A Saga de Hércules

Com outro salto, atirou-se em cima de Héracles, que o abraçou. Ambos caíram e rolaram pela encosta, quebrando tudo o que encontravam, fazendo o herói perder suas armas.

A poeira levantava, e Héracles, fechando os punhos, conseguiu esbofetear o animal.

Era inacreditável! Arregalaram os olhos, não acreditavam no que viam: a fera havia tonteado apenas, e já estava novamente de pé e ainda mais ameaçador! Héracles, olhando para todos os lados, procurou alguma coisa que servisse de arma ou de defesa. Nada encontrando, foi inspirado por Atena e saltou sobre o leão e abraçou-lhe a garganta. O leão, surpreendido, escabujou, fez esforços tremendos para desvencilhar-se. Chegou até a arrancar com os dentes o dedo médio da mão esquerda do herói. Héracles apertou-lhe o pescoço mais que pôde, enquanto os olhos do monstro começavam a saltar, como querendo pular das órbitas. A língua já saía para fora; o monstro começava a afrouxar. Seus músculos foram-se bambeando. E estava liquidado. Héracles ainda o manteve no arrocho por mais algum tempo e afinal o largou. A massa morta do Leão da Lua descaiu, estendeu-se no chão, diante do olhar estupefato do jovem Nireus.

— Bem, agora vou arrancar a tua pele, monstro asqueroso!

E Héracles foi apanhar a sua espada e, com ela, nada conseguiu fazer, nem arranhar sua pele. De força que fez, a espada chegou a quebrar. O mesmo aconteceu ao punhal. Começando a ficar irritado, Héracles olhou para o céu e gritou:

— Atena, me ajuda! Como vou conseguir tirar a pele deste bicho?

— Arranca uma garra dele e usa como faca!

— Mas como vou arrancar uma garra, se nem consigo cortar a pele?

Héracles nada ouviu de Atena, mas teve que pensar um pouco para perceber que poderia arrancar a garra com outra garra do leão, o que funcionou.

Em seguida, com a ajuda dos deuses, esfolou o leão, arrancou-lhe a pele e tomou-a como troféu pela vitória. Talhou para si uma nova clava de oliveira silvestre, depois, é claro, de ter conseguido estancar o sangue de sua mão já sem um dedo. Héracles fez a nova clava e dedicou-a a Hermes-Polígios, “o de muitos membros”, sinal de que um cajado tão poderoso se adequava especialmente a um ser dáctilo como o era Hermes quando trazia esse epíteto.

Então, entregues ao cansaço, os dois heróis tiraram um longo sono merecido; e, assim que acordaram, prepararam uma bela refeição e, em seguida, Héracles engrinaldou-se de aipo selvagem, como alguém que voltasse do túmulo, e partiram de volta para Cleone.

Pouco depois, pegando a pele de leão, Héracles colocou-a nas costas e, junto com Nireus, desceu em direção à cabana de Molorcos. O pastor, que não enxergava bem, quando viu quem se aproximava, deu pulos de alegria. Já findavam os trinta dias, e Molorcos preparava-se para fazer um sacrifício em homenagem a Héracles. Ficou assombrado, olhava ora para o semi-deus, ora para os restos do monstro que havia matado seu filho.

Depois de darem graças a Atena, protetora dos heróis, mataram um carneiro e queimaram suas entranhas na pilha de lenha, em frente da cabana. O cheiro de carne assada subiu ao Olimpo para agradar ao olfato de Zeus, o Zeus-Sóter, o deus do socorro. Depois, curtiu a pele do leão e pôs ao sol.

Na manhã seguinte, Héracles apanhou seu troféu, despediu-se de Molorcos e Nireus e partiu em direção de Tebas. O povo de Neméia, após voltar a Neméia, agradecido pelos seus serviços, instituíram festas em sua homenagem e passaram a realizar, periodicamente, no Istmo, os Jogos Nemeanos, cujos vencedores usariam a mesma grinalda que usou Héracles de regresso.

Esse primeiro trabalho produziu grande surpresa na Hélade. Por muito tempo, em todas as cidades, não se falou de outra coisa. O espírito do Leão da Lua foi transportado para o Céu, surgindo a Constelação do Leão (Leo).

Enquanto isso, a vingativa deusa Héra já planejava o segundo trabalho ao herói, e prometia não ser menos árduo.

A HIDRA DE LERNA

Héra planejava impor a Héracles vencer a terrível Hidra, nos pântanos de Lerna, pois sabia que expelia um gás tóxico e sua mordedura era venenosa e mortal, de modo que o menor ferimento em Héracles poderia ser fatal. Mesmo um arranhão bastaria para matá-lo, e Héra imaginava isso. A vingativa deusa sorria de íntima satisfação pela sua ideia.

Zeus, entretanto, zelava pelo filho. Adivinhando o pensamento de Héra, chamou o deus Hermes, que era o mensageiro do Olimpo, e cochichou ao seu ouvido:

— Hermes, corre a Delfos e avisa à Pítia que numa planta do Oriente está o remédio contra o veneno da Hidra. Se Héracles for ferido fatalmente, consultará a Pítia, não há dúvidas.

Héra pôs-se a cismar. Zeus escondia algo dela... E ficou ainda mais nervosa quando Atena foi ter com o pai, numa conversa secreta. A deusa mordeu os lábios e percebeu que Atena também favorecia o herói. Enfim, o Olimpo se dividiu em dois partidos: os que apoiavam Zeus e os que apoiavam Héra.

A deusa Héra disfarçadamente retirou-se, indo conspirar em outro grupo, onde se encontravam Áres e Poseidon.

Ao chegar em Tebas, a Cidade das Sete Portas, a primeira coisa que Héracles fez foi mandar entregar em Cleone, na casa de Molorcos, uma mula, como agradecimento, e prestou muitas honras a ele.

Em seguida, foi em busca de Íficles, seu irmão, sempre observado de longe pelo povo tebano, que o julgavam ao mesmo tempo herói e assassino. Íficles recebeu-o e levou-o para lugar seguro. Héracles pediu ao irmão que intercedesse em seu favor, a fim de pedir perdão a Mégare sua mulher e a Créon seu sogro, pela morte de seus próprios filhos, já que Íficles já o havia perdoado, reconhecendo a intervenção da terrível deusa Héra. Ele confortou Héracles e deu-lhe garantias que já havia sido perdoado, visto que Mégare havia recebido a visita de Atena e já havia sido preparada para o seu retorno. Mégare também compreendera que a morte de seus filhos fora causada por intermédio de Héra, a senhora do Olimpo.

Héracles, ainda desconfiado e receoso, foi para a casa de seu sogro, o rei Créon, quando sabia que o reino estava dividido entre ele e seu genro Édipos, um herói que havia livrado a cidade de um monstro alado chamado Esfinge. Héracles conhecia a história, admirava o seu heroísmo e a ele iria recorrer se preciso fosse.

Depois de percorrer as ruas de Tebas, em companhia de Íficles, aproximavam-se do palácio, quando arautos viram Héracles e foram avisar o rei. O primeiro a sair correndo pela porta do palácio foi o jovem Íolas, filho de Íficles, e correu abraçá-lo. Ao ouvir a notícia da chegada do esposo, Mégare, esquecida do assassinato de seus filhos, saiu correndo e foi esperá-lo na porta. Créon também foi, com seu jeito orgulhoso e nobre. A bela Mégare, de cabelos negros, sorria e, ao mesmo tempo, deixava escorrer lágrimas pelo rosto. Créon, ao contrário, mantinha-se firme, e observou:

— Soubemos que tu aceitaste o desafio dos trabalhos impostos por Euristeus para trazer a paz de volta à tua consciência. Também já soubemos de tua vitória. Entra, meu genro, e que reine a paz em tua casa!

Exultando de alegria, Mégare atirou-se aos braços do esposo e beijou-o ternamente.

— Oh, meu querido, não vejo a hora de tu terminares estas missões para voltares a viver tranquilamente entre nós...! Vem. Sabíamos que tu estavas voltando e preparamos um banquete para ti.

E uma grande festa foi realizada no palácio. Quase toda a aristocracia de Tebas estava presente, inclusive Édipos e Jocasta, Íficles, Pirra e Íolas, o velho profeta Tirésias, os demais filhos do rei Créon — enfim, todos os parentes e amigos do herói em Tebas.

Depois de alguns dias de descanso — até a pele do leão ficar inteiramente curtida — Héracles vestiu-a como uma capa, amarrando suas patas ao redor dos ombros, com as presas surgindo sobre a cabeça e a cauda balançando em suas costas, depois convidou Íficles para, juntos, irem a Micenas a fim de executar seus trabalhos. Íficles, mais acostumado à vida em família e aos sacrifícios aos deuses, preferiu entregar-lhe o filho Íolas, que há muito pedia ao pai para segui-lo e aprender com ele a ser um herói. Na verdade, Héracles tinha muito para ensiná-lo e precisava muito de um áuriga para levá-lo mais rápido aonde precisasse ir. E, também, a experiência pela qual passara ao enfrentar o Leão de Neméia pedia um escudeiro. Íficles permitiu, já que Héracles poderia defendê-lo e, aliás, Íolas era um adolescente forte, corajoso e um excelente áuriga — ao contrário de Ífidos, que ainda era muito jovem e fraco. E, além do mais, periodicamente Héracles retornaria a Tebas para rever seus parentes e amigos.

Héracles, para cumprir as ordens da Pítonisa, rumou para Micenas, onde Euristeus era seu senhor. Ainda não sabia Héracles que fôra por instigação de Héra que o Oráculo de Delfos o mandara ao rei de Micenas.

Ao entrar na cidade, vestido da pele do Leão de Neméia, a notícia correu pelas ruas e o ajuntamento de pessoas foi se tornando cada vez maior. Héracles abriu caminho na multidão.

Quando Copreus, o “homem-esterco”, viu Héracles se aproximando, gelou dos pés à cabeça. O arauto do rei, filho do famoso rei Pélops, era um homem magro e tinha o olhar maldoso e zombeteiro. Sempre usava uma fita prateada na testa, amarrada atrás, na cabeça, e ficava o tempo todo esfregando as mãos. Era o mensageiro direto do rei, seus olhos e ouvidos.

Numa corrida desenfreada, foi avisar Euristeus, que se encontrava encolhido em seu trono. Ao chegar aos seus ouvidos sobre a chegada de Héracles, ficou desapontado, pois contava com sua morte.

— Manda trancar os portões! Não deixai Héracles entrar na cidade! Não quero vê-lo!

— Mas, Majestade, Héracles já se encontra em Micenas e vem chegando ao palácio...

— Então manda trancar as portas do palácio!

Copreus foi dar ordens aos guardas, que obedeceram.
Quando Héracles percebeu que o rei estava com medo, começou a rir. Mas, como precisava provar a Euristeus que havia cumprido a primeira missão, cochichou qualquer coisa ao ouvido de Copreus, que perguntou:

— Mas conseguiste matar o Leão de Neméia, como te foi ordenado?

— Sim, o matei.

— E que provas me dás disso? Trouxeste a pele do leão?

— Ei-la.

E, retirando a pele de suas costas, apresentou-a a Copreus, miraculosamente esfolada e curtida, como se fosse obra de algum deus.

Dali a pouco, Copreus e um soldado entravam na sala do trono levando a pele do leão esticada na ponta de paus. Quando Euristeus bateu os olhos naquilo, viu a boca escancarada do monstro, deu um berro que todos do palácio ouviram e desmaiou aos pés do trono. Copreus gritou para os guardas, quase tendo um faniquito:

— Trazei água e levai esse monstro horrível daqui! E não vos atreveis a comentar com ninguém o que acabais de ver nesta sala! Cabeças vão rolar!

Os soldados, às pressas, se retiraram levando a pele do leão, e a entregaram a Hércules.

— Agora, vai embora!

Héracles, dando-lhes as costas, tratou de procurar um lugar, em Micenas, para descansar. Levou consigo a pele de leão, que era o seu troféu, e o carregaria consigo sempre, a partir desse dia.

Enquanto Euristeus estava desmaiado, Héra aproveitou-se para inspirar-lhe uma segunda tarefa. Por isso, assim que voltou à consciência, o rei, furioso e mais pálido do que nunca, quis saber:

— Héracles! Onde está Héracles?

— Foi embora, Majestade.

— Pois vai procurá-lo! Vai dizer àquele brutamontes que ele terá de matar a Hidra de Lerna!

Copreus arregalou os olhos.

— A Hidra de Lerna?! O monstro imortal? A cadela de Lerna?

— Vai agora, miserável!

— S-sim, Majestade!

— Eumolpos! Eumolpos! Onde está Eumolpos?

E saiu pelos corredores a procura de seu ministro para contar-lhe a nova inspiração para matar Héracles.

Foi então que o rei mandou o mensageiro lhe dar ordens de cumprir um segunda tarefa:

— Deves matar a Hidra, a “cobra-d’água”, o dragão de corpo de leão que vive nos pântanos de Lerna.

A Hidra era irmã do Leão de Neméia e de tantos outros monstros, filhos de Tífon e da deusa-serpente, Équidna. Diziam que havia crescido lá mesmo. Seu hálito era pestilento e seu sangue era venenoso. Muitos heróis já haviam morrido na tentativa de eliminar o monstro, que também fazia morrer com seu alento as relvas e as messes e destruía o gado. Até aqueles dias não se sabia com certeza quantas cabeças tinha. As opiniões variavam de sete a cem. Na verdade, tinha nove: oito mortais e uma imortal — pelo menos era assim que se apresentava atualmente. Mas muito pouco se sabia a respeito. Por isso, receando enfrentá-lo sozinho, Héracles contou com o auxílio de seu escudeiro e áuriga, Íolas.

Para melhor informar-se, Héracles e Íolas foram procurar o Oráculo de Pleceus. Entrando no antro da feiticeira, Héracles avistou uma bela mulher, que tentou seduzi-lo e enfeitiçá-lo; mas o herói resistiu, ameaçando matá-la se não lhe dissesse o que queria saber. Imediatamente, a feiticeira tomou a forma de um terrível dragão; mas foi vencido, e o dragão tomou sua forma real: uma velha decrépita e horrível. Ameaçada, foi obrigada a revelar tudo sobre a sentinela do mundo das sombras e suas características mortais, e de que maneira Héracles poderia vencê-lo.

Héracles e Íolas, de carro, guiados pela deusa Atena, foram para a região montanhosa e pantanosa de Lerna, na fronteira da Argólida e da Lacônia, não longe de Micenas e Tirinto, na estreita faixa de terra entre o monte Pontinos e o mar. Ficava a uns oito quilômetros de Árgos. Ali existiam verdadeiros abismos cobertos pela água fresca originária das muitas fontes que brotavam do sopé da cordilheira de calcário. A oeste se lançava o monte Pontinos, com seu bosque sagrado de plátanos que se estendia até o mar. Este bosque limitava-se de um lado pelo rio Pontinos — junto ao qual Dânaos dedicou um altar a Atena — e de outro pelo Amínome, onde se achavam as imagens de Deméter, Dionisos e Prosimna, uma das amas da deusa Héra; e na costa ficava uma estátua da bela deusa Afrodite, dedicada pelas Danaides. Todos os anos eram realizados em Lerna ritos noturnos secretos em honra de Dionisos, quem desceu ao Tártaros através deste lugar quando foi em busca de sua mãe Sémele; e não longe dali se celebravam os mistérios de Deméter-Lernéa num recinto que assinalava o lugar por onde Hádes introduziu Perséfone ao seu reino sombrio.

Logo, os cavalos pararam de correr, corcoveando e relinchando, amedrontados com alguma coisa. Não queriam prosseguir. Héracles entendeu que a Hidra estava por perto. Assim sendo, vestiu a cabeça do leão como um capacete e ajeitou melhor a pele em seu ombro. Saltou do carro, enquanto Íolas tratou de ocultá-lo e aos cavalos, para protegê-los.

— Eis que encontraremos o plátano que a deusa Atena me indicou. É neste lugar que mora a Hidra...

O lugar era impressionante. Do pântano elevava-se uma sinistra bruma e, à medida que caminhava, ele tinha a impressão de estar mergulhando em uma nuvem. Era o vestíbulo dos Infernos. A qualquer momento o monstro poderia surpreendê-lo. Mas nem sinal. Tudo era silêncio.

Íolas caminhava na retaguarda, e foi ele mesmo que avistou... a fonte tripla de Amímone, ao lado da qual havia uma grande e verdejante moita de capim. Héracles tirou setas da seteira, amarrou-lhe ramos secos, ateou fogo e disparou várias setas naquela direção, ateando fogo no capinzal ao redor da fonte, onde, no centro, crescia um enorme plátano. Héracles, ao perceber que estava sendo vigiado, avançou e deparou-se com o monstro, que saía de sua toca e ia juntar-se à raiz do plátano. Eram nove cabeças maiores do que de jiboias, cujos olhos brilhantes procuravam, ferozes, o responsável por aquele ultraje. Da boca vermelha pingava uma baba pestilenta, e as línguas bipartidas moviam-se rápidas como chicotes.

Héracles, apanhando a maça, correu de encontro ao monstro e foi abatendo uma a uma. Chegou a ser mordido por uma das serpentes, mas foi salvo pela pele de leão que o protegia. A Hidra fez cara de tonta e ficou ainda mais furiosa. Depois, notando que as cabeças se recuperavam com os golpes, apanhou suas flechas, inflamou-as e atirou-as com seu arco de ouro, e nada de mal lhes fizeram. Por isso, pensou em cortá-las uma a uma. Desembainhou a espada de punho de ouro e começou a cortá-las. Com grande espanto, viu que no lugar de uma cabeça decepada nasciam duas, de duas quatro, de quatro oito... e a Hidra era um ninho de serpentes. Não adiantava Héracles insistir nos golpes, pois cada vez mais se tornava difícil de derrotá-la. E, aproveitando um momento de distração do herói, a cauda do monstro enleou-se-lhe nas pernas e o apertou como num torno, ficando ele paralisado, não podendo recuar, diante dos olhos perplexos de Íolas, ainda um jovem sem experiência alguma. Foi aí que Héra fez surgir da caverna, ali do pântano, um enorme caranguejo, que lhe ferrou as pinças no calcanhar. Um grito de dor lhe escapou da boca e, com a espada, despedaçou-o com três golpes. E uma voz lhe soou ao ouvido e lhe deu inspiração. Héracles gritou:

— Íolas! O fogo! Temos que queimar as partes decepadas...!

Só assim não deverão nascer mais cabeças!!!

Íolas correu para apanhar fogo. Conseguindo isso, ateou fogo na floresta, com um tição, com a ajuda do deus Éolos e os seus Ventos, varrendo as chamas e deixando ao seu encontro vários troncos em brasa. E, tomando o tição, correu para junto de Héracles, que fazia surgir mais cabeças na medida que as decepava para poder defender-se.

De repente, num golpe de espada numa das cabeças, Íolas aplicou-lhe o tição, assando o pescoço da serpente, e assim sucessivamente, até a última cabeça se extinguir. Mas uma delas, de aspecto diferente e maior, Héracles não conseguiu cortar... Era indestrutível! Tinha o aspecto de um cão raivoso!...

Agora livre da cauda do monstro, correu, seguido pelo monstro, e subiu morro acima, à beira da estrada que ia de Lerna a Eleunte, onde foi apanhar uma enorme rocha. A Hidra, ameaçando mordê-lo, ardia em chamas. Mas Héracles, unindo todas as suas forças, atirou a rocha sobre o monstro, soterrando-o vivo. E Héracles, descendo novamente, mais aliviado, subiu para pisotear a cabeça esmagada do monstro, que de súbito lhe falou, à beira da morte:

— Abre o corpo do qual tu me decepaste, filho de Zeus!

Héracles levou um susto, saltou ao cão e sacou da espada. E a cabeça, abrindo os olhos, continuou:

— Mergulha tuas flechas no meu fel. Por mais leve que seja o ferimento feito por elas, ferirá de morte o descuidado ou qualquer que seja o teu inimigo. Não se conhece antídoto contra o meu veneno. Me venceste, e não tenho nada para te esconder.

E fechou mais uma vez os olhos para o Sono eterno.

Héracles, então, decidido, rasgou com sua espada o papo da Hidra escabujante para molhar no sangue negro a ponta de suas flechas. A partir de então, elas, atingindo o alvo, infligiriam ferimentos incuráveis e mortais.

Só então é que notaram que ambos haviam-se ferido. Héracles tinha vários arranhões pelo corpo e Íolas no braço. Estavam envenenados... Héracles, sem nada dizer, foi-se sentar numa pedra e pôs-se a pensar. Foi aí que surgiu Palas Atena e lhe sussurrou de novo ao ouvido:

— Vai a Delfos, grande Héracles! A Pitonisa te indicará a planta do Oriente que anula o veneno do monstro.

E Héracles, erguendo-se, disse ao jovem amigo:

— Estamos salvos, amigo! Ouvi uma voz divina. Manda-nos correr a Delfos em consulta à Pitonisa. Há no Oriente uma planta que me curará.

Ergueram-se os dois, recolheram oito cabeças do monstro num saco e foram direto para Delfos, ao santuário de Apolo.

Em Lerna restara um odor horrível, um gás tóxico, o cadáver da Hidra, uma de suas cabeças — e assim continuaria — entre tantas outras, um caranguejo estraçalhado e um pântano repleto de esqueletos humanos — havia lá pelo menos dez cadáveres, todas vítimas daquela criatura repugnante.

Héra, descendo do Olimpo, foi apanhar os pedaços do infeliz caranguejo, emendou-os e colocou o crustáceo no Céu, assim nascendo a Constelação de Câncer (Cancer). E a Hidra também teve um lugar entre as estrelas, nascendo a Constelação da Cobra Fêmea (Hydra).

Após esse episódio, Héracles buscou desesperadamente pela cura, e só a encontrou num lugar secreto com o auxílio de seu amigo, o centauro Quíron.

A CORÇA DOS PÉS DE BRONZE

Héracles e Íolas, então, depois de curados pela Pítia de Delfos, voltaram a Micenas e foram esconder a aljava cheia de flechas envenenadas. Depois, sabendo que Euristeus na cidade se encontrava, já que ele mudava de palácio constantemente, foi até ele e levou consigo oito cabeças da Hidra. Na verdade, nem rei Euristeus nem ninguém sabia ao certo quantas cabeças tinha o monstro, então não poderia exigi-las todas. A notícia do segundo trabalho cumprido já estava nos ouvidos e na boca do povo. Quando os heróis foram ao palácio, já o rei sabia da novidade.

Euristeus estivera carrancudo, a excogitar um novo trabalho para o herói, que de fato tinha jeito de ser invencível. E consultou Eumolpos, um ministro seu:

— Eumolpos, Héracles não tarda a vir procurar-me para dar conta de sua peleja com a Hidra, já fui informado. Ele a venceu como o fez ao Leão de Neméia. Dize-me: que terceiro trabalho posso lhe impor?

Eumolpos segurou o queixo e pôs-se a refletir. Héra colocou-lhe planos na cabeça, que, então, sorriu e disse:

— Achei...! Héracles venceu o Leão de Neméia e a Hidra, monstros grotescos que só valiam pela força. Mas se o mandarmos contra a famosa Corça de Pés de Bronze?

— A corça da região de Cirínia?

— Sim, a linda corça de chifres de ouro e pés de bronze, lá do Templo de Ártemis, no monte Círene.

— E que perigo oferece esse... "monstro"?

— Essa corça é consagrada à deusa, de modo que Ártemis a protege. Tem a fama de que nada no mundo corre com maior velocidade — e não se cansa. Pode correr dias, um ano inteiro sem parar, por isso fala-se que tem os pés de bronze, justamente para correr o tempo que quiser, sem necessidade de descanso para os cascos. Duvido que possa pegá-la... Daremos a ele um prazo para fazê-lo, quem sabe um ano. Ademais, quanto mais tempo ele tiver para realizar tal tarefa, mais tempo ficaremos livres dele...

Na verdade, Héra, sempre ressentida, sabia que capturar a corça era algo proibido, e tal tarefa criaria um irreparável remorso a Héracles. Euristeus aprovou a insidiosa ideia, de modo que recebeu o herói todo amável e risonho. Fingindo nada saber, disse-lhe logo de começo:

— Então, amigo Héracles? Venceste a Hidra também, ou...?

— Tu o sabes, rei Euristeus. Eu a venci.

Héracles abriu um grande saco para mostrar o que havia dentro dele.

— Não vou esconder, Majestade, que falta uma cabeça da Hidra, justamente por ser imortal. Essa tive que esmagá-la, queimá-la e enterrá-la bem fundo, com uma enorme pedra em cima.

— Muito bem, Héracles! Muito prazer me dá ver-te de novo forte e em perfeita saúde, com mais uma tarefa realizada... e sem um arranhão! Se outro me dissesse isso, eu não acreditaria, mas como foste tu mesmo... Tuas proezas justificam a fama que tens. Aqui em Micenas o povo só fala em Héracles, só quer saber de Héracles, Héracles aqui, Héracles ali... E ainda ficará mais apaixonado pelo grande herói quando Héracles me trouxer aqui, viva, a bela corça Melânia, do monte Círene. Algo fácil. Nada monstruoso e perigoso... apenas pegá-la viva e trazê-la para mim. Faze-o... mas nada de mal deve-lhe acontecer.

Héracles empalideceu. Sabia que haviam cinco corças da mesma espécie nas alturas do Mênalos: quatro estavam atreladas ao carro da deusa Ártemis, e a quinta corria livre pelas florestas da Arcádia, aos pés do Círene. Chamava-se Melânia, pelos seus pés de bronze, ou Cirenita, por habitar o monte Círene. Apesar de possuir chifres, era fêmea. Ninguém jamais a havia capturado. Sempre que alguém tentava fazer-lhe algum mal, ela corria a abrigar-se num dos templos da deusa. Héracles conhecia a fama desse animal, invencível na corrida. Mas consolou-se.

— A corça sagrada? Mas... ela pertence a Ártemis, a deusa das florestas. Como posso tirá-la de minha irmã divina?

— É, já ouvi dizer que acreditas que Zeus é teu pai... e não me interessam problemas de família.... A mim compete escolher os trabalhos, e a ti, executar. Portanto, retira-te, porque tenho muito o que fazer!...

Só então, vendo que Héracles estava acompanhado de Íolas, se tocou e reclamou:

— Outra coisa: eu ainda não te disse que tu tens de trabalhar sozinho? Se contaste com ajuda, o segundo trabalho será anulado...

Franzindo a testa, Héracles se aproximou do trono, fazendo o rei se encolher:

— Escuta bem o que vou te dizer, Euristeus: embora sejas tu quem determinas os trabalhos, eu só obedeço para agradar aos deuses, entendeste? Por isso, não me interessa o que tu pensas! Se não quiseres considerar válido este trabalho, então... fica com este presente!

E virou o saco de boca para baixo, deixando cair no colo do rei as oito cabeças ensanguentadas da Hidra. Euristeus deu um salto do trono e tamanho urro, que os soldados acudiram. Ele quase voou no colo de Copreus que ruía as unhas, apavorado. Levou um bom tempo para Euristeus se recompor. Com as roupas ensanguentadas, começou a se sacudir tentando livrar-se delas, e ficou apenas com a roupa de baixo. Enquanto Héracles e Íolas davam as costas para o rei, este ordenou ao herói, gaguejando:

— Sa-sai! Sai d-da minha f-frente!

A todo custo Euristeus se mantinha em pé. E Héracles entregou a espada, o arco e a clava ao chefe da guarda do palácio.

— Perfeito, Euristeus, pensaste em tudo. Espero ter a honra de trazer, aqui, bem viva, a famosa Corça dos Pés de Bronze.

Depois, se retirou.

Logo que Héracles saiu, Euristeus esfregou as mãos, ainda muito nervoso, e disse ao velhaco Eumolpos:

— D-desta vez n-não me, me escapa... E m-manda limpar e-esta, esta sujeira!

No alto do Olimpo, Héra gargalhava feliz porque havia maquinado plano perfeito para indispor o herói. Ela estava segura de que, dessa vez, seria o fim do filho de Zeus.

A corça sagrada do monte Círene, na Arcádia, era incomum. E certamente era, pois as corças não tinham chifres, e não têm ainda hoje. Deveria ser um ser divino. Havia sido uma das cinco corças com as quais a deusa dera as primeiras provas de sua arte de caçar. Protegida por Ártemis, era rapidíssima e incansável. Não existia alguém que pudesse alcançá-la. Se o fizesse, certamente causaria a fúria da deusa Ártemis, o que seria fatal! Mas o Destino havia determinado que ela deveria ser libertada nas montanhas para que um dia um filho de Zeus tentasse alcançá-la.

Então, Héracles e Íolas voltaram para Tebas, prevendo que o próximo trabalho seria um dos mais longos. Héracles precisaria mais de fôlego e persistência do que força e coragem. Então, resolveu ficar em Tebas por alguns dias e, na hora da partida, Mégare estava inconsolável, já que, num sonho, uma Pitonisa havia-lhe anunciado a ausência do marido por quase um ano.

Héracles e Íolas partiram, numa biga, em direção da região de Acaia, perto do golfo de Corinto, seguindo rumo a noroeste.

Rumavam para o monte Círene, na Arcádia, não muito longe de Micenas e vizinha da Argólida. Lá, a corça costumava se esconder. Vagueava por toda a região selvagem e pelas montanhas da deusa nas vizinhanças de Árgos. Altas cadeias de montanhas separavam a terra de Árgos da Arcádia a oeste, o Partênios, “montanha virgem”, e o Artemísios, “montanha de Ártemis”. Ali imperava a deusa virgem. E o seu templo ficava num pico do maciço do Artemísios e ali tinha ela o título de Enéade, “de Ênoe”, a aldeia do vinho, proveniente da última cidadezinha e da região mais afastada ainda pertencente a Árgos.

Foi uma viagem tranquila, até chegarem na região de Cirínia, onde deram com um bando de Ninfas que saíam do bosque, tontas de terror, perseguidas por três Sátiros. Héracles, sacando do carcás três setas, dobrou o arco e atirou, derrubando-os feridos. Héracles se surpreendeu por não tê-los conseguido matar. E foi com maior espanto ainda que viram as Ninfas acudirem seus perseguidores, e que em seguida elas os levaram de volta ao bosque, como se quisessem curar seus ferimentos.

Héracles e Íolas, coçando a cabeça, sem nada entender, continuaram a viagem. A Arcádia era, sem dúvida, um país muito estranho.

Chegaram ao monte Círene e, logo ali, encontraram um templo de Ártemis. Antes de prosseguirem , fizeram um sacrifício no templo a fim de apaziguar a deusa e pedir-lhe o sucesso daquele trabalho. Em seguida, saíram à caça da corça, cujos chifres de ouro brilhavam ao Sol. Foram procurá-la num bosque vizinho, ao pé do monte. Héracles e Íolas, desarmados, apenas auxiliados por uma rede, separaram-se para procurá-la em pontos diferentes, em dois extremos, para então se encontrarem e encurralarem a Cirenita.

Depois de vários dias, finalmente encontraram rastros que os conduziram até um gramado muito verde. Era um lugar perfeito. De pé, num promontório, lá estava ela! Não era à toa que Ártemis a amava porque, além de ser um presente recebido de Taígete, filha do gigante Átlas e mãe de Lacedémon, era um animal belíssimo! Sua pele parecia veludo, porém o mais fantástico eram seus cascos de bronze e seus chifres torneados em ouro maciço. Tinha olhos negros e meigos. Era, realmente, um dos mais belos animais que a Natureza já havia produzido!

Ao tentar se aproximar, Héracles fez ruído e causou a fuga do animal.

— Íolas, corre!

A corça, rapidamente, desapareceu da vista dos heróis, que temeram não mais encontrá-la de novo. Ela saiu do bosque de Ênoe foi para o monte Artemísios. Passaram o dia procurando por ela, e não a encontraram. Passaram a noite naquele lugar.

No dia seguinte, foram a Tebas e, em seguida, foram a Delfos, a fim de consultar o Oráculo de Delfos, pois desejavam saber o paradeiro da corça de Ártemis. Héracles consultou a Pítia:

— Desejo saber em que rumo está correndo a corça Cirenita, de pés de bronze.

A Pítia, ou Pitonisa, ouviu a pergunta com atenção e, depois, estendendo os braços, debruçou-se sobre a fumaça sagrada e entrou em estado de transe, aspirando-a. Algum tempo depois, abrindo os olhos, revelou:

— Depois de chegar à terra dos Hiperbóreos, a Cirenita voltará para sua deusa.

Héracles e Íolas entreolharam-se, e logo saíram do templo.

O sonho de Mégare havia sido um prenúncio da verdade, pois estava começando uma caçada que demoraria em torno de um ano. Do monte Artemísios, a corça foi para as margens do rio Ládon e, depois, tomou rumo ao golfo de Corinto, e logo Héracles avistou as águas azuis do mar. De lá, seguindo para o norte, ela passou por Téspias, onde morava o rei Téspios, amigo de Héracles. Sua nova direção foi a Etólia, depois o Épiros, lugar onde existia um dos mais antigos santuários de Zeus na gruta de Dodona. Héracles acabava sempre chegando ao lugar onde a corça se encontrava, mas não havia meio de conseguir agarrá-la. As estações do ano iam mudando. Agora, em plena primavera, com a terra toda florida, a caçada continuava: através de toda a Ilíria espraiada do Adriático, depois rumo ao norte, às pastagens onde os nômades perambulavam em suas carroças cobertas com peles de boi. Depois, no verão, continuando rumo ao norte, passando pelas fontes do Istros, onde a deusa Ártemis tinha um bosque sagrado, habitado por veados e lobos. Os vênetos, povo do lugar, chamavam esse lugar de Raícia (a Raetia dos romanos), a mesma região depois chamada de Órcia ou Ortósia. Depois dirigiu-se para a Ístria, a terra longínqua dos Hiperbóreos, próximo da atual península do Timavo, no extremo do mundo, onde morava o vento Bóreas, sem soprar. Lá, o Sol só se levantava e se punha uma vez por ano. As frutas amadureciam com uma rapidez milagrosa. Sem brigas e sem preocupações, os Hiperbóreos viviam uma vida serena, de mil anos, sob a proteção do grande deus Apolo. E foi nessa região que Héracles colheu um ramo de oliveira para depois plantar sua semente em Olímpia, até então desconhecida.

Começou o inverno, os dias ficaram mais curtos e frios, mas Héracles, inspirado por Zeus, continuava perseguindo Melânia, entre os bosques de bétulas, e voltou às pastagens da Ilíria, passando pelo santuário de Dodona e o Oráculo de Apolo em Delfos.

Héracles e Íolas retornaram para a Arcádia, aos pés do monte Círene. E, permanecendo num ponto de passagem obrigatória para se chegar àquele lugar, ficaram à espera da corça.

De Delfos, a corça seguiu para a Beócia, o Istmo e, finalmente, caiu exausta às margens de um rio no coração da Arcádia, perto da cidade de Ênoe. Até que, finalmente, puderam ver ao longe o brilho de seus chifres de ouro. Com isso, foram-se esconder no bosque. A corça, contornando o Ládon, reapareceu. O rio estava muito violento e a Cirenita hesitou atravessá-lo. E foi pega de surpresa. A corça tentou fugir, mas Héracles, que estava descansado, correu para agarrá-la, com a rede nas mãos. Quando uma enérgica voz feminina se impôs:

— Não te atrevas a colocar as mãos em minha corça!

Héracles voltou-se e viu Ártemis, alta, furiosa, perigosa e muito bela, com seu irmão Apolo. Ártemis não hesitava em matar ou castigar quem contrariasse suas ordens ou prejudicasse seus domínios, e, em várias ocasiões, havia sido muito maldosa, matando friamente os infratores.

Acompanhada de Apolo, com uma expressão zangada e com o arco direcionado para os heróis, continuou:

— Quem tu pensas que és? Zeus pode ser teu pai, mas não és deus algum para te atreveres a vir roubar a minha corça!

E, ameaçadora, continuava a apontar o arco, insistindo:

— Explica-te!

— Irmã Ártemis, estou só cumprindo ordens de Euristeus, o rei de Micenas, a quem eu mais odeio. Acontece, porém, que venho executando alguns trabalhos que lhe foram inspirados pelos deuses, que prometeram aliviar a minha consciência pesada por um horrível crime que cometi contra meus próprios filhos. Meu propósito é apenas levar a corça que, depois, restituirei a ti sã e salva.

— Que tenho eu a ver com as ordens de Euristeus?

— É pela vontade de nosso pai que obedeço às ordens do rei, Ártemis. Estou falando a verdade, mas, se achares que estou mentindo, podes matar-me...!

Ele olhou tão destemidamente que Ártemis, lendo no fundo dos olhos do herói , viu que era sincero. Então, lentamente, baixou a arma e disse:

— Está bem, Héracles, leva a corça a Euristeus, mas cuida para que ela não sofra. Cuida dela e traze-me de volta, pois me pertence.

Héracles, então, atou as patas de Melânia uma à outra e carregou-a nos ombros, carinhosamente. Os dois já iam subir no carro, quando Ártemis falou-lhes:

— Aliás, esta foi a primeira vez que um homem me dobrou. Parabéns!

Contente com mais essa vitória, Héracles acenou para a deusa e Íolas tocou os cavalos. Levaram-na viva e ilesa a Micenas.

Enquanto isso, no Olimpo, Héra tinha uma explosão de ódio, porque jamais poderia ter imaginado que Héracles conseguisse dobrar a austera e belicosa deusa protetora dos animais selvagens.

A entrada dos heróis em Micenas causou sensação. Héracles entrara triunfante, acompanhado de seu amigo Íolas, e foi aclamado vitorioso, não havendo proeza que não pudesse cumprir.

Quando os heróis chegaram aos pés dos muros do palácio, com a corça nos braços, amarrada, o rei, mortificado de paixão, fulminou com os olhos o ministro Eumolpos que lhe sugerira aquele trabalho. Por pouco não lhe deu uma sova.

— Salve, Majestade! Aqui tens a Corça de Pés de Bronze e Chifres de Ouro, que vivia sob a proteção da gloriosa Ártemis.

E colocou-a no chão, sem um único ferimento, de modo que, se Héracles a tivesse prejudicado, provocaria a fúria da deusa Ártemis. O despeito de Euristeus em virtude de mais uma vitória de Héracles transparecia em seus olhos. Mas procurou dominar-se, ainda mais quando viu aquele belo animal. Ficou tão extasiado que se esqueceu da zanga.

— Parabéns, Héracles. Amanhã determinarei o trabalho seguinte. Quanto ao animal, leva-o para o viveiro de meu palácio. Ela será minha.

— Nunca! Meu trabalho era apenas trazê-la e, depois, soltá-la para voltar a viver no monte Círene...

— Que ousadia! Quem dá ordens aqui sou eu! Faze o que estou mandando!

Depois de algum momento de reflexão, Héracles, balançando a cabeça, concordou:

— Esta bem. Vem buscá-la que eu a entregarei somente a ti...

Euristeus fez um sinal para o capitão da guarda pessoal para que o protegesse. O guarda se aproximou de Héracles e, depositando no chão as suas armas — a espada, a clava, o arco e o carcás — ali permaneceu atento aos seus movimentos. Euristeus desceu da muralha e aproximou-se todo satisfeito, enquanto Héracles desamarrava os pés da corça. No momento em que o rei ia estendendo a mão para afagá-la, Héracles soltou a corça que, livre, deu um salto, passou por cima da cabeça do rei e desapareceu rápida como um relâmpago da vista de todos. Euristeus ficou branco de susto e vergonha. Disse-lhe Héracles:

— Bem, agora, vou para casa descansar um pouco. Quando estiver pronto, voltarei para saber qual é o meu próximo trabalho...

E afastou-se, enquanto Euristeus mordia os lábios quase a ponto de verter sangue. Furioso, começou a chutar cadeiras e derrubar objetos ao chão, enquanto entrava no palácio a passos largos.

— Ele me paga! Ele há de passar o mesmo vexame que eu passei diante de todos os meus súditos, quando aquela corça maldita saltou sobre a minha cabeça!

E, dirigindo-se a Eumolpos,começou a rir repentinamente, até precisar enxugar os olhos. Eumolpos começava a pensar que Euristeus enlouquecia.

— Sabes, Eumolpos, Héra me apareceu em sonhos e me assegurou que ele jamais sairá vivo desta missão! Ela maquinou mil ciladas para essa montanha de músculos!

No dia seguinte, Copreus, o mensageiro de Euristeus, foi procurar Héracles numa das pousadas de Micenas. Ele portava um pergaminho. Héracles, que mal sabia ler, pediu a Íolas que lesse por ele.

— É, o rei não perde tempo mesmo. O que diz aí?

— “Sua Majestade o Rei Euristeus, de Micenas e Tirinto, ordena ao seu súdito Héracles que siga imediatamente para o monte Erimantos, na região da Psófida, a fim de capturar o monstruoso javali que anda a assolar aquelas paragens. E como assim quer, assim manda. Assina Eumolpos, Primeiro-Ministro de Sua Majestade Altíssima.”

Héracles arreganhou um sorriso, enquanto Copreus encolhia os ombros. Se era um javali, então se tratava de massa-bruta, e disso ele jamais teria medo.

— Sim, eles representam a Inteligência e eu só disponho da Força. Em muitos casos a Força nada vale e a Inteligência é tudo — como no caso da corça Cirenita. Mas um javali... É, são ainda mais broncos do que eu... Íolas, amanhã de madrugada vamos partir.

Na madrugada seguinte, partiram de Micenas. Foram para Tebas, onde Mégare, desconsolada, não queria que Héracles continuasse enfrentando aqueles perigos. Entretanto, deveria continuar. Resolvendo poupar Íolas, mesmo contra a vontade deste, partiu sozinho para uma nova missão. O monte Erimantos ficava a nordeste, próximo à Arcádia. A viagem seria longa: em torno de cinco dias para lá chegar.

NA MORADA DE FÓLOS

Então, mais uma vez, rumou para a Arcádia, agora em direção do monte Erimantos, na região chamada Psófida. O monte ficava perto da cidade de Psófis, no canto noroeste da Arcádia, confinando com as regiões da Acaia e da Élide.

No decorrer da viagem, ouviu muito falar daquele monstruoso javali. Diziam que, cada vez que descia para os vales, fazia estragos horrorosos. Daí o pavor dos seus moradores e o pedido de socorro que endereçaram ao rei Euristeus, para que enviasse um campeão ou um exército para enfrentá-lo. E com esperança de que Héracles perdesse a vida na luta, Euristeus mandou-o combater o feroz Javali do Erimantos.

A Arcádia era a região mais atrasada de toda a Hélade, por ser muito montanhosa e, por isso mesmo, pouco povoada. Era formada essencialmente de pastores; a indústria não ia além da pastoril. Sempre que um poeta grego fazia um poema bucólico, era na Arcádia que punha o cenário, já que era a região preferida dos deuses de modo geral, especialmente de Sátiros, Centauros, Ninfas e outros gênios... e lápitas também, um povo semi-animal que nada tinham a ver com os lápitas da Hemônia (Tessália). Se precisassem os gregos de um pastor, iam buscá-lo na Arcádia. E, além do mais, não era portuária, não conheciam os árcades a lida do mar, não construíam navios. Era, basicamente, uma passagem obrigatória para as viagens através do Peloponeso.

Héracles, pensativo, preocupava-se em como fazer para trazes o javali vivo.

— Numa caixa de madeira não dá. Acorrentado, talvez...? Nem a corda mais grossa servirá para prender esse animal! Como poderei prendê-lo?

E Atena inspirou-lhe a mandar fazer uma fortíssima corrente de ferro. No dia seguinte, passava por uma aldeia onde foi procurar um ferreiro. Levou um bom tempo, mas o ferreiro conseguiu fazê-lo. Héracles testou elo por elo, tentando abri-los e, como resistiam bem, pagou o homem dando-lhe sua espada e continuou a viagem.

Antes de atingir o seu objetivo, no anoitecer do quarto dia, Héracles acampou perto de uma fonte onde havia um bosque, nas proximidades de um monte, entre o vale do Alfeus e o Erimantos, onde habitava numa caverna um centauro chamado Fólos, filho de Silenos e de uma melíade, ninfa dos juncais. Ainda de noite, Héracles, não conseguindo dormir, foi admirar o céu estrelado. Estava lá, absorto, quando ouviu um tropel. Olhando, admirou-se ao ver aproximar-se um centauro, ser metade homem, metade cavalo. Ele se apresentou e puxou conversa:

— Olá, forasteiro. Meu nome é Fólos, vivo neste lugar. Como te chamas?

— Chamo-me Héracles, e fui discípulo de Quíron quando menino.

— Héracles?! Pois é muito bom conhecer-te. Por que não vens até minha caverna para jantar comigo? É simples, mas aconchegante. Comeremos alguma coisa enquanto poderemos trocar algumas palavras... Mas vem antes que meus irmãos estraguem esta bela noite, pois são desordeiros e adoram confusão. Quando aparece alguém por estas bandas e consegue escapar do grande Javali do Erimantos, inevitavelmente acaba nas mãos dos Centauros, que muito lamento por fazer parte. Mas não se encontram em casa, nem meu bom irmão Quíron se encontra. Ele vive ainda aos pés do Pélion, e às vezes vem me visitar...

Héracles estava com uma tremenda vontade de comer uma boa comida e, por isso, aceitou. Apanhou suas coisas, puxou os dois cavalos e sua biga e acompanhou Fólos à sua morada. Chegando lá, o centauro ofereceu-lhe carne assada, enquanto ele se servia de carne crua.

Depois de muita prosa, Héracles observou um "pithos", uma bela talha de vinho, e comentou que a conversa iria melhor se fosse regada a vinho. Fólos, indeciso, comentou:

— Nós, os Centauros, fazemos o melhor vinho do mundo e não costumamos oferecê-lo nem aos deuses. E esta talha cheia de vinho que vês foi um presente de Dionisos, que recomendou-nos não abrir por quatro gerações. Entretanto, vou quebrar a promessa e abrir uma exceção visto que tu és o famoso Héracles. Mas devemos tomar cuidado, apesar de que meus irmãos não sentirão o cheiro do vinho, já que se encontram distantes daqui...

— Abre-o. Prometo defender-te contra teus irmãos! Tenho muita sede!

Fólos abriu o barril de vinho para festejar a visita do herói. Era um vinho excelente e de cheiro muito forte. Porém, Héra, tendo ouvido a conversa, mandou uma brisa que carregou o cheiro do vinho até aos Centauros que estavam na floresta.

— Hum...! Aposto que Fólos abriu aquele barril de vinho que recebeu de presente de Dionisos... Isso quer dizer que está de visita. E deve ser muito importante. Quem será?

E resolveram atacar a morada de Fólos para apossar-se do barril de vinho. Armaram-se de machados, paus e pedras, e partiram a galope. O aroma fez com que descessem num atropelo danado em direção à caverna.

De repente, ouvindo um tropel, Héracles saltou da banqueta, já em guarda e de mão no carcás. E, enquanto Fólos perguntava-lhe o que era, ele sacava as flechas. Fólos, olhando pela abertura da caverna, exclamou:

— Os Centauros vêm vindo! Vamos ter encrenca!



Fólos, com a mão na cabeça, percebeu do que se tratava.

— O vinho... o cheiro do vinho...! Os meus irmãos são a própria intemperança!

Héracles passou a mão na clava e esperou, abandonando as flechas. Os tremendos monstros chegaram e pararam de brusco diante da morada de Fólos. Um deles tomou a frente.

— Fólos! Sabemos do barril de vinho e queremos beber. O cheiro nos foi levado pelo nosso amigo Vento. Divide conosco, irmão...

— Amigos, tende paciência. Abri o barril para obsequiar meu camarada Héracles, que veio visitar-me.

— Héracles? Quem é Héracles? Ele que saia e nos enfrente, se não for um covarde!...

O nome de Héracles nada representou para os Centauros, de modo que ousaram desafiá-lo. E, como já tivessem bebido naquela noite e estivessem com as cabeças quentes, a arrogância os empolgou.