alucinações, e Lissa, “a insanidade”, e Mania (ou Trela), “a loucura”, apossaram-se dele. Começou a mudar suas feições, soltando espuma dos lábios. E começou a exclamar furiosamente:

— Onde está o meu arco? Onde está a minha maça? Vou a Micenas. Armai-vos de alavancas e machados para demolir as muralhas construídas pelos Cíclopes!

E, imaginando andar de carro, começou a correr, chicoteando o ar como se estivesse fazendo aos cavalos, segurando as rédeas. E avançou contra Íolas, que por pouco não o matou. O desventurado percorreu assim o palácio inteiro, demente, e, julgou ver os filhos se transformarem em perigosíssimos Gigantes com pernas terminadas em serpentes. Matou dois, Antímacos e Deícon, que inutilmente lhe imploravam piedade. Atirou-os ao fogo. A mãe, Mégare, arrastou seu outro filho, Democóon, para o fundo do palácio e fechou a porta. Em seguida, extremamente furioso e enlouquecido, derrubou o altar dos sacrifícios e quase fez o mesmo ao palácio inteiro. Héracles, adentrando-se em direção ao quarto aonde estava Mégare e Democóon, julgou-se em frente dos muros dos Cíclopes; abateu a porta e atingiu com uma flecha o próprio filho. Mégare, ao tentar atirar-se aos pés de Héracles, tropeçou e bateu a cabeça. Por isso, salvou-se da Morte. Héracles, julgando ter acabado com os monstros, continuou a busca e acabou matando também os filhos de Íficles e Pirra, sobrando apenas o jovem Íolas, o filho de Automedusa.

Por muito pouco Héracles não teria aniquilado sua própria família e seus amigos não fosse a intervenção de Atena, pois ele ameaçava ainda invadir o próprio Olimpo, que julgava ser o antro do maior dos Gigantes. E Atena, do alto do Olimpo, para acordá-lo daquele transe maldito, lançou contra seu peito uma grande pedra, lithos sophronister, a “pedra da sobriedade”, no momento em que Héracles levantava a maça contra Créon, seu sogro, e desabou no chão.

Antíciros, chamado às pressas, curou-o de seu furor por meio de uma planta chamada heléboro. E, mal recobrou a consciência, Héracles viu toda a enormidade do crime cometido. O rei Créon mandou-o embora e proibiu-o de sequer voltar a olhar para Mégare, que Héracles descobriu estar viva.

Voltando a si, horrorizou-se com o que havia praticado.

— Zeus, meu pai, o que fiz? Por acaso sou o assassino daqueles que me são mais queridos?!

Rapidamente Atena voou do Olimpo e foi isentar-lhe a culpa, mas era imperdoável. E ela, tomando a forma de Anfitríon, seu pai que já havia atingido o Mundo das Sombras, tentou amenizar seu coração:

— Sim... mas estavas fora de ti.

— Matei meus próprios filhos! E minha mulher? Onde está minha mulher?

E, ao vê-la estendida no chão, entrou em desespero e começou a arrancar os cabelos e bater no peito com força, cujo estrondo ecoava por toda a sua casa. Ficou tão desesperado que quase morreu de tanto chorar.

— Devo então poupar a minha vida?! Vou vingar-me destas mortes em mim mesmo!

Héracles, em desespero, antes de se precipitar no suicídio, precisamente quando ia para o perpretar, o seu propósito foi alterado e a vida salva. Esse milagre, que de repente trouxe a Héracles o esquecimento dos seus sentimentos enfrenesiados e violentos e a recuperação da razão sóbria e a aceitação resignada, não foi operado por um deus descido do Céu, como Atena; mas foi fruto da amizade humana. Tinha a seu lado um rapazinho que lhe admirava acima de todos: Teseus. Este lhe agarrou as mãos manchadas de sangue, tomando para si a profanação e partilhando com ele a sua culpa.

— Não interfiras, Héracles! Não impeças que eu partilhe contigo todo o mal, pois, nessas circunstâncias, não o sinto desta forma. E atenta bem no que te digo: os homens de alma nobre como tu sabem suportar sem vacilar os golpes desferidos do Céu!

— Mas viste o que fiz, menino?

— Sim, vi! Sei que as tuas penas não têm fim, que poderiam perfeitamente preencher o espaço entre o Céu e a Terra.

— Por isso mesmo só me resta morrer!

— Essas palavras não são próprias de um herói! Ensina-me algo que eu possa aproveitar para quando eu estiver prestes a ser um!

Héracles ficou em silêncio, mas replicou:

— Que eu hei de fazer senão morrer? Viver, eu? Um homem marcado, que todos reconhecerão e de quem todos dirão: “Olha! Lá vai aquele que matou seus filhos!” Em toda a parte e a todo o momento estarei perante os meus carcereiros, com os seus aguçados escorpiões da língua prontos a ferrar!

— Mesmo assim! Sofre e sê forte! Serve de modelo para mim! Vens para a casa de meu avô Piteus, e tudo receberás! Ou segue para Atenas, onde reina meu pai Egeus, e pede-lhe a purificação. Nada te faltará, tenho certeza.

Seguiu-se um longo silêncio. Por fim, Héracles pronunciou palavras lentas, pesadas:

— Assim seja. Serei forte e esperarei a Morte a seu tempo!

Então, Héracles deixou Tebas e foi com o jovem Teseus para Troézen, na casa de Piteus. Lá, depois de ser purificado de seu crime, passou um tempo a ensinar Teseus algumas coisas úteis, como a arte da guerra. Em troca, Teseus, já demonstrando dotes de um excelente pensador, rejeitava a ideia de que um indivíduo poderia ser culpado de homicídio quando agisse inconscientemente, nem concordava com o conceito de que aqueles que o auxiliassem fossem também profanos. Os trezenos concordavam em hospedá-lo com todas as honras, mas Héracles, ele mesmo, porém, não compreendia tais princípios, não conseguia abranger a sua extensão e profundidade; apenas sentia, nada mais. Tinha assassinado seus filhos, por conseqüência estava profanado e profanaria aqueles com quem convivesse. Merecia bem ser injuriado e desprezado por todos. Por isso, condenou-se ao exílio e foi-se esconder nas montanhas, em lugar obscuro, onde mergulhou em profundo sono.

Então, desnorteado, foi para o reino de seu outro sogro e amigo, o rei Téspios, que procurou ajudá-lo.

Quanto aos filhos que morreram, devido à fúria do próprio pai, a eles foram prestadas honras em seus túmulos como heróis e chamaram-lhes Calcoares, “os que sofreram uma maldição de bronze”, mas os que o homenageavam não gostavam de contar a história da morte desses infelizes.

O tempo foi passando e, certo dia, Téspios aconselhou ao herói que fosse consultar a Pitonisa em Delfos. Talvez ela pudesse ajudá-lo a fazer alguma coisa para aliviar sua consciência pesada. Héracles aceitou o conselho e foi consultar a Pitonisa do deus Apolo. Só que Héra havia ido na frente para suborná-la. Por isso, ela disse ao herói:

— Tu cometeste o mais horrível dos crimes e, para ficares em paz, terás de obedecer às ordens dadas pela pessoa a quem tu mais detestas neste mundo!

Héracles fez cara de tonto, porque não se lembrava de detestar alguém em especial, e pôs-se a imaginar quem poderia ser.

E a Pitonisa declarou ainda:

— O poder usurpado por Euristeus, rei de Tirinto, será diminuído pelos deuses desde que realizes todas as provas impostas por ele. Quando isso se consumar, terás a tua liberdade e parte na imortalidade.

Héracles foi tomado de grande tristeza. Servir a um ser vil como Euristeus ia contra os seus princípios e parecia-lhe abaixo de sua dignidade. Mas não ousou desobedecer a seu pai, pois pensava que a ordem era sua. Em Euristeus uniam-se os sangues reais de Pélops e de Perseus, sendo de se esperar, assim, que o fruto dessas nobres estirpes fosse um homem de grande coragem e cavalheirismo. Euristeus, entretanto, não tinha nenhuma dessas qualidades.

O LEÃO DE NEMÉIA

Ao partir rumo a Tirinto, para pôr-se a serviço de Euristeus, Hermes lhe deu uma espada, Apolo um arco e uma aljava repleta de flechas, Hefaístos uma couraça dourada e Atena uma bela túnica. Poseidon, por sua vez, deu-lhe de presente dois belos cavalos, enquanto o pai Zeus deu-lhe um escudo invencível, no que havia gravadas doze cabeças de serpente ao redor de um grande círculo. Prodigiosamente, quando Héracles entrasse numa batalha, as serpentes entrechocariam suas mandíbulas.

Héracles aceitou as armas de muito bom grado, mas sabia que pouco as usaria. Mas alegrou-se com os animais, e atrelou-os a um carro de seu sogro Créon. Em seguida, foi para Tirinto, uma das residências do rei.

Por ter Euristeus nascido antes de Héracles, Héra então havia pedido a Zeus que concedesse ao futuro rei uma graça, qual a de “dominar a todos os seus vizinhos”. Como Héracles fosse nascer logo depois, nas proximidades de Micenas, tinha que submeter-se a Euristeus — decreto este que nem Zeus poderia revogar. A trama de Héra era perfeita, e freqüentemente a deusa ordenaria a Euristeus que lhe impusesse trabalhos perigosos, para que Héracles fosse purificado de seu crime. Se por acaso o herói voltasse vivo de uma missão, no prazo de um ano, Euristeus o encarregaria de outra ainda mais perigosa.

Euristeus, então, mandou o seguinte decreto a Héracles:

— “Eu, Euristeus, rei de Micenas e Tirinto e futuro senhor de toda a Hélade por vontade de Zeus, ordeno-te que venhas ao meu palácio onde receberás ordens para executar trabalhos que farão a glória de meu nome e do meu reino”.

Téspios recomendou que Héracles não desse ouvidos, mas o herói achava que os deuses queriam que ele obedecesse, porque acreditava que a Pítia havia falado em nome deles... além do mais, agora, Héracles se lembrava de que a pessoa que ele mais detestava no mundo era o magrelo rei Euristeus.

Héracles se apresentou ao rei-mor da Argólida, seu parente, oferecendo-se para lhe servir, para cumprir-se o seu destino. Estava destinado a servir-lhe durante noventa e nove meses e, com isso, garantir a paz e a tranqüilidade de sua mãe, Alcmena, em Tebas. Héra então sussurrou aos ouvidos do rei:

— Concorda, mas ordena que Héracles realize dez trabalhos, os mais difíceis que conseguires inventar, todos realizados no prazo máximo no período de noventa e nove meses. Eu quero que ele morra!

E Euristeus repassou as ordens da deusa, e o mensageiro procurou pelo filho de Zeus:

— Só há um meio de te purificares. Tu deverás realizar para o rei todas tarefas por ele impostas. Aguarda fora dos portões de Tirinto, e assim que fores chamado, deves comparecer diante dele.

Héracles teve que se sujeitar.

À noite, o rei Euristeus, em sonhos, recebeu a visita da deusa Héra, que o fez ver o terrível leão das montanhas, muito mais terrível que aquela fera morta por Héracles no monte Citéron. Euristeus acordou com aquela imagem real, e não descansaria até que Héracles trouxesse uma prova de sua morte.

Naquela manhã, o rei mandou chamar Héracles e ordenou-lhe pessoalmente:

— Na região de Neméia, ao norte desta cidade, acha-se o povo grandemente molestado por um leão que mata, não somente suas reses, mas também os pastores. Mata esse leão e traze-me sua pele, como prova de que desempenhaste a incumbência.

Tratava-se do Leão de Neméia, “léon némeios”, o filho de Tífon e Équidna, que habitava na borda setentrional da planície de Árgos, a uma distância não muito grande de Tirinto e Micenas, perto das montanhas sobre as quais passava a estrada de Corinto. A montanha mais alta, Apesa, sobre a qual o herói Perseus sacrificara a Zeus pela primeira vez, tinha ao seu redor o amplo vale de Neméia, com inúmeras cavernas próximas, e, numa delas, chamada Tretos, “a perfurada”, ficava o covil da fera que Héracles deveria enfrentar.

O heroico filho de Zeus, que já havia recebido de Hermes uma espada e de Apolo uma aljava cheia de setas e um arco, recebeu ainda, de Hefaístos, uma maravilhosa couraça, um manto de Atena e a bênção de Zeus seu pai. Confiante em suas forças e suas armas, Héracles partiu, já que, também, matar leões era sua especialidade.

Um rugido assustador rasgou o ar. Na casa do velho pastor Molorcos, na cidadezinha de Cleone, fez-se mais um silêncio aterrador. O monstruoso leão que aterrorizava a floresta de Neméia acabava de trucidar mais uma vítima. Molorcos sacudiu a cabeça tristemente, pensando no filho que a fera abominável havia tomado. Em toda a região de Neméia, nem os rebanhos nem os homens estariam seguros enquanto o animal continuasse fazendo estragos.

De repente, uma sombra gigantesca apareceu no vão da porta. A caminho das montanhas argólicas de Neméia, Héracles passava pela cabana do velho pastor de Cleone, na orla da floresta de Neméia, e lá ele pretendia permanecer para depois seguir caminho. Era um homem muito forte, um colosso, parecendo um gigante. Vestia pouca roupa, carregava um arco e uma aljava, portava uma longa e afiada espada de dois gumes e, nos ombros, cobria-se com um grosso manto vermelho.

— Meu bom pastor, meu nome é Héracles, e vim em paz. Estou aqui para matar o leão que assombra esta região. Será que posso ser teu hóspede por alguns dias?

Estupefato, Molorcos balbuciou:

— Claro que sim! Os deuses te enviaram!

Molorcos, que outrora era um rei, tendo fundado a pequena cidade de Molórquia, não o conhecia, era para ele um estranho. Mas mostrava coragem, parecia filho de um deus, mas era humano. Precisava ser bem acolhido. Preparou-lhe um banho, deu-lhe de comer e beber e mostrou-lhe o humilde leito de seu falecido filho, que havia sido devorado pelo cruel animal. Certamente, o herói teve que se adaptar ao leito, encolhendo-se, visto que era demasiadamente pequeno para ele.

Antes de partir, Molorcos quis sacrificar o único carneiro que possuía a Zeus, mas Héracles disse-lhe:

— Meu bom homem, deixa este animal viver mais trinta dias. Se eu voltar vitorioso de minha caçada, ofereceremos a caça a Zeus.

No entanto, se eu não regressar, tu ofereces o carneiro em minha memória. Pode ser?

O velho pastor concordou, e passou a ensinar-lhe o modo mais seguro ou de menos risco para atacá-lo; seria uma luta corpo a corpo, muito mais difícil do que a batalha que travara com os leões do Citéron.

Partindo pela manhã, com a aljava às costas, uma espada na cintura e o arco numa das mãos. Héracles chegou na aldeia de Neméia ao meio-dia. Percorreu as ruas desertas, entrou nas casas e encontrou-as todas vazias. Os camponeses ou haviam morrido ou fugiram para bem longe. Sem perda de tempo, seguiu rumo à floresta vizinha procurar pegadas do animal. E foi nessa região que encontrou-se com Nireus, filho de Cárops e Aglaia. Ele seguiu o herói em busca do Leão de Neméia e decidiu prestar-lhe ajuda.

Enquanto caminhavam, inspirado por Atena, Nireus dizia-lhe o que sabia sobre a fera. E disse-lhe que o leão, outrora, tendo nascido da deusa-serpente, a terrível Équidna, consorciada ao cão Ortos, habitava o país dos árimos,e passou a pertencer a Sélene, a deusa da lua. Ela criou o monstro com espuma do mar encerrada em um grande cofre. Ela, então, se desfez da fera e ordenou a Íris que a levasse para a terra, e desceu sobre a colina de Tretos, a uns três quilômetros de Neméia, junto de uma misteriosa caverna de duas entradas.

Héracles, acompanhado por Nireus, seu amigo, rumo à região montanhosa onde deveriam encontrar o leão, avistou, na região do Hélicon, uma oliveira e arrancou-a com raiz e tudo, antes os olhos estupefatos do companheiro. Depois, com a espada, fez dela uma poderosa clava. Depois, na espera, por lá permaneceram durante dez dias e dez noites em repouso, debaixo de uma colossal oliveira, sem ver uma só vez algum pastor nos campos ou na floresta; todos ficavam confinados devido ao medo, em suas casas.

Passaram pelo monte Apesa, assim chamado por ter morrido ali um chamado Apesantos, que diziam ter sido filho do rei Acrísios, de Árgos. Ele havia sido picado por uma serpente e não resistiu ao seu veneno. Logo, Héracles e Íolas chegaram aos pés da colina de Tretos, no décimo-primeiro dia, ao entardecer, e ouviram o urro do leão e saíram a sua procura. Héracles e Nireus avistaram o Leão da Lua, assim também conhecido por pertencer à deusa Sélene e porque diziam ter descido da Lua para a Terra, um horrendo monstro invulnerável que assolava a região de Neméia, na Argólida, fazendo grande quantidade de vítimas que por ali passavam, voltando para o seu covil na montanha. Parecia estar satisfeito; de sua cabeça, mandíbula e peito pingavam gotas de sangue, e ele lambia os beiços. Encontraram-no perto de um rio. O leão pôs-se de pé, como que esperando. Héracles, detrás de um grande arbusto, ajeitou no arco uma seta, fez pontaria e atirou, enquanto Nireus segurava atento a rede para pegá-lo. A seta atirada assobiou no ar e foi bater de encontro ao flanco do leão. Mas, em vez de cravar-se, entortou a ponta e caiu no chão. O animal ergueu a cabeça ensanguentada, revirou os olhos, olhando para todos os lados, e mostrou os dentes gigantescos. Assim fazendo, deixou o peito à mostra. Héracles lançou uma segunda flecha, a fim de atingir o coração, mas novamente ricocheteou. A fera apenas sacudiu a vasta juba e lambeu os pontos do corpo nos quais acreditou ter sentido algumas picadas de insetos.

A fama e os boatos sobre aquele animal eram verdadeiros: era invulnerável. E o herói estava apanhando a terceira flecha quando o leão o avistou. Puxou a cauda junto de si, e seu pescoço inflamou-se de ódio. Rosnando ameaçadoramente, abriu as mandíbulas e encurvou as costas. E o herói atirou a terceira; Nireus atirou uma quarta e ainda uma quinta seta, e nada adiantou.

A fera caminhou em sua direção, a passos lentos e decididos, o olhar chamejante de cólera. Héracles largou o arco e tomou a espada, e foi lançar-se contra o leão. A pesada arma, um presente do deus Hermes, vergou-se sem nem arranhar o seu couro. Este, furioso, preparou um bote contra Héracles, que levantou sua clava, feita de um tronco de oliveira. E não esperou que o leão se chegasse até ele, também foi-lhe ao encontro. Súbito, o leão lançou-se contra o herói. Héracles, agilíssimo, regirou no ar a poderosa clava e desferiu um golpe contra o monstro, em pleno ar, em pleno bote. Atingiu-o no centro da testa. O leão caiu, tonto, mas a clava se fez em pelo menos vinte pedaços. O monstro recuou e foi esconder-se no seu antro. Héracles e Nireus perseguiram-no. Ficaram lá fora um bom tempo, esperando a fera sair.

No dia seguinte, escutaram urros, do outro lado da montanha. A caverna tinha duas saídas. Então, Héracles foi lá, fechou o antro com uma grande rocha. A entrada menor, fechou com a rede de bronze. Então, os dois arrancaram arbustos e empilharam-nos sobre uma fogueira em frente à saída da caverna. Lá dentro, o leão furioso urrava abafado e arranhava a rocha procurando sair. Começaram a abanar a fumaça para sufocá-lo e forçá-lo a sair e emaranhar-se na rede. Mas o leão era pior do que Héracles imaginava, e saltou para fora, com rede e tudo, e conseguiu rasgar a rede com suas garras, antes que o herói pudesse atacá-lo. O monstro urrou, os olhos pareciam despejar fogo. E Héracles desafiou-o:

— Veremos, agora, quem pode mais!