A Guerra de Tróia

— Homem desventurado, grandes foram as tuas desgraças! Como te atreveste a vir aqui sozinho e desprotegido, diante dos olhos dos homens que mataram tantos de teus nobres filhos? Não sei como conseguiste penetrar os portões da muralha sem que meus sentinelas te tivessem visto, mas uma coisa eu sei: teu coração é de ferro. Vem, senta-te em uma cadeira e deixemos a dor de lado, por mais pesarosos que estejamos. Nada se ganha acalentando a dor. Os deuses, ao tecer o Destino dos mortais, impuseram-lhes viver sofrendo, enquanto os próprios Imortais não sofrem. Duas jarras encontram-se no limiar da porta da mansão de Zeus: um cheio de desgraças, outro cheio de bens. Aquele a quem dá os odientos dons, este ele torna desprezível, e uma fome voraz e maligna o persegue para sempre, e ele vagueia por toda a parte, sem ser honrado pelos deuses e pelos mortais. Assim, os deuses ofereceram valiosos presentes a Peleus desde o nascimento, eis que ele ultrapassou todos os homens em riqueza e fartura, e reinou sobre os mirmidões, e os deuses lhe deram, embora mortal, uma deusa por esposa, e não somente uma amante. Também o mal, contudo, os deuses lhe mandaram, eis que não lhe nasceu no palácio uma prole de filhos valorosos, mas apenas gerou-os para em seguida morrer, ou somente um para pouco viver. Nem mesmo agora eu o protejo em sua velhice; muito longe da Pátria, estou em Tróia, perseguindo-te e a teus filhos. Também tu foste outrora abençoado, segundo ouvi dizer. Tudo que fica para cima de Lesbos, a sede de Macar, todo o interior da Frígia e do Helesponto, todos esses povos tu ultrapassavas em riqueza, depois do grande Midas, também em número de filhos. Desde que os que moram no Céu trouxeram esta calamidade, há batalhas e matanças de homens em torno de tua cidade. Resiste, não chores incessantemente, eis que nada conseguirás lamentando teu filho, nem o farás voltar à vida: antes disso, outras dores cairão sobre ti.

— Não, Aquiles, não me peças que me sente, enquanto Heitor jaz insepulto entre tuas tendas. Entrega-me Heitor, para que eu o possa ver com meus próprios olhos, e recebe o farto resgate que te trago. Alegra-te com o tesouro e regressa ao teu país são e salvo, já que deixaste viver e ver a luz do Sol.

Aquiles, franzindo a testa, disse-lhe:

— Não me irrites, velho. Eu mesmo pretendia ceder-te Heitor, já que minha mãe me informou da ordem de Zeus. Conheço-te, Príamos, e sei que algum dos deuses te conduziu entre os aqueus. Nenhum mortal, por mais jovem que fosse, se atreveria a vir aqui, ao nosso acampamento, pois não poderia passar pelos guardas e empurrar nossas portas. Portanto, não incites mais meu espírito, em meu sofrimento, do contrário não pouparei nem a ti mesmo, embora sejas suplicante, e eu transgrida as ordens de Zeus.

E o velho Príamos teve medo. O filho de Peleus saiu como um leão pela porta do alojamento: seus escudeiros, Automédon e Álcimos, o acompanharam. Aquiles viu do lado de fora o arauto com os animais e os carros. Automédon e Álcimos retiraram os cavalos e as mulas do jugo, trouxeram Idaeus para dentro e fizeram-no sentar-se em uma cadeira. Enquanto isso, Aquiles foi conferir o resgate. Em seguida apanhou do tesouro dois mantos e uma bela túnica, para que pudesse vestir o cadáver de Heitor e entregá-lo para ser mandado de volta. O príncipe, chamando seus homens num canto, sem que pudesse Príamos ouvir, mandou encarregar as servas, para que lavassem o corpo e o ungissem, para depois mostrá-lo a Príamos. E assim o fizeram.

Depois de terem lavado e ungido o corpo de Heitor, as servas o envolveram no belo manto e na túnica, e o próprio Aquiles carregou-o e colocou-o em um caixão, e seus companheiros o levaram para a carroça, diante dos olhos dos mirmidões curiosos. E disse, proferindo o nome do amigo:

— Não te ires comigo, Pátroclos, se nas sombras eternas de Hades chegar ao teu conhecimento a nova de que devolvi o corpo ao pai. Príamos trouxe-me um enorme resgate, do qual também tu participarás.

Tornando a entrar na tenda, sentou-se diante do monarca e falou-lhe:

— Teu filho te foi entregue, como pediste, e está em um féretro. Quando Éos apontar no horizonte, tu o verás e o tomarás. Agora, tratemos de nos alimentar. Mesmo a loura Níobe, de Tebas, deixou de alimentar-se, ela cujos doze filhos pereceram em seu palácio, seis filhas e seis varões. Apolo e Ártemis mataram-nos todos, furiosos com Níobe, porque ousava comparar-se à bela Leto, dizendo que a deusa só tivera dois filhos, ao passo que ela própria tinha doze. Assim eles, embora apenas dois, mataram a todos. Durante nove dias, ficaram estendidos no sangue, sem que ninguém os enterrasse, pois Zeus transformara seu povo em pedrinhas; depois, no décimo dia, os deuses os enterraram. Níobe, porém, teve que alimentar-se, quando se cansou de derramar lágrimas. Agora, em algum lugar entre as rochas, nas desertas montanhas do Sípilos, onde, dizem, ficam os leitos das divinas Ninfas que dançam ao lado do Áquelous, ali, embora tenha sido Níobe transformada em rocha, acalenta os sofrimentos mandados pelos deuses. Por isso, vem, pensemos no alimento. Depois, poderás lamentar de novo teu querido filho, levando-o para Ílion, e ele será muito chorado por ti.

Assim falou Aquiles e, levantando-se, saiu da tenda e matou um carneiro branco. Os amigos o esfolaram, e cortando-lhe a carne em pedaços, temperaram-na e colocaram-na em espetos. Logo, assaram a carne e, logo que se sentaram à mesa, tiraram-na dos espetos. Automédon trouxe o pão e colocou-o na mesa, em cestos, enquanto Aquiles servia a carne. Enfim, comeram e beberam à vontade, enquanto que, de quando em quando, um admirava o outro, Aquiles pelo seu porte avantajado e belo, e Príamos pela sua nobre aparência e sua eloquência. Logo que terminaram a refeição, Príamos dispôs-se a falar:

— Aquiles, mostra-me o meu leito. Permita-me descansar, pois, desde que fizeste perecer meu filho, não cerrei os olhos, não consegui dormir, e eu o tenho chorado constantemente e acalentado minha dor, rolando no pó do pátio entre os muros de minha tenda, que é meu palácio. E é hoje a primeira vez, desde aquele dia, que como carne e bom vinho.

Imediatamente, ordenou Aquiles aos companheiros e às criadas que preparassem um leito na varanda, sob o pórtico, e o ornassem com colchas de púrpura, tapetes e túnicas de lã. Saíram do salão carregando tochas e, sem demora, eles arrumaram dois leitos, um para Príamos e outro para Idaeus.

Aquiles, voltando-se afavelmente para o velho rei, disse:

— Deves ficar do lado de fora, pois algum dos aqueus pode vir aqui, um daqueles que se sentam ao meu lado, no conselho. Se algum deles se deparar contigo, sem demora irá informar a Agamémnon, e eu não poderei mais entregar-te o corpo de Heitor. Mas dize-me com toda a sinceridade: quantos dias queres para os funerais de Heitor, a fim de que haja uma trégua, e eu possa conter os aqueus aqui?

— Se estás mesmo disposto a permitir que eu realize os funerais de Heitor, suplico da tua bondade doze dias, o mesmo tempo que ficou insepulto. Sabes que estamos encurralados na cidade e que a madeira para o fogo tem de ser trazida de muito longe, das montanhas, e que os troianos estão temerosos. Precisaremos, portanto, de nove dias para os preparativos. No décimo, poderemos celebrar a cerimônia do funeral e o banquete. No décimo-primeiro dia levantaremos um túmulo sobre seu corpo. Logo no dia seguinte, combateremos, uma vez que não há outro remédio.

— Será como pedes. Interromperei a guerra durante o tempo que desejas.

E tocou o braço direito de Príamos, para lhe tirar do coração todo e qualquer temor. E, em particular, fez o pedido de desposar Políxena, e em troca promoveria a paz com Príamos, deixando de combater contra ele e seu povo, ou até, se preciso fosse, ofereceria seus préstimos e seus homens a Tróia, estando disposto a repelir os gregos do país. Assim, estaria Aquiles tentando inverter as previsões fatídicas sobre sua morte aos pés de Tróia. Príamos, surpreso por tal proposta e sentindo-se satisfeito por ter como genro um príncipe como ele, disse-lhe que o acordo deveria ser firmado no templo de Apolo-Timbriano.

Em seguida, com um sinal, permitiu que se afastasse para dormir. Príamos e Idaeus dirigiram-se para a varanda, com sensatos propósitos em seus corações, mas Aquiles dormiu no recanto mais interno do pavilhão; e do seu lado dormiu a bela Briseis.

Era o momento de descanso, tanto para os deuses quanto para os guerreiros, vencidos pelo divino Hipnos. Somente Hermes permanecia acordado, que ponderava em seu espírito como poderia conduzir o rei em segurança para sua cidade, sem ser visto pelos guardas dos aqueus. Ele, então, aproximando-se da cabeceira do ancião adormecido, disse-lhe em sonhos:

— Dormes assaz despreocupado, Príamos, no meio de teus inimigos, depois de haveres logrado o que desejavas, já que Aquiles te deixou dormir. Conseguiste o resgate de teu filho, dando muito em troca. Mas não deves esquecer de um detalhe: teus filhos, que deixaste para trás, terão de dar três vezes esse resgate aos gregos, se Agamémnon reconhecer-te e descobrir que aqui te encontras.

Príamos, assustado, despertou e foi acordar o arauto. Hermes atrelou os cavalos e as mulas, enquanto o rei e Idaeus aprontavam-se, sem o menor barulho, para não acordar Aquiles. Príamos e Idaeus saíram do alojamento e tomaram lugar nos carros; Hermes subiu ao lado do rei. Assim, atravessaram rapidamente o acampamento, e, graças à intervenção do deus, ninguém os viu, já que as mulas e os carros mais pareciam flutuar, até saírem pelas portas das muralhas.

O CADÁVER DE HEITOR EM TRÓIA
(FIM DA ILÍADA)

Quando, porém, chegaram ao leito do Escamandros, gerado por Zeus, Hermes partiu para o alto Olimpo, e a Aurora espalhou-se por toda a parte. Príamos e Idaeus dirigiram-se para Tróia, conduzindo o corpo de Heitor. Chegaram lá antes do amanhecer, e ninguém os viu entrar. Mas Cassandra foi a primeira a reconhecê-los, pois se encontrava sobre o Pérgamos, e avistou seu pai de pé no carro e o arauto, Idaeus, logo em seguida, conduzindo o corpo de algum morto. Olhando melhor, com sua visão profética, percebeu que era o corpo de Heitor. Então, começou a gritar, e todos a ouviram:

— É Heitor! Príamos está trazendo o corpo de Heitor! Não foram inúmeras as vezes em que o saudastes, vivo, triunfante? Pois, vinde agora saudá-lo, morto!

Não ficou ninguém na cidade. Todos se dirigiram para perto das portas de Tróia, eis que grande dor se apossou de todos. Hécuba e Andrômaca foram as primeiras a ousarem tocar no corpo, que se lançaram sobre a carroça, em desespero, segurando a cabeça de Heitor, e uma multidão curiosa reuniu-se em torno dele. E Príamos dirigiu-se ao povo:

— Abri caminho para passar as mulas. Quando o cadáver estiver em casa, podereis adorá-lo e chorar à vontade.

Assim falou, e a multidão separou-se, abrindo caminho para a passagem das mulas e da carroça. Quando levaram Heitor para sua gloriosa casa, estenderam-no no leito e dispuseram cantores em torno dele, por entre queixumes das mulheres, a fim de entoarem cantos fúnebres.

Andrômaca chorava muito, apertando nos braços a cabeça de Heitor:

— Meu marido, perdeste a vida muito cedo e deixaste-me viúva em teu palácio, e teu filho é ainda uma tenra criança, ele a quem geramos, nem creio que ele chegará a ser homem, pois brevemente esta cidade cairá. Eis que tu, seu alicerce, pereceste, tu o defensor de Tróia e apoio das mulheres e das crianças, que logo serão levadas aos navios dos odiosos aqueus, e eu entre elas. E tu, meu filho, ou me seguirás aonde eu for levada, ou uma mão assassina te agarrará pelo braço e te precipitará da torre para uma lamentável morte, irado porque Heitor teu pai matou seu irmão, seu pai ou seu filho, pois foram muitos aqueus que Heitor fez perecer. Verdadeiramente, nem tampouco teu pai se mostrava compassivo na luta.

E dirigiu-se novamente ao marido:

— Heitor, trouxeste inexprimível dor e sofrimento a teus pais, mas para mim, mais do que todos. Ao morrer, não me estendeste os braços de teu leito, nem disseste uma única palavra, que eu haveria de lembrar, para sempre, chorando todos os dias de minha vida.

Calou-se Andrômaca, e ouviu-se a voz de Hécuba:

— Heitor, o mais querido no coração de todos os meus filhos, em vida foste amado dos deuses, nem nesta cruenta morte te esqueceram! Eis que Aquiles costumava vender meus filhos que caiam em suas mãos, a quem os comprasse, em Samos ou Ímbros, ou até em Lemnos, mas, quando ele te tirou a vida, arrastou-te muitas vezes em torno do túmulo de Pátroclos, que tu mataste. Nem mesmo assim, conseguiu fazê-lo levantar-se de novo. Agora, perfeito e incólume se encontra entre nós, parecendo que foste somente abatido pela seta de Apolo, sem qualquer ferimento.

Hécuba esforçava-se por consolar-se, no meio de um mar de lágrimas. E Helena, a infeliz causa da guerra, também lamentou-se:

— Heitor, o mais querido de todos os irmãos de meu marido, Páris, que me trouxe para Tróia. Ah, eu devia ter morrido! Eis que fazem quase dez anos que aqui estou e deixei minha Pátria. Jamais, porém, até este dia, ouvi de ti uma única palavra áspera ou desdenhosa. Ainda que, em nossos palácios eu tenha ouvido palavras ásperas de qualquer um de teus irmãos e irmãs, ou de tua mãe, mas tu e teu pai os continham e apaziguavam, com o espírito gentil e as palavras gentis. Portanto, com o coração dolorido, choro tanto por ti como por mim. Morreste, e contigo morreu meu amigo e consolador. Os demais me detestam.

Assim falou Helena, chorando, acompanhada dos suspiros de todo o povo. De repente, Príamos gritou:

— Agora, trazei lenha para a fogueira, e não receeis qualquer emboscada dos argivos. Eis que Aquiles assegurou-me que não nos perturbarão antes de chegar a décima Aurora.

Assim, os troianos atrelaram bois e mulas às carretas e reuniram-se diante da cidade, sempre cautelosos, já que desconfiavam da palavra de qualquer dos gregos. Durante nove dias, iam, todos os dias, cortar lenha, nas proximidades do Ida, acumulando grande quantidade dentro dos muros de Tróia, mas, ao chegar o décimo dia, carregaram o bravo Heitor e puseram seu corpo no alto da pira e a acenderam.

Quando a Aurora apareceu, o povo reuniu-se em torno da pira de Heitor. E, depois de terem-se reunido, os troianos apagaram a fogueira com vinho, onde as últimas chamas crepitavam. Depois, os irmãos e amigos do morto, já cremado, recolheram os ossos queimados, enquanto as lágrimas lhes escorriam pela face, e os guardaram em uma caixa de ouro e cobriram-na com um macio pano de púrpura. Então, colocaram a caixa dentro de uma profunda cova e empilharam muitas pedras por cima. Rapidamente levantaram o túmulo, e vigias se colocaram de cada lado, para que aqueus aventureiros não os atacassem nem profanassem o túmulo, pelo menos antes de terminarem. Depois de feito isso, afastaram-se e, mais tarde, reuniram-se e realizaram um banquete na casa de Príamos, em honra de Heitor.

PENTESILÉIA

Terminado o funeral de Heitor, tornaram os troianos a refugiar-se dentro dos muros da cidade, temendo a força do filho de Peleus, e evitando a sua proximidade, pois sentiam-se pouco seguros pela morte do mais nobre dos cidadãos e mais poderoso dos seus defensores. Agora, restava-lhes a confiança em seus chefes restantes, como Enéias e os demais filhos de Príamos, como Páris, Hélenos e Deífobos, os mais valentes depois de Heitor. Confiavam ainda nos deuses que os protegiam e nas colossais muralhas que os cercavam e que pareciam jamais caírem.

Naquela situação desesperada, ofereceu-se aos sitiados uma ajuda com o qual jamais teriam contado. Vindo do rio Termódon, no longínquo Póntos, chegou em auxílio dos troianos Pentesiléia (ou Penthesiléa), poderosa descendente de Áres, à testa de um grupo de temíveis Amazonas. Impelira-a, em parte, o seu gosto viril pelos perigos da guerra, próprio daquele povo de mulheres, e em parte, um crime involuntário que lhe torturava a consciência, e pelo qual era mal vista em sua Pátria. Numa caçada, depois de Héracles ter-se rebelado contra as Amazonas e de ter deixado o país, Pentesiléia, ao apontar o dardo contra um cervo, matara sua rainha, Melânipe, a sucessora de Hipólita. A partir daquele instante, perseguiram-na sem cessar as Queres, deusas da expiação, e até então nenhuma oferta conseguira perdoar-lhe a culpa. Esperando que, com a participação numa guerra simpática a um dos deuses, se livrasse daquela tortura, partiu para a famosa cidade de Tróia, acompanhada de doze guerreiras fiéis que, com ela, suspiravam pela guerra e pelas batalhas. Não obstante, diante da nova rainha, Pentesiléia, as magníficas guerreiras mais pareciam escravas, pois a donzela possuía a majestosidade da deusa Éos e sobressaía-lhe a formosura, mas que sua coragem, já que os deuses lhe preservavam a juventude.

Segundo a tradição das Amazonas, montando cavalos da maneira dos povos bárbaros do norte e do oriente, as mesmas guerreavam durante um tempo determinado, conservando a virgindade.
Quando findava o tempo de serviço militar, casavam-se para ter filhos; além disso, preenchiam todas as magistraturas e funções públicas. Os homens passavam a vida em casa, numa aldeia vizinha, com as funções que habitualmente caberiam às mulheres, só se incumbindo de trabalhos domésticos. Quando nascia uma criança, as Amazonas confiavam-na aos cuidados dos homens. Caso fosse do sexo feminino, permanecia entre elas.

As Amazonas, povo exclusivamente de mulheres, descendiam do deus Áres e da ninfa Hermíone. Suas antigas residências foram no Cáucasos, na Trácia e na Cítia meridional. No tempo de Hipólita, Antíope, Melânipe e Pentesiléia, teriam-se fixado definitivamente no Póntos (região da Capadócia), às margens do Termódon, não mais mudando-se dali. Constituindo um amplo estado, tiveram Temiscira por capital. Os homens aos quais se uniam, uma vez por ano, eram os gargareanos, seus vizinhos. A elas, atribuíram-se a fundação de cidades como Esmirna (embelezada e fortificada por Cíniras), Éfesos e Mírine (estas fundada pela célebre rainha Bátea, ou Mírine), e Cumas, todas na Ásia Menor. E, em honra de Ártemis, por elas venerada, haviam construído o grande templo de Éfesos.

O povo troiano, alertado pelas sentinelas das torres, correram para ver aproximar-se a rainha e as suas guerreiras, vindas do leste, e puderam apreciar a delicada mas vigorosa Pentesiléia, vestida de couraça, elmo e joelheiras de bronze, parecendo uma deusa guerreira, talvez Atena ou Ênio, à testa de suas treze Amazonas mais fiéis, entre as quais Clete, a ama da rainha, já em idade avançada. Os troianos não se cansavam de admirar sua beleza, em cujas feições se irmanavam maravilhosamente o terrível e o amável. Um gracioso sorriso se lhe desenhava nos lábios, e os olhos, cheios de vida, fulgiam como raios do Sol. Cobria-lhe as faces o rubor da modéstia, e por todo o rosto se refletia viril graça ligada a uma generosidade guerreira. A tristeza do povo troiano transformou-se, num momento, em grande alegria diante de tão soberbo espetáculo. Vendo Pentesiléia, a filha mais nova de Áres e Otrera, cavalgando, experimentou Príamos impressão parecida a daquele que é meio cego e recebe um benéfico raio de luz. A sua alegria, contudo, ficou atenuada pela recordação da perda de tão grande número de excelentes filhos, não menos formosos.

Os guardas abriram as portas das muralhas, e as guerreiras entraram e foram aclamadas pelo povo. Pentesiléia vinha à frente, seguida de sua ama, Clete, e mais doze guerreiras: Clônia, Polemusa, Derínoe, Evandra, Antandra, Bremusa, Hipótoe, Harmótoe, Alcíbia, Derimáquia, Antíbrote e Termódose. Príamos mandou que seus servos tratassem os cavalos fatigados pela viagem, alimento e hospedagem para as guerreiras e, quanto a Pentesiléia, conduziu-a ao palácio, honrou-a como uma filha sua, da maneira mais esplêndida. Fez isso mesmo recordando que um dia teve que enfrentá-las ao pé do rio Sangários, numa batalha em que grandes exércitos se empenharam de ambos os lados. Então, sabedor do crime que Pentesiléia cometera em sua terra, realizou em seu benefício a sua purificação.

Foram-lhe, por ordem sua, oferecidos presentes valiosos, e ainda lhe prometeu outros, para depois, se pudesse livrar Tróia do iminente perigo. Príamos não poderia depender da decisão de Aquiles para tomar alguma atitude — Aquiles poderia não honrar sua palavra. A amazona, levantando-se do assento de honra, proferiu temerariamente um juramento que ainda nenhum mortal havia proferido: prometeu ao rei a morte de Aquiles. Iria aniquilá-lo e arrasaria os exércitos argivos, destruindo seus navios. E eram bem capazes, apesar de estarem em número reduzido, eis que as Amazonas tinham a fama de serem terríveis, as mais temidas na arte da guerra, mais do que qualquer exército de homens. Até mesmo Héracles e seus guerreiros foram prudentes e tentaram evitar fazer guerra contra elas.

Ouvindo aquele juramento, Andrômaca pensou:

— Pobrezinha. Ela não sabe o que acaba de prometer, e desconhece o empreendimento a que se lança o orgulho. Como pode ter a força necessária para combatê-lo? Perdeu o juízo e não vê a Morte que se aproxima... Todos os maridos tinham meu Heitor na conta de um deus, e, no entanto, a lança de Aquiles lhe varou o pescoço. Ah, por que não me engole a Terra?

Andrômaca desconhecia o valor de Pentesiléia, pois os assuntos da guerra os homens conheciam melhor. Entretanto, o dia chegara ao seu termo, e quando as guerreiras descansaram da jornada, comeram e beberam, as servas troianas do palácio lhes prepararam os leitos. Pentesiléia entregou-se aos braços hipnóticos de Morfeus. Por ordem de Atena, apresentou-se-lhe uma visão fatal: apareceu-lhe o pai que a impeliu a lutar contra Aquiles. Vendo a donzela aquele rosto, sentiu-se violentamente comovida, com a esperança de poder realizar tal feito naquele mesmo dia. O rosto de seu divino pai deu-lhe um bom augúrio, pois, na tradição das Amazonas, os homens viviam separados das mulheres, que formavam um povo feminino particular. Despertando, saltou do leito e vestiu a reluzente armadura, presente do próprio deus Áres. Cobriu as pernas com caneleiras de ouro, e pôs ao ombro o talabarte que sustentava a fortíssima espada na sua bainha de marfim. Em seguida, após empunhar o escudo, colocou o elmo encimado por um penacho dourado. Com a mão esquerda, pegou dois dardos, e com a direita, o machado de duplo gume que lhe fora dado de presente pela deusa Héra, a protetora das Amazonas. Assim armada, abandonou o palácio com o ímpeto de um raio atirado pela mão de Zeus.

Ao sair para o pátio, entre o palácio e as muralhas, onde a aguardavam suas companheiras, incitou aos gritos os troianos a lançar-se à luta, e acudiram ao seu chamado os mais valentes guerreiros, que ainda não tinham ousado enfrentar o pelida. Pentesiléia montou em seu cavalo, presente de Orítia, a esposa do vento Bóreas, que voava como as Hárpias. A galope, conduziu-os e às Amazonas para fora de Tróia, em direção do Helesponto. Príamos, que permanecera no palácio, ergueu uma prece a Zeus:

— Ouve-me, ó Pai, e faze que as tropas aquéias mergulhem hoje no pó diante da filha de Áres, e que ela retorne ao meu palácio. Faze-o em honra de teu poderoso filho Áres, e também por ela, descendente de um deus e tão parecida aos Imortais. Também, faze-o por mim, que tanto sofri e tantos filhos perdi. Faze-o enquanto ainda resta alguma coisa do nobre sangue de Dárdanos, teu filho, e permanece ainda de pé a velha cidade de Tróia.

Mal terminou a prece, vinda da sua esquerda, cruzou os ares uma águia, descrevendo círculos e levando nas garras uma pomba. Príamos, decepcionado pelo mau augúrio, um sinal desfavorável, cubriu o rosto com as mãos, morrendo para ele a Esperança.

Os gregos, do seu acampamento, contemplavam, atônitos, o avanço dos troianos, a cujo desânimo estavam acostumados havia vários dias. No entanto, caíam como feras sobre o rebanho de ovelhas. Um dos guardas disse a outro:

— Quem terá unido de novo os troianos que, desde a morte de Heitor, pareciam privados da vontade de combater? Evidentemente deve ser um deus quem os apóia.

— Que seja. A nós também não faltam deuses, e se até agora vencemos os troianos, hoje também os venceremos.

E empunharam as armas. Os chefes dos aqueus, no alto das torres, esperando aproximar-se mais os inimigos, puderam reconhecer neles as terríveis Amazonas, outrora inimigas de Tróia, e, mais do que nunca, apressaram-se a se organizar.

Dali a pouco, feriu-se a batalha, e o solo de Tróade tornava a tingir-se de sangue mais uma vez. Pentesiléia fez estragos entre os gregos, e suas Amazonas não faziam menos. Pentesiléia abateu Mólion e outros sete heróis. Mas quando Clônia derrubou Mênipos, amigo de Podarces, este, fora de si, atravessou a donzela com a sua lança. Pentesiléia acudiu tarde demais, embora conseguisse cortar a mão do guerreiro, que foi salvo pelos seus, retirando-o dali. A sorte sorriu aos gregos, desde então. Idomeneus feriu com a lança a amazona Bremusa na região do seio direito. Meríones atirou aochão Evandra e Termódose. Derínoe sucumbiu pela mão de Ájax, filho de Oíleo. Diómedes imolou Alcíbia e Derimáquia, cortando-lhes a cabeça de um só golpe. A luta assumia mau aspecto para os troianos. Esteneleus matou o aliado Cábiros, de Sestos, e foi em vão que Páris atirou a sua seta contra o assassino, pois o projétil, passando por cima dele, foi atingir Évenor, de Dulíquion, que tombou morto. Irritou-se com aquilo o chefe dos dulíquios, Méges, filho do rei Fileus; veloz como o leão, atirou-se contra o inimigo, com tal fúria, que os troianos recuaram. Ele abateu Itimoneus e Agelaus, de Miletos, dois dos melhores aliados de Tróia, além dos troianos que conseguiu atingir.

Pentesiléia continuava no seu extermínio entre os gregos, e eles recuaram diante do seu impulso. Pentesiléia, embriagada de coragem, gritava-lhes:

— Cães! Hoje mesmo pagareis a afronta feita a Príamos. Sereis devorados pelas feras e pelas aves de rapina, e que nenhum de vós tornará a ver esposa nem filho; sobre os vossos ossos não se erguerá túmulo algum. Onde estão Diómedes, Ájax, Aquiles, onde estão os melhores de vosso exército? Por que não medem forças comigo? Temem cair sob meus golpes?

Assim gritava Pentesiléia, avançando contra os argivos. Seguiam-na os filhos de Príamos e os primeiros troianos. Os gregos viam-se impotentes para resistir a tamanha acometida. Já os troianos acreditavam que Pentesiléia era uma deusa que, abandonando a morada dos deuses, assumira aspecto humano para ajudá-los a derrotar os inimigos. No seu insensato gozo, já viam a total destruição dos gregos.

Mas não estavam lutando ainda nem o poderoso Ájax, nem tampouco Aquiles. Ambos estavam ao pé do túmulo de Pátroclos, pensando no amigo morto. O Destino permitira que Pentesiléia desfrutasse de algumas horas de triunfo, para morrer coroada de glória. Das muralhas de Tróia, as mulheres contemplavam, admiradas e contentes, os feitos da amazona. Uma delas, Hipodâmia, esposa do valoroso Tisífonos, sentiu-se dominada pelo furor combativo:

— Amigas! Por que não havemos de lutar também, como lutam os homens, pela Pátria, por nós e por nossos filhos? Temos quase a mesma força que os nossos homens. Os nossos olhos não são inferiores aos deles, os nossos joelhos têm a mesma firmeza. A luz, o ar e os alimentos nos pertencem como a eles. Por que não haveremos de nos defender também na luta?

— Hipodâmia, o que estás dizendo? Ficaste louca?

— Ora, não estás vendo uma mulher que supera todos os homens? No entanto, nem é da nossa raça. Pentesiléia luta por um rei estrangeiro, por uma cidade que não é sua, e o faz sem se importar com os homens. Valorosa, o seu alvo é a destruição do inimigo. Nós, pelo contrário, lutaríamos pela nossa felicidade e vingaríamos as nossas grandes desgraças. Qual de nós não perdeu nesta guerra um filho, um marido, um pai, qual de nós não chora irmão ou outros parentes? Se os nossos homens morrem, que nos espera senão a escravidão? Não hesitemos! Atiremo-nos contra o inimigo. Será melhor morrer do que ver-nos arrastadas como presa de guerra com nossos filhos, e como prostitutas, quando nossos maridos caírem e esta cidade for devorada pelo fogo!

As palavras de Hipodâmia inflamaram as mulheres troianas. Deixando a lã e a roca de um lado, espalharam-se em busca de armas. Téano, irmã da rainha Hécuba, que se encontrava paralisada por tal atitude e presenciava tudo, opôs-se, tratando de dissuadi-las:

— Que idéia é a vossa, doidas? Hipodâmia, que fizeste?

Téano cortou o caminho das mulheres que se dirigiam armadas de facas, punhais, espadas e paus aos portões da cidade.

— Pretendeis mesmo lutar contra os dânaos, homens habituados à guerra? Como podeis esperar medir-vos com eles? Com paus, facas e pedras? Já participastes, por acaso, de outros combates como as Amazonas, que nasceram com a guerra no sangue, ou aprendestes a guiar cavalos e outros inúmeros exercícios próprios dos homens? Além de tudo isso, aquela maravilhosa mulher é filha do deus da guerra, ao passo que todas vós sois filhas de simples mortais.

— Téano...

— Deveis continuar sendo mulheres, e permanecer distantes do fragor da luta, ocupando-vos exclusivamente de vossas casas, do fuso e da roca, dos afazeres domésticos e das lidas do Amor. Deixai a guerra para os homens. Os homens continuam de pé e tentam proteger a cidade. Não chegamos ainda ao ponto de ser necessário que as mulheres defendam os muros de Tróia. Quando esse dia chegar — se chegar, até nossos filhinhos lutarão.

As mulheres baixaram a cabeça e deram ouvidos às prudentes palavras da anciã, e voltando lentamente para as muralhas, continuaram a assistir à luta de longe. Entretanto, Pentesiléia prosseguia na sua fúria mortífera, e as hostes argivas tremiam diante dela. Os heróis começaram a fugir para todas as direções. Cavalos e carros corriam sem rumo, sem seus condutores; por toda parte se ouviam os gritos dos moribundos, pois não havia quem não sucumbisse aos golpes da terrível amazona.

Os troianos avançavam impetuosamente. Já muito próximos dos navios gregos, aprestavam-se a lhes atear fogo, quando Ájax, filho de Télamon, dando-se conta do fragor da batalha, avisado por um dos seus, e levantando a cabeça diante do túmulo de Pátroclos, disse a Aquiles:

— Meu amigo, eleva-se o fragor da batalha, e bem perto daqui. Vamos ver, quem sabe se os troianos não planejam incendiar nossos navios!

Aquelas palavras despertaram a atenção de Aquiles, a cujos ouvidos também ressoavam os gritos de dor. Os dois vestiram rapidamente as armaduras, empunharam as armas e, ardorosamente, atiraram-se em direção ao lugar da luta.

Reviveu a alegria no meio das linhas dos gregos, quando estes viram os dois valentes guerreiros. Ájax e Aquiles atiraram-se imediatamente à luta, com seus homens, e começaram a fazer estragos no exército dos troianos. Ájax lançou-se contra os homens, e os seus primeiros golpes abateram quatro inimigos. Aquiles investiu contra as Amazonas, cinco das quais tombaram. Eram Polemusa, Antandra, Hipótoe, Antíbrote e Harmótoe. Depois, ambos se atiraram contra o grosso das tropas inimigas e com algum esforço lograram rarear as fileiras tão densas momentos antes.

Pentesiléia, percebendo a situação, investiu incessantemente contra os dois inimigos, como uma pantera. A amazona, sobre seu cavalo, arrojou o seu primeiro dardo contra Aquiles, e o dardo atingiu em cheio o escudo, ricocheteando como se tivesse dado de encontro a um rochedo. Com o segundo, Pentesiléia alvejou Ájax. A guerreira, vendo que falhara, gritou:

— Se o meu primeiro arremesso falhou, o segundo vos tirará a força e a vida, charlatões que vos gabais de ser os mais fortes dos dânaos, mas que neste momento ireis saber que uma mulher é mais forte que vós dois juntos.

Os seus risos provocaram o riso dos heróis. A arma de Pentesiléia atingiu a caneleira de prata de Ájax e, não obstante o desejo da amazona de ver jorrar sangue, nem sequer logrou arranhar-lhe a pele; ricocheteou ao bater contra a proteção metálica da perna. Sem preocupar-se com a belicosa criatura, Ájax atirou-se contra as fileiras dos troianos, deixando a inimiga a Aquiles. Não tinha dúvidas de que Aquiles saberia terminar com ela como um milhafre a uma pomba indefesa.

Pentesiléia, vendo que falhara de novo, deu um suspiro e compreendeu que encontrara a sua hora decisiva: ou matar Aquiles, ou morrer. E o pelida, medindo-a com um olhar, disse-lhe:

— Dize-me, rainha, como ousaste enfrentar-nos, como ousaste combater-nos? Não sabes que somos os mais fortes heróis de toda a Terra, não sabes que saímos do sangue do próprio Zeus? Não sabes que diante de nós tremeu e tombou para sempre Heitor? A Loucura deve ter falado pelos teus lábios quando nos ameaçaste de morte.

— Enganas-te, Aquiles. Já enfrentamos heróis mais célebres que vós, quando Antíope e Hipólita eram rainhas. Héracles, Teseus, Télamon, também Peleus teu pai, sentiram o nosso poder.

— E foram derrotadas. Acaba de soar a tua derradeira hora!

Então, Aquiles atirou-lhe a lança invencível, obra do centauro Quíron, seu protetor e mestre. A lança atingiu a rainha por cima do seio direito. Não tardou em jorrar sangue do ferimento, e Pentesiléia viu-se abandonada pelas forças. Da mão lhe caiu o machado, e os olhos se encheram de lágrimas e nuvens escuras. Apesar de tudo, reviveu um instante, e cravou os olhos no rosto do inimigo, que se aproximava para derrubá-la do cavalo. Pentesiléia conseguiu refletir se devia desembainhar a espada e defender-se, ou se convinha apear e suplicar a Aquiles que lhe poupasse a vida, em troca de ouro e bronze. Aquiles, porém, não lhe deu tempo para decidir, pois, inflamado pelo orgulho, com uma lançada atravessou o cavalo e a amazona. Pentesiléia deslizou da montaria e tombou ao chão. Palpitava ainda, apoiada ao cavalo que, mortalmente ferido, também caíra sobre os joelhos.

Percebendo os troianos que a heroína sucumbia, precipitaram-se para as portas da cidade, em fuga e atônitos, queixando-se da perda. O filho de Peleus, voltando-se para a moça, disse-lhe, alegremente:

— Fica aí, infeliz, e serve de pasto a cães e abutres! Quem te mandou contra mim? Esperavas obter do rei Príamos presentes pelos inúmeros gregos que sacrificaste, mas foi outro prêmio que te coube.

Assim falando, arrancou a lança do corpo da amazona e do cavalo, arrancando um grito de dor de ambos. Em seguida, tirou o elmo da cabeça de Pentesiléia, e contemplou o rosto da jovem que, neste momento, escapava-lhe a vida. Apesar do sangue e do pó que cobriam seu rosto, conservavam aquelas nobres feições maravilhosa formosura, e os gregos que rodearam o cadáver ficaram admirados ao ver a virgem que, comparável a Ártemis adormecida, jazia estendida. Aquiles, bem mais jovem que a rainha, se sentiu dominado pela Dor, que aumentava à medida que a contemplava, e viu-se obrigado a reconhecer que, em vez de morrer às suas mãos, a rainha teria merecido rumar para Ftia como sua esposa.

Foi quando Aquiles ouviu um grito que vinha em sua direção: era Cálcon, um guerreiro de Cipárissos, escudeiro do herói Antílocos, que, apaixonado pela amazona e enlouquecido pelo deus Áres, resolvera atacar Aquiles, o homicida. Cálcon, assim como o Amor, tornara-se cego perante aquele ato de covardia, por isso esqueceu quem era Aquiles e de que lado se encontrava, se dos gregos ou dos troianos. Mas o pelida, descontente por tal ação indigna, matou-o sem piedade; e a sua morte não foi sentida por grego algum. Clete, a ama de Pentesiléia, que havia seguido a rainha para lutar, apavorada, largou as armas e pôs-se em fuga, para fora do campo de batalha. Deixando Tróia, ao invés de retornar ao Termódon, tomaria então um barco e seria atirada pela tempestade nas costas da Itália meridional, onde fundaria uma cidade, Clete, e onde pereceria em combate contra a cidade de Crotona. Seu filho Cáulon haveria de fundar Caulônia.

A morte de Pentesiléia causou enorme dor também ao deus Áres, seu pai, o qual, tendo falhado com Cálcon, como raio seguido do trovão, se precipitou do Olimpo à terra, armado, e rumou para o monte Ida. À sua passagem, tremiam montanhas e vales, e a sua presença houvera acarretado a desgraça dos gregos, não fôra Zeus, que o impediu, descarregando-lhe sobre a cabeça uma chuva de raios. No meio do estrondo do trovão, Áres reconheceu a voz do pai, e não ousou continuar, detendo-se contra a sua vontade. Não sabia se devia regressar ao Olimpo ou, desafiando a vontade de Zeus, continuar a tingir as mãos com o sangue de Aquiles, quando se lembrou dos muitos filhos de Zeus que, por decisão deste, deveriam morrer e a quem nem ele próprio conseguiria salvar do Destino. Conhecia muito bem o poderoso pai e sabia que quem se lhe opusesse seria vítima do impetuoso raio e atirado junto aos Titãs, no Tártaros.

Entretanto, os gregos amontoaram-se em volta do cadáver de Pentesiléia, desejosos de lhe arrancarem as armas. Aquiles, no entanto, continuava ao seu lado, com outro propósito. Ele que, poucos momentos antes, desejava entregar aquele corpo aos cães e aos abutres, contemplava incansavelmente a donzela com tristeza e sentia o coração corroído por uma pesar idêntico ao que sentira pela morte de Pátroclos.

Tersites, saindo do grupo dos gregos, dirigiu-lhe estas ásperas palavras:

— Não enlouqueceste, apiedando-te dessa moça que tantos males nos acarretou? Na verdade, revelas-te mulherengo caprichoso, se desse modo te impressiona a beleza dessa morta. Prouvera aos deuses que a sua lança te houvesse abatido, mirmidão insaciável, que julgas serem destinadas a ti todas as mulheres!

Tremenda cólera se apoderou de Aquiles, ao ouvir tamanhas afrontas da boca do insolente companheiro de armas, e com tal fúria lhe aplicou um murro que lhe arrancou vários dentes, fazendo com que jorrasse muito sangue de sua boca, derrubando-o ao chão, para exalar o derradeiro suspiro. Ninguém lhe lamentou o fim, pois o que lhe faltava de valor na guerra, sobrava-lhe muito em caluniar os outros. Aquiles, mal humorado, exclamou:

— Repousa agora no pó e esquece para sempre as tuas infâmias! É demais para ti comparar-te com os melhores. Uma vez insultaste Ulisses, como fizeste hoje comigo, mas Ulisses foi magnânimo e não te infligiu o merecido castigo. Agora aprendeste que o filho de Peleus não permite que o ofendam impunemente. Vai, gora, insultar as sombras!

Apenas Diómedes, filho de Tideus, irritou-se ao saber da morte de Tersites. Apesar de reconhecer seus defeitos, era seu parente, uma vez que seu avô Oineus e o pai de Tersites, Ágrios, eram irmãos. Por isso, encolerizou-se o tidida e avançou contra Aquiles, mas os dânaos acalmaram-lhe o ânimo, pois o pelida estava disposto a dar satisfações com a espada pelo sangue derramado.

Os Átridas, apiedados da heroína, permitiram que o seu corpo fosse cedido a Príamos, o qual mandara uma solene embaixada pedi-lo, a fim de lhe dar honrada sepultura no túmulo real de Laómedon. Príamos ergueu-lhe diante da cidade uma gigantesca pira onde, com inúmeros presentes, foi colocado o corpo da infeliz. Ateado fogo à pira, levantaram-se as chamas à grande altura, e quando o corpo ficou consumido, os troianos apagaram o fogo, segundo a tradição, com vinho e, depois de recolherem os ossos de Pentesiléia, depuseram-nos numa arca. No meio de gritos de dor e em solene procissão, levaram-nos ao túmulo de Laómedon, situado no alto da torre da cidade. Ao seu lado, também, sepultaram as doze companheiras caídas na luta, e às quais Agamémnon concedera a mesma honra. Por sua vez, enterraram os gregos os seus mortos, mas com uma atenção especial a Podarces, que seguia para a casa de Hades dez anos depois de seu irmão, Protesilaus. Foi-lhe erguido um túmulo separado dos outros, e visível a grande distância. Por fim, enterraram o antipático Tersites, e o fizeram rapidamente, sem cerimônias. Depois, voltaram para os barcos, gratos ao poderoso Aquiles, que mais uma vez foi a salvação para os gregos.

Com o cair da noite, os mais ilustres heróis se reuniram num banquete no grande pavilhão de Agamémnon. Os outros aqueus, espalhados pelo acampamento, comeram e alegraram-se até a chegada dos primeiros albores do dia.

Ao chegar a notícia da morte de Pentesiléia aos ouvidos das Amazonas de Temiscira, todas entraram em desespero, por terem perdido a última de suas rainhas mais famosas, pois já haviam perdido Hipólita, Antíope e Melânipe. E assumiu as rédeas de Temiscira a nova rainha, Antianira.

Tardiamente ouviu-se um boato de que Aquiles e Pentesiléia haviam-se relacionado secretamente muito antes que houvessem combatido um contra o outro. Provavelmente no tempo de suas conquistas pela Míssia. Pentesiléia teria lhe dado um filho, Caístros. Talvez isso deveria explicar o seu excesso de piedade para com a jovem guerreira, o seu sentimento mais profundo, quase um arrependimento. A Caístros relacionou-se o nome de um rio próximo de Tróia.

MÉMNON

O Sol encontrou Tróia imersa em profunda angústia. Dos seus muros perscrutavam os troianos a planície, temendo que os vencedores escalassem os parapeitos e ateassem fogo à cidade. Timoetes, um ancião, levantou-se no conselho:

— Amigos, é inutilmente que procuro um meio para afastar de nós o aniquilamento que nos ameaça. Desde o momento em que o valoroso Heitor sucumbiu diante do invencível Aquiles, creio que até um deus que resolvesse ajudar-nos sucumbiria. Aquiles abateu também a amazona perante a qual tremiam todos os gregos, e tão formidável, que todos nós supusemos ver nela uma deusa. Nos enganamos. Assim, pergunto: não faríamos melhor abandonar esta infeliz cidade, condenada a desaparecer, e procurar noutra parte lugar mais seguro?

— Quem sabe na Capadócia, ou no Cáucaso...

Príamos levantou-se e disse:

— Meu amigo, e vós todos, troianos e aliados! Não devemos abandonar Tróia, não nos exponhamos a um perigo maior que o de abrir caminho através do inimigo que nos sitia. Será melhor que esperemos a chegada de Mémnon, meu sobrinho, que é rei da Etiópia, e vem das terras habitadas por gente de pele escura. Vem em nosso auxílio, à frente de incontável exército. Já se passou bastante tempo desde que os meus emissários partiram para aquela região distante. Aguardemos mais um pouco, pois chegou-me a notícia de que estão chegando no país. E mesmo que pereçamos todos, lutando, será melhor que procurar sustento entre estrangeiros, e sob o peso da vergonha.