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A Saga de Ulisses

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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 15:24

Telêmacos não podia acreditar, e ameaçou-o com sua espada. Mas Ulisses, cauteloso, segurou sua ansiedade de abraçá-lo.

— És um mentiroso! Não podes ser meu pai. Um gênio perverso tu és, e pretendes enganar-me. Um mortal não teria poderes para operar uma tal mudança. Ainda há pouco eras um ancião coberto de trapos, agora tens o másculo esplendor de um habitante do Empíreo.

— Compreendo perfeitamente a tua incredulidade. Mas, na verdade, sou teu pai, que torna ao lar depois de vinte anos. Quanto à minha transfiguração, é obra de Atena. E não foi a primeira, acredita. Muito me tem ela socorrido, valendo-se de muitos artifícios.

E Ulisses se sentou. Telêmacos, reconhecendo sua nobreza e humildade, próprias de sua família, baixou a espada, mas manteve-se à distância.

— Que provas tens para afirmares ser meu pai?

— Provas? Tu tens os meus olhos, aqueles mesmos que vi ao nasceres. E foram estas mãos, as mesmas que ansio abraçar-te, que te tiraram do útero de tua mãe, aqui, neste mesmo lugar, há um pouco mais de vinte anos... Quantas pessoas te viram nascer?

Telêmacos deixou cair duas lágrimas e disse:

— Meu pai e...

— Euricléia.

Telêmacos largou a espada e abraçou-o, sufocado pelo pranto, e Ulisses não pôde mais conter as lágrimas. Muito tempo assim ficaram, até que, aliviados, Telêmacos perguntou àquele que mal conhecia:

— Como voltaste, meu pai?

— Os feácios, inigualáveis na arte de navegar, me trouxeram num veloz navio e me depuseram adormecido numa praia desta ilha, que nem mesmo eu a reconheci. Recebi uma infinidade de valiosos presentes. Estão todos escondidos numa gruta próxima da praia. Agora aqui estou. Mas o que temos a fazer mesmo é combinar a forma de eliminar os vis pretendentes de tua mãe. Quantos são? Devo pesar criteriosamente as duas hipóteses que se apresentam. Se nós dois juntos poderemos dar conta deles, ou se precisaremos de quem nos ajude.
Hermes Trismegistus
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 15:25

— Bem digna da tua prudência é a tua dúvida, meu pai. Não ignoro o fenomenal guerreiro que és, como sempre disse mamãe. Mas sozinhos não conseguiremos exterminá-los. Eles não são um dezena nem duas. Só de Dulíquio vieram cinqüenta e dois homens dos mais corajosos, com seis criados; de Sámos vieram vinte e quatro, vinte de Zácintos e doze da própria Ítaca. Somam mais de uma centena, sem contar com o aedo, o arauto Médon, bom número de escravos e dois cozinheiros. Precisaremos de quem nos auxilie.

— Teremos Palas-Atena por nós, e basta.

E sorriu.

— É o quanto basta, pai. Zeus também está conosco.

E Ulisses, pacientemente, disse ainda:

— Se te entusiasmas, já esbocei o meu plano. Tu irás amanhã para o palácio e te misturarás com os pretendentes. Eu irei mais tarde, com Eumeios, disfarçado de mendigo. Se me maltratarem, seja por qual for o motivo, mesmo que me arrastem pelos pés, não te preocupes. Procurarás acalmá-los com palavras, mas eles não te darão ouvidos. Está prestes o dia fatal de serem castigados. Mas, quando eu fizer um sinal com a cabeça, retira todas as armas que estão penduradas no salão e recolhe-as à minha câmara. Se perguntarem por que assim procedes, responde que elas estão muito sujas de fumaça e precisam de limpeza, pois nelas ninguém mexeu desde que Ulisses partiu para Tróia. Poderás ainda ajuntar que não convém haver armas ali num salão de banquetes, evitando a tentação de serem usadas numa rixa, se o vinho subir à cabeça dos convivas. Deixa, porém, discretamente de lado, duas espadas, duas lanças e dois escudos, que iremos precisar. Recomendo expressamente que não digas que voltei. Nem mesmo a meu pai, a Eumeios ou a Penélope, tua mãe. Poremos à prova os nossos servidores para verificar quais os que de mim se esqueceram e a ti desprezam.
Hermes Trismegistus
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 15:25

— Meu querido pai, podes estar certo de que não serei negligente. Mas não creio que a prova dê grandes resultados. Custar-te-á muito tempo andar de um lado a outro examinando cada um deles. O que posso fazer é prover as mulheres de casa; quanto aos homens, creio que será melhor deixar o caso para mais tarde, quando voltaremos a ser donos do palácio.

Ulisses, acenando com a cabeça, deu-lhe toda a razão, admirando-lhe o bom senso.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 15:26

O FRACASSO DA EMBOSCADA

Entretanto, o barco que transportara Telêmacos e os companheiros de Pilos a Ítaca entrara no porto da cidade. Os companheiros de Telêmacos apressaram-se em mandar a Penélope um arauto com a nova do regresso do filho. Coincidindo com a missão, chegou também Eumeios, encontrando-se os dois no palácio. O arauto disse a Penélope, em voz alta, de modo que foi ouvido por todas as donzelas de serviço:

— Ó rainha, teu filho acaba de voltar!

Eumeios, por sua vez, comunicou secretamente e sem testemunhas o que o jovem amo o incumbira de dizer, e pediu fosse a alegre nova enviada a Laertes. Finda a missão, voltou para os seus porcos, mas os pretendentes, informados pelas desleais criadas, cheios de despeito, sentaram-se nos bancos postos diante da porta, e Eurímacos, levantando-se, disse:

— Nunca houvéramos suposto que esse rapaz levasse a termo a viagem. Tratemos de deitar ao mar um barco, rápido, que vá comunicar aos nossos amigos que a espera é inútil e que convém voltar, sem demora.

Enquanto Eurímacos falava, outro pretendente, Anfínomos, tendo-se voltado para olhar em direção ao porto, viu aproximar-se a todo o pano um barco.

— Não é necessário mandar aviso aos nossos amigos. Aí estão eles; ou um deus lhes comunicou o regresso de Telêmacos, ou o rapaz logrou escapar-lhes.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:14

Os pretendentes, levantando-se, correram imediatamente para a praia, e de lá, juntamente com os recém-chegados, rumaram para a ágora, a fim de realizarem uma assembléia secreta, não permitindo, por isso, o acesso de ninguém mais senão eles próprios. O chefe da expedição, Antínous, adiantando-se, disse:

— Meus amigos, não temos culpa se ele nos escapou. Durante o dia vigiamos sempre, um depois do outro, nos pontos mais altos da costa, e quando o Sol se punha não ficávamos em terra; pelo contrário, efetuávamos constantes cruzeiros pelo estreito, com o único objetivo de agarrar Telêmacos e matá-lo. No entanto, um imortal deve havê-lo guiado, uma vez que não lhe vimos o barco. Devemos, por conseguinte, tramar a sua morte aqui na cidade, pois o rapaz cada dia se torna mais sensato e inteligente. O povo não tardará em sublevar-se, porque se Telêmacos contar a todos a nossa cilada e a nossa intenção de matá-lo, acabarão por nos expulsar do país. Antes que isso aconteça, devemos eliminá-lo; depois, repartiremos nós os seus bens, deixando para sua mãe e o futuro marido o palácio. Se vos não agrada esta minha ideia, se preferis, no entanto, deixar-lhe a vida e a posse dos bens, não continuemos a dissipar-lhe a riqueza. Envie cada um de nós, da sua terra, presentes de noivado à princesa, e ela que escolha o que mais lhe seja apontado pelo Destino.

Fez-se enorme silêncio por toda a assembléia. Finalmente, Anfínomos, filho de Nisos, de Dulíquio, levantou-se. Era o mais nobre e bem intencionado dos pretendentes e, pela discrição das suas palavras, o que mais bem era visto por Penélope:

— Meus amigos, não gostaria de tirar à traição a vida de Telêmacos. É horrível aniquilar uma estirpe real na pessoa do último rebento. Será melhor consultar os deuses. Se a resposta de Zeus for favorável, eu mesmo me disponho a matá-lo; mas se os deuses proibirem tal ato, convém desistirmos do propósito.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:15

O conselho pareceu bom aos congregados. Assim, suspendendo a execução do primeiro projeto, voltaram ao palácio. Também dessa feita tinham sido ouvidos pelo arauto Médon, partidário secreto da rainha, a quem pusera a par de tudo quanto se ia tramando. Penélope, tirando o véu, correu com as criadas à sala em que se encontravam os pretendentes, e, muito excitada, disse, voltando-se para o autor da pérfida proposta:

— Antínous, perverso, impensadamente é que o povo de Ítaca te proclama o mais discreto de todos. Nunca o foste. Desprezas a voz dos infelizes, que o próprio Zeus ouve, e tens a ousadia de planejar a morte de Telêmacos. Não te lembras mais de que quanto teu pai Êupites veio correndo a nossa casa, fugindo à perseguição dos inimigos, que desejavam puni-lo por atos de pirataria contra os nossos aliados? Pretendiam os perseguidores matá-lo e arrancar-lhe o coração, e foi Ulisses quem os acalmou. E tu, seu filho, como agradecimento, dissipas os bens de Ulisses, fazes a corte à sua esposa e queres assassinar seu único filho? Andarias melhor dissuadindo os outros de tão asqueroso ato.

Eurímacos, surpreso, e percebendo haver entre eles um traidor, respondeu-lhe com cinismo:

— Nobre Penélope, não temas pela vida de Telêmacos, pois quero-o como um filho. Enquanto eu estiver vivo, ninguém ousará matá-lo. Não me esqueço de que Ulisses me teve nos joelhos, quando eu era criança e me deu guloseimas. Seu filho, que é teu também, dentre os homens o que mais estimo, não deve temer a Morte, pelo menos por obra dos pretendentes, já que a enviada por um deus é inevitável.

Assim falou Antínous, com hipocrisia, mas afavelmente, enquanto no íntimo pensava apenas na ruína do jovem príncipe.

Voltou Penélope para o seu aposento, e, deitando-se, chorou a ausência do marido, até o instante em que Hipnos, compadecido, veio lhe cerrar as pálpebras.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:16

Na mesma tarde, o porqueiro voltava à cabana, mas antes que ele entrasse, Atena deu de novo a Ulisses a aparência do velho mendigo, desta vez na frente de Telêmacos. E Eumeios encontrou-os ocupados em preparar para a refeição um porco. E perguntou-lhe Telêmacos:

— Finalmente, pastor! Que notícias me traz da cidade? Os arrogantes pretendentes, que partiram para me armar uma emboscada, já voltaram ao palácio, ou ainda estão me espreitando?

— Nada posso dizer com certeza. Não andei pela cidade sondando. Limitei-me a dar o recado de que me encarregaram. Mas vi um navio chegando ao porto, com muitos homens armados. Pode ser que sejam eles, mas não garanto nada.

O jovem Telêmacos, com um sorriso, piscou os olhos para o pai, mas de maneira que Eumeios não percebesse. Em seguida, comeram os três, e foram deitar-se.

TELÊMACOS DE VOLTA À ÍTACA

Mal a Aurora havia rompido, Telêmacos vestiu-se e disse ao porqueiro:

— Paizinho, vou à cidade, pois minha mãe não ficará tranquila enquanto não me vir. Daqui a pouco, leva o mendigo para que ele vá pedir esmolas. Nem tudo posso lhe dar, e na cidade há muita gente de coração compassivo. Se ele se ofender com isso, azar o dele.

Ulisses, admirado com a habilidade do filho na dissimulação, respondeu por ele:

— Tens razão, amo. Não é outro o meu desejo. Se um pobre tem de pedir esmolas, melhor se arranjará na cidade do que no campo. Vai em frente. Eu irei mais tarde, quando o Sol ficar mais quente. Não suportaria o frio da manhã com minhas esfarrapadas roupas. Afinal, como me disseram, a cidade não fica muito perto daqui.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:16

Telêmacos apressadamente rumou para a cidade, e ainda era cedo quando chegou diante do palácio. Apoiando a lança à coluna da entrada, atravessou o umbral de pedra e penetrou na sala, onde Euricléia ia cobrindo com formosas peles os assentos. Ao vê-lo, velha ama correu para ele com lágrimas de contentamento e deu-lhe boas-vindas; também o rodearam as outras donzelas, beijando-lhe as mãos e os ombros. Naquele momento, saiu do quarto Penélope, esbelta como Ártemis e formosa como Afrodite, apesar da idade, e, chorando, abraçou-o e beijou-o.

— Voltaste, Telêmacos, luz de minha vida! Não esperava tornar a ver-te depois que foste a Pilos, em busca de notícias de teu pai. Dize-me, filho querido, que novas trazes?

Telêmacos, reprimindo seus sentimentos, respondeu:

— Ah, minha mãe! Não renoves a minha dor, falando-me de meu pai, no momento em que acabo de escapar à Morte. Vai banhar-te, veste roupa limpa e sobe com as tuas ancilas para prometer aos deuses valiosas ofertas, se um dia se dignarem vingar-nos. Quanto a mim, irei ao mercado buscar um amigo que me acompanhou na viagem, e que confiei aos cuidados de outro companheiro.

Penélope seguiu-lhe o conselho. Telêmacos, empunhando a lança e seguido dos seus cães, correu ao mercado. Atena dera-lhe um encanto pessoal, pelo que todos o admiravam; também os pretendentes o rodearam, proferindo elogios, embora no fundo do coração continuassem a ruminar os seus pérfidos projetos. Telêmacos pouco tempo se demorou junto deles; juntando-se a três velhos amigos do pai, Mentor, Ânfitos e Haliterses, revelou-lhes o que era possível revelar. Surgiu então Pireus com o seu hóspede Teoclímenos, e Telêmacos os saudou; o primeiro, dirigindo-se ao amigo, disse-lhe:

— Meu caro Telêmacos, manda algumas criadas a minha casa buscar os presentes de Menelaus.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:17

— Amigo, é melhor que os presentes fiquem guardados em tua casa; ainda não sabemos o que vai suceder. Se eu cair assassinado pela mão traiçoeira de algum pretendente, certamente eles repartirão a herança, e nesse caso prefiro que os objetos caibam a ti e não a eles; se lograr puni-los e arruiná-los, poderás vir a minha casa trazer os presentes a um homem feliz.

Assim dizendo, pegou Telêmacos a mão de Teoclímenos e levou-o do mercado ao palácio, onde ambos tomaram um excelente banho. Depois, em companhia de Penélope, sentada na frente deles, a roda de fiar., comeram na sala. Penélope disse, então, tristemente ao filho:

— Telêmacos, voltarei ao andar superior e continuarei a regar o leito com as minhas lágrimas, como tenho feito até agora, uma vez que não queres contar-me o que soubeste do regresso de teu pai.

— Minha mãe, de muita boa vontade te contaria as notícias que obtive, se fossem mais consoladoras. Nestor, que me acolheu em Pilos com todo afeto, nada soube dizer-me de meu pai, mas enviou-me a Esparta, acompanhado de seu filho Pisístratos. Fui ali maravilhosamente recebido pelo ilustre Menelaus, e vi também a rainha Helena, por cuja causa tantas dores curtiram troianos e gregos. Ali, finalmente, vim a saber algo em torno de meu pai, ou seja, o que o deus Proteus o havia dito no Egito. Disse que Proteus vira meu pai na ilha de Ogígia, imerso na tristeza, uma vez que Calipso, a ninfa, o mantinha prisioneiro na sua gruta.

Notando Teoclímenos o acabrunhamento que tal notícia produzia em Penélope, apressou-se em interromper o anfitrião, para dizer:

— Rainha, teu filho não sabe tudo. Ouve esta minha profecia: certamente Ulisses se encontra em algum lugar deste país, no campo, ou talvez ande, oculto, bem perto daqui, pensando na destruição dos pretendentes. Foi o que me anunciou o vôo de uma ave, e eu o comuniquei ao teu filho.

Penélope suspirou.

— Se as tuas palavras se realizassem, meu nobre hóspede, não te queixarias do meu agradecimento.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:18

Enquanto os três conversavam amigavelmente, os pretendentes, reunidos, como sempre, no pátio da frente do palácio, passavam o tempo atirando o disco e a lança, até que, anunciando-lhes o arauto que a refeição estava pronta, entraram.

ULISSES E OS PRETENDENTES

Entretanto, Eumeios e o seu hóspede também tinham saído da cabana, rumo à cidade; o mendigo apoiava-se ao bordão que lhe fora dado pelo porqueiro Eumeios. Partiram os dois, deixando os estábulos sob a guarda dos moços e dos cães, e, por volta do meio-dia, não tardavam em chegar à fonte que, na entrada da cidade, havia sido construída e ornada pelos avós de Ulisses; brotava da pedra um jorro de água fresca e cristalina, e em volta crescia a vegetação. Aí encontraram o pastor de cabras, Melântios, e dois moços que levavam à cidade as melhores cabras do rebanho para os pretendentes. Melântios, que era de maus bofes, ao vê-los, começou a insultá-los:

— Por que trazes este mendigo para cá, porqueiro? Já não são poucos os que temos na cidade. Irá mendigar de porta em porta? Se o fizesses guarda do meu estábulo, haveria de fartar-se de queijo e criaria um pouco de carne sobre os ossos. No entanto, viciado como está, prefere mendigar e não trabalhar.

E, avançando, pregou um pontapé na coxa de Ulisses, que em represália pensou arrebentar-lhe a cabeça com o bordão, mas conteve-se. Eumeios sentiu-se ofendido, quis reagir, mas o mendigo fez-lhe um sinal de reprovação, e, voltando-se para a fonte, Eumeios disse:

— Ó sagradas Ninfas dos mananciais, filhas de Zeus, se alguma vez o meu povo vos ofereceu valiosos sacrifícios, ouvi o que vos rogo: fazei com que regresse de uma vez o herói Ulisses! Tu, Melântios, haverias de reprimir a jactância com a qual agora nos insultas.

— Cão! Seria melhor que te vendessem como escravo; arranjariam bom punhado de dinheiro. Prouvera aos deuses que o arco de Apolo ou o punhal dos pretendentes atingissem esse Telêmacos que te ampara e que ele morresse como pai.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:19

Tais palavras grosseiras calaram de vez a voz de Eumeios, e prosseguiram; em pouco, chegaram ao palácio. No portão do pátio, dentro de um redil, estava estendido um cão, de nome Árgos, que Ulisses havia criado desde pequenino. Enquanto era forte, Árgos fora usado na caça de cabras selvagens e lebres; agora, bem velho, ninguém cuidava dele, sendo alvo de maus-tratos, e ficava deitado sobre os montes de estrume, comido pelas pulgas. Adorava o seu dono e ansiava por sua volta, visto que, com o passar desses vinte anos de ausência, havia envelhecido e estava doente, mal se alimentava, vegetava, à espera de Ulisses. Permanecia sempre deitado, diante da porta, sobre um monte de esterco, comido pela sarna e pelos insetos, voltado em direção da velha estrada, com olhar triste, parecendo mais um cão morto que vivo. Era, talvez, o único que acreditava rever Ulisses um dia.

Nesse momento, o cão que parecia mais morto que vivo, ao observar que o mendigo se aproximava, finalmente, levantou as orelhas, abanou lentamente o rabo, tomando todas as suas forças, levantou-se, coxeando, tentou manter-se em pé diante do estranho, mas teve que deitar-se de novo, fraco que estava. Ulisses, reconhecendo-o, deixou cair uma lágrima, mas conteve-se e observou:

— Que esquisito, Eumeios. Um cão de tão boa raça, deitado no estrume, preso, parecendo esquecido pelo seu dono.

— Não havia cão de caça mais ágil e mais forte do que ele. Devias tê-lo visto nos vales cobertos de vegetação, arrastando a presa por entre a mata. Chama-se Árgos. Seu dono desapareceu, muito longe daqui, e as mulheres negligentes não cuidaram dele. Quando faltam os senhores, os servos não cumprem os seus deveres, até o maltratam. Na verdade, um escravo não passa de meio homem.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:19

O mendigo, então, aproximou-se do redil e, discretamente, abriu-o, antes que Eumeios pudesse lhe aconselhar a não fazer isso, permitindo que Árgos saísse, e estendeu-lhe a mão. No entanto, num ato incomum — já que o normal seria ele ter saído correndo aos pulos, de alegria —, Árgos cheirou a mão daquele, deu-lhe uma rápida e esforçada lambida, olhou-o com tristeza e caiu morto. Árgos o havia reconhecido, apesar de seu disfarce de velho mendigo.

— Era uma velho cão de guarda. Já estava mais do que na hora de morrer. Encontrava-se assim, doente, cabisbaixo, desde que meu amo partiu para a guerra e não mais voltou.

Rolavam lágrimas ardentes e discretas dos olhos de Ulisses, que escondia sua emoção pelo seu companheiro Árgos, que o via pela última vez, esquecido e maltratado. Mas a alma de Árgos não foi abandonada: a Morte veio-lhe buscar e levá-la para junto do rei Hádes, com vigor e esperteza, como sempre, e ganhou um assento ao lado, aos pés do próprio rei do mundo subterrâneo, ocupando uma posição muitas e muitas vezes mais digna e importante que a do próprio mastim Cérberos.

Então, entraram no palácio, onde os pretendentes se banqueteavam. Melântios, ao avistarem os príncipes, foi-lhes ao encontro, e sentou-se à mesa em frente a Eurímacos, que muito o estimava. E Ulisses, no corpo de mendigo, ao tornar a ver a casa depois de tão longo tempo, sentiu-se dominado por violenta comoção e, pegando a mão do companheiro, disse-lhe:

— Eumeios, esta deve ser a morada de Ulisses. Que magnífico palácio! É imenso! O vestíbulo está bem fechado com muros ameados; as portas estão bem ajustadas e são de duas folhas; ninguém desprezaria semelhante casa. Noto, mais, que há muitas pessoas comendo, uma vez que nos chega o aroma das iguarias e se ouve a cítara, que os deuses destinaram a ser companheira dos festins.

— És muito bom observador, amigo, bom até demais. Espera aqui, na soleira da porta.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:20

Ao ver Eumeios entrar, Telêmacos fez-lhe um sinal para que se aproximasse. O porqueiro olhou cuidadosamente em volta, e, pegando a cadeira em que costumava sentar-se o trinchante durante os banquetes, colocou-se num canto da mesa, em frente do amo, onde logo depois, lhe serviu o arauto pão e carne.

A um sinal de Eumeios, não tardou em entrar também o mendigo, apoiando-se pesadamente no bordão, indo sentar-se no umbral da porta, feita de teixo. Mal Telêmacos o viu, apanhou da cesta um pão inteiro e um naco de carne e, chamando Eumeios, mandou que ele desse ao mendigo, recomendando:

— Toma. Dize ao mendigo para não se envergonhar e pedir esmola a cada um dos pretendentes de minha mãe.

— Eles vão humilhá-lo.

— Vai, Eumeios, faze o que te digo.

O mendigo, agradecido, aceitou o presente e, pegando-o com ambas as mãos, começou a comê-lo. Durante o banquete, o cantor Fêmios distraiu os convivas com as suas canções; mas quando este se calou, ressoou de novo na sala a ruidosa conversação dos hóspedes.

Naquele momento, aproximou-se Atena, invisível, e impeliu Ulisses a ir pedir aos pretendentes:

— Vai, Ulisses, confere agora quais são os justos e gentis e quais são brutais e têm a alma negra.

Ninguém, no entanto, escaparia à vingança da deusa, mas uns estavam destinados a morrer de forma mais branda que outros. Assim, Ulisses, ainda meio indeciso, seguindo as ordens da deusa, não se demorou a sair estendendo a mão como um verdadeiro mendigo. Alguns, compassivos, lhe deram esmola, outros não, a exemplo de Antínous, que rosnou:

— Hei, tirai esse mendigo repugnante daqui!

Então, querendo saber alguns sobre a procedência do mendigo, falou-lhes Melântios:

— Já vi antes este projeto de homem; foi o porqueiro quem o trouxe aqui.

Ouvindo essas palavras, Antínous, irritadíssimo, voltou-se para Eumeios.

— Dize-nos, porqueiro, por que trouxeste à cidade este homem? Não temos suficiente número de vagabundos para que devas introduzir nesta sala este glutão?
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:21

— Não és sensato, Antínous. Ninguém se dá o trabalho de ir buscar no meio do povo senão o adivinho, o médico, o carpinteiro e o cantor que nos alegra. Ninguém vai chamar o mendigo; se vem, vem por conta própria, e nem por isso o expulsam. Tampouco este será expulso, enquanto Penélope e Telêmacos viverem nesta casa.

Telêmacos ordenou-lhe que se calasse:

— Não lhe respondas assim, Eumeios. Bem sabes como é insolente este homem e como gosta de ofender a todos. No entanto, tu, Antínous, ouve o que te digo: não és meu tutor para mandar-me expulsar este estrangeiro de minha casa. Farias melhor em dar-lhe alguma coisa, mas evidentemente preferes comer tu e nada ceder aos demais.

— Vede como ousa enfrentar-me este mocinho! Se cada um dos pretendentes dessa esmola a este mendigo, em três meses não teria mais necessidade de tornar a vir aqui.

Disse, pegou um escabelo, no momento em que o mendigo, de volta a porta, ao passar pela sua frente, lhe pedia também uma esmola; Antínous, irritado, gritou-lhe:

— Que deus nos trouxe esta peste para arruinar-nos o banquete? Fora desta mesa, se não queres que te espanque!

O mendigo, virando-se lentamente para Antínous, acrescentou:

— Pobre de Zeus soberano se viesse a esta casa mendigar, só como teste, como fez a Báucis e Fílemon! Já fui rico, meu senhor, e possuí muitos navios. Mas, numa viagem ao longínquo Egito, fui pilhado por piratas e vendido como escravo em Cipros.

O jovem Antínous advertiu-o em tom de desprezo:

— Trata de sair daqui com as tuas lorotas, velho, ou verás que Ítaca é muito pior para ti do que o Egito ou Cipros.

— O senhor tem um belo semblante, mas teu coração não é compassivo. Aqui estás comendo em mesa alheia, no entanto nada dás a quem necessita.

Ulisses virou-se e continuou a pedir esmola. Antínous apanhou o banquinho que repousava os pés e atirou-o no mendigo, ferindo-o no ombro e arrancando gargalhadas dos demais.

— Isto é para que tu aprendas a ver quem manda aqui.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:21

E continuou a rir.

Seu filho quis ajudá-lo, mas conteve-se. Ulisses suportou a pancada sem nada dizer, apenas sacudindo a cabeça, mas, amargando vingança, foi se sentar à porta do salão, e, largando o saco das esmolas no chão, aí falou, em voz alta, silenciando a todos:

— Ouvi-me, pretendentes da rainha! Antínous me feriu porque sou pobre. Que a desgraça caia sobre ele, antes do seu casamento!

Antínous ameaçou-o:

— Come calado o que te deram, mendigo, senão mandarei que te coloquem para fora a pontapés!

Os pretendentes, porém, o censuraram. E um até disse-lhe:

— Imprudente amigo! Não devias ter ofendido o mendigo. Então não sabes que os deuses, às vezes, se disfarçam de mendigos e visitam os homens para verem se são bons ou maus? Esqueçamos este molambo e vamos continuar a festa...!

Antínous, porém, não fez caso de tais palavras, tão insensível era. Mas tomou uma imensa cratera de ouro repleta de vinho açucarado com mel, cristalino feito âmbar, e serviu-se à vontade.

E Telêmacos encheu de cólera o coração ao ver seu pai tão maltratado. Mas não perdeu a razão. Penélope, pelas janelas abertas do gineceu, porém, ao ver que o pedinte havia sido agredido no palácio, implorou aos deuses que castigassem o malvado. E confessou à sua governanta:

— Detesto todos eles, mas Antínous é o pior.

Depois, em particular, pediu ao porqueiro:

— Traze o mendigo à minha presença, bondoso Eumeios. Gostaria de conversar com ele. Talvez possa me revelar qualquer coisa a respeito de Ulisses.

— De novo, minha rainha?

Penélope olhou-o com surpresa, e Eumeios acrescentou:

— Muito irás apreciar a conversa dele, rainha. Esteve em minha choupana três dias e não parou de contar as suas aventuras. É um encanto ouvi-lo! Um aedo não nos deleitaria mais. Diz que vem de Creta. Por sinal contou que ouvira falar de Ulisses. Parece que acumulara muitas riquezas e que estava a caminho de Ítaca, estando agora asilado em Trespótis, se bem entendi.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:22

Penélope ficou ansiosa:

— Traze-o agora, Eumeios! Ah, desavergonhados pretendentes! O que nos falta aqui é um homem como Ulisses. Quem dera que Ulisses voltasse e castigasse todos estes desalmados pelo dano que têm feito! Se for verdade o que ele disse, vou presenteá-lo com as mais ricas roupas.

Mal proferira tais palavras, Telêmacos, na sala, espirrou com tal força que toda a casa o ouviu. Penélope não pôde deixar de sorrir e disse ao porqueiro:

— Viste como Telêmacos confirma as minhas palavras? Não é bom presságio? Vai chamar o forasteiro.

E Eumeios foi a Ulisses:

— A rainha quer falar contigo. Deseja que repitas o que sabes sobre o esposo. Se o que me disseste é verdade, serás recompensado com belas roupas e poderás esmolar na ilha sem que ninguém te importune.

Ulisses considerou que não era tempo ainda de se deixar reconhecer pela esposa, temendo que tal acontecesse se conversasse com ela. E, fingindo ter medo dos pretendentes, respondeu:

— Com grande prazer contaria à rainha tudo quanto sei. Mas temo aqueles desalmados. Ainda há pouco, quando aquele homem me agrediu, ninguém se levantou para me defender. Nem mesmo Telêmacos. Desculpa-me com a rainha, mas agora não tenho coragem de ir vê-la. Se ela puder esperar até a noite, eu irei; irei, então, ter com ela, e direi tudo quanto eu souber.

Eumeios correu a transmitir o recado à rainha e, ao aparecer, sozinho, ela se impacientou:

— Por que não trouxeste o homem? Ele tem medo ou vergonha? É mau que um mendigo seja envergonhado.

— Ele não é envergonhado, senhora. Mas teme a violência dos pretendentes. E não há dúvida que tem razão para temer. Mas, se a senhora esperar até a noite, ele virá. Aliás, será melhor para os dois.

— É esperto o nosso homem. Esperarei por ele de noite. Na verdade os pretendentes são muitíssimos insolentes.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:23

E Eumeios se aproximou de Telêmacos e sussurrou-lhe:

— Vou voltar para a minha choupana. Os porcos precisam de quem tome conta deles direito. Há muitos homens aqui com a disposição de lhe fazerem mal. Por isso, cuida de tudo e de ti mesmo. E que Zeus extermine a todos antes de ameaçar-te!

— Fica até o anoitecer, depois vai sossegado, paizinho. Mas volta amanhã e não te esqueças de trazer alguns animais para o sacrifício.

O porqueiro pôs-se a caminho, enquanto os convivas deleitavam-se com músicas e danças.

IROS, O MENDIGO

Naquele mesmo dia, veio ao palácio um mendigo, de nome Arneus, mas atendia por Iros, “mensageiro”, já que fazia alguns recados para os pretendentes. Era glutão e beberrão, mas, apesar do robusto físico, era extremamente covarde. O ciúme o conduzira ao palácio, ao saber que havia ali um rival; ao dar com Ulisses à entrada do salão, quis demonstrar importância:

— Sai daí, velho, senão vou te arrastar por uma perna lá para fora! Os pretendentes estão me piscando os olhos para que eu assim proceda. Mas é melhor que vás por bem, pois não quero dar prova de covardia.

Ulisses olhou-o de soslaio e replicou:

— Há lugar aqui bastante para nós dois. És pobre como eu, e as esmolas que receberes não me causarão inveja. Mas não me provoques, pois não sou de brincadeiras. Apesar de velho, não tardarias em ter o peito e os lábios cheios de sangue, e amanhã não verias mais esta casa.

Iros achou que o outro era presa fácil para os seus punhos:

— Estás falando comigo? Por que gritas desse jeito? Com duas bofetadas, sou capaz de desmanchar-te e quebrar-te os dentes, focinho de porco! Pretendes, por acaso, medir forças comigo, que sou mais jovem? Ou sais ou te dou uma surra!

O príncipe Antínous ouviu a discussão entre os dois e, rindo, gritou para os demais comparsas:

— Atenção, amigos! Iros e o mendigo estrangeiro estão trocando ofensas. Seria um bom divertimento forçá-los a um combate de pugilato.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:24

Todos se levantaram e, às gargalhadas, cercaram os litigantes. E Antínous deu as bases para a disputa:

— Temos dois pernis de cabrito, prontos para serem assados. O vencedor poderá escolher um como prêmio. E poderá comê-lo à vontade entre nós, quando quiser.

E Ulisses ponderou:

— É empresa difícil um velho derrotar um homem em plena força da mocidade. Mas tentarei. Suplico, porém, que não o ajudem, aplicando-me golpes traiçoeiros.

Telêmacos, que permanecia em silêncio, interveio:

— Podes ficar descansado, velho, se te sentes capaz. Sou eu quem te oferece hospitalidade, e quem te batesse teria de haver-se com muita gente. Não é, amigos?

Nenhum dos pretendentes deixou de concordar, e aplaudiram, e Ulisses desfez-se dos andrajos, pôs a túnica na cintura, e se pôs em guarda. E, ao verem as suas coxas maciças, os largos ombros, o peito e os braços poderosos, com os nervos à flor da pele, que Palas-Atena mais fortalecera, ficaram extremamente admirados e trocaram impressões desfavoráveis a Arneus:

— Coitado do pobre Iros!

Arneus (ou Iros), por sua vez, se apavorou ao verificar a pujança do adversário. Teria até fugido vergonhosamente, se os circunstantes não o impedissem. E Antínous berrou:

— Que pusilanimidade a tua, Iros! Tens medo de um débil velhote? Pois não devias ter nascido. Se tentares fugir, vamos meter-te num navio e enviar-te a Équetos, o rei do Épiros, que cortará teu nariz e tuas orelhas para dar aos cães!
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:24

Aos empurrões, Arneus foi posto no meio da rixa. Ulisses oscilou entre matá-lo com um golpe fatal ou apenas derrubá-lo com um potente murro. Decidiu apenas pelo murro, humilhando-o. Arneus tentou atingi-lo com um soco, mas Ulisses se esquivou e respondeu com outro tão certeiro no queixo do contendor que Arneus desabou no chão, o sangue saindo aos borbotões da boca, no meio de gargalhadas e aplausos. Ulisses, então, agarrando-o por um pé, arrastou-o até o pátio, encostou-o contra o muro e, pondo uma vara na mão dele, acabou de arrasá-lo:

— Tu ficas sentado aqui, enxotando os cães e os porcos. É para o que tu serves. E, para outra vez, não te metes com quem não conheces. Poderia te sair ainda mais caro a ignorância.

Os assistentes gozaram estrepitosamente o rápido desfecho, Antínous cumpriu a promessa, dando-lhe um enorme pernil de cabra, à sua escolha, e um outro moço, cujo nome era Anfínomos, regalou ainda o vencedor com dois pães e, de copo na mão, levantou um brinde:

— Salve, valente hóspede! Que daqui por diante tua vida seja melhor. Quanto a Iros, ele irá direto para o rei Équetos.

Ulisses simpatizou com ele, percebendo que era de melhor estofo que os outros, e procurou fazer-lhe uma advertência:

— É muito nobre e sensata a tua atitude, senhor. Digna do probo varão que devia ser teu pai. Não há ser no mundo mais fraco do que o homem. Jamais pensa no futuro. Quando está próspero, cuida que nenhuma desdita o atingirá e, quando a sorte lhe é adversa, pensa que nada o salvará. Digo-te por mim. Rico já fui, pratiquei despotismos, confiei demais em mim e em meus parentes, e vê a que estou reduzido! Não confies nem no roubo nem no mal. Mais cedo, ou mais tarde, os deuses desencadeiam a punição. Junto com os teus companheiros dilapidas os bens de um homem ausente. É má ação. Ele voltará, não duvides, e aniquilará seus malfeitores. Evita tal vingança enquanto é tempo. Volta para tua casa e nada te acontecerá de lastimável. Vai, antes que seja tarde.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:25

Disse, e verteu umas gotas como libação, sorveu o resto e devolveu a taça ao jovem pretendente. Ele, então, abaixou a cabeça, pensativo, e atravessou a sala imerso de preocupação, como se estivesse prevendo algo mau. As sábias palavras de Ulisses caíram no coração de Anfínomos como gotas de verdade. Todavia, por secreta imposição de Atena, não as seguiu; manteve-se no erro, ignorando o inexorável decreto da Morte.

A INTERVENÇÃO DE PENÉLOPE

Entretanto, a deusa incutiu na mente de Penélope a ideia de se mostrar aos postulantes para mais exaltá-los. E foi assim que ela se dirigiu à velha aia:

— Embora me sejam odiosos, pela primeira vez sinto vontade de ver os pretendentes. Quero também recomendar a meu filho para não se meter muito com eles, que esperam a oportunidade para matá-lo.

— É bem acertado, senhora. Mostra-te a eles, engabelando-os ainda, e alerta Telêmacos. Mas primeiro lava o rosto e passa depois bastante óleo odorante. Não apareças desfigurada pelas lágrimas do teu permanente sofrimento.

— Não fales em me enfeitar. Minha beleza se esvaiu quando meu Ulisses partiu para Tróia. Mas manda-me aqui duas escravas, Autónoe e Hipodâmia, pois fico envergonhada de me apresentar sozinha diante daqueles homens.

A aia foi providenciar as escravas, mas Palas-Atena alterou o que Penélope pretendia fazer. Provocou um doce sono na fiel esposa que, na cadeira mesmo onde estava sentada, adormeceu. E fê-la ainda mais bela, limpou seu rosto com ambrosia, fê-la aparentemente mais alta e majestosa e deu-lhe à pele o brilho do marfim. Enquanto isso, Penélope agitava-se, até chegar a gritar, como se tivesse um pesadelo. Quando as ancilas entraram, assustadas, a rainha despertou e, esfregando os olhos, exclamou:

— Que lindo sonho tive! Praza aos deuses enviar-me morte tão suave, para que eu não tenha de continuar a sofrer por meu marido.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:26

E, levantando-se, correu para a janela observar os gansos que comiam tranquilamente perto do lago. Em seguida, mais calma, ladeada pelas duas servas, deixou seus aposentos superiores e desceu ao salão, com o rosto encoberto por um tênue véu. Não houve pretendente que não se prosternasse ante tão maravilhosa mulher e não ansiasse ardentemente tê-la por esposa. Ela achegou-se ao amado filho:

— Telêmacos. Quando eras criança, tu tinhas mais tino e vivacidade. Hoje, na idade viril, mesmo ostentando a aparência que deve ter o filho do mais nobre dos homens, falhas em firmeza e justiça. Como consentiste que o estrangeiro fosse aqui tratado indignamente? Seria um impagável opróbrio a pesar sobre nós, se por acaso ele ficasse ferido.

Telêmacos sabia que tudo se sucedia de acordo com a vontade de Ulisses, por isso, não impedia suas ações, mas teve que agradar a mãe, sussurrando-lhe:

— Tens razão de estar zangada, minha mãe. Já não sou criança para não distinguir o bem do mal. Mas não mereço censuras. Não posso fazer com que tudo seja conforme eu gostaria que fosse. Sou um contra todos, não poderia fazer prevalecer minha vontade. Abriria margem para que tentassem me matar, como T6em o propósito. Fui prudente, mãe. Quanto à luta entre o estrangeiro e Iros, não terminou como os pretendentes imaginavam. Num abrir e fechar de olhos, Iros foi derrotado. Agora ele está no pátio, tonto como um bêbado. Oxalá os pretendentes estivessem já no estado em que ele se encontra!

O colóquio foi interrompido por Eurímacos:

— Ó, impoluta Penélope, filha do grande Icários! Se todos os helenos pudessem contemplar-te, este palácio seria pequeno demais para abrigar a multidão de pretendentes. Nunca se viu uma mulher de tão grande formosura!

— Não foi a toa que Ulisses preferiu-te a Helena...
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:26

Mas respondeu sensata a rainha Penélope:

— Meus dotes de beleza foram destruídos pelos deuses, quando meu senhor Ulisses seguiu para Tróia. Se ele voltasse e cuidasse da minha vida, meu esplendor renasceria. Recordo-me quando, na hora da partida, ele me tomou a mão e disse que nem todos os guerreiros voltariam, pois afirmava que os troianos eram valentes e experientes na guerra, capazes de decidirem o destino de uma batalha. Deixou-me infeliz ao revelar-me que era incerto o seu regresso, talvez permanecendo para sempre sepultado naquele país. Disse-me para zelar pelas coisas que deixava, seu pai e sua mãe, também nosso filho, que, quando atingisse a maioridade, e ele não tivesse retornado para casa, eu deveria me casar de novo e abandonar o palácio. Assim foi a ordem que me deixou meu marido e que eu fielmente cumpri, quase tudo; apenas falta-me um novo himeneu. Como não há mais esperanças do retorno de Ulisses, e Telêmacos já é um homem, chegou a hora da minha decisão. Mas uma dúvida atormenta o meu espírito: o antigo costume dos pretendentes não é observado. Quando uma mulher ilustre é cortejada, recebe dos interessados, além de presentes magníficos, muitos bois e ovelhas e as pessoas, que a ela são caras, por eles são banqueteadas; e o que tem acontecido aqui é a impune dissipação das minhas posses.

Ulisses alegrou-se de que Penélope solicitasse dádivas e acalentasse esperanças no coração daqueles que odiava. E Antínous adiantou-se:

— É justa a tua dúvida, senhora! Esquecemos os antigos usos. Vamo-nos penitenciar, cobrindo-te de presentes. Mas só abandonaremos o palácio, quando, entre um de nós, escolheres teu novo esposo.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:27

As palavras de Antínous agradaram a todos os postulantes, que se apressaram em mandar os seus arautos buscar os mais valiosos presentes. Antínous ofertou uma túnica bordada e doze broches de ouro, Eurímacos compareceu com um colar de ouro e âmbar, Eurídamas regalou-a com brincos e três pérolas, Pisandros deu uma riquíssima joia e, em suma, cada qual se esmerou mais em agradá-la. Com as escravas carregando a preciosa carga de presentes, a rainha retornou aos seus aposentos. E os pretendentes volveram a se divertir com danças e cantorias, até que a noite veio.

NOVOS INSULTOS A ULISSES

Quando chegou a Noite, as criadas, enquanto atiçavam o fogo das tochas para iluminar a sala, começaram a apostar qual delas terminaria antes. Ulisses, aproximando-se, disse-lhes:

— Criadas de Ulisses, que há muito tempo está ausente, ouvi-me: é mais próprio ficardes ao lado de vossa princesa, fazendo girar o fuso. Deixai que eu me ocupe do fogo da sala. Nem que os pretendentes permaneçam aqui a noite inteira, não me cansarei. Estou habituado à fadiga.

As moças, entreolhando-se, desataram a rir. Finalmente, uma das mais jovens, muito bonita, de nome Melante, que Penélope criara como se fosse filha sua, mas que passara a viver escandalosamente com Eurímacos, replicou em tom insultante:

— Miserável mendigo, deves estar louco se, em vez de ir dormir num lugar qualquer, permaneces aqui, onde se encontram tantos homens nobres, e pretendes dar-nos ordens. Estás bêbado, louco, ou talvez te haja transtornado a vitória que lograste contra Iros? Cuidado, para que alguém não te aplique bofetadas e te expulse daqui.

Respondeu-lhe Ulisses:

— Desavergonhada! Vou repetir as tuas palavras ao príncipe Telêmacos.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:28

As moças, assustadas com a ameaça, fugiram da sala, de joelhos trêmulos. Ulisses incumbiu-se do fogo, avivando a chama e deixando para outra oportunidade algum tipo de punição. Mas Atena instigou os orgulhosos pretendentes, levando-os a continuar com os cruéis motejos. Foi quando Eurímacos, voltando-se para os companheiros, que o ouviam com grandes gargalhadas, escarneceu de Ulisses:

— Boa sorte tivemos por nos ter os deuses enviado este homem. Refletindo a claridade das tochas, a sua calva aumenta a luz de que precisamos.

Muita risada houve e ele continuou, virando-se para o alvo da sua zombaria:

— Não queres ir para as minhas lavouras, estrangeiro? Trabalho não falta lá e em troca terás roupas, calçado e comida abundante. Mas estou desconfiado que a labuta não é o teu forte. Preferes viver de mão estendida, pedindo esmolas.

Ulisses, que no momento das zombarias, havia ouvido falar o nome do zombeteiro, retrucou:

— Muito me agradaria, jovem Eurímacos, trabalhar ao teu lado. Bela competição seria, cada um de nós com a sua foice, ceifar o feno nos longos dias da primavera e jejuar até a noite para completar a colheita do trigal. Ou poderíamos arar a terra, pelo menos uns quatro alqueires diários cada um. Também, se houvesse uma guerra, me seria grato ver-te junto a mim, na linha de frente, com lança, escudo e elmo de bronze. Mas tens muito duro o coração e te portas inconvenientemente, fiado num punhado de homens que não são valentes. Se Ulisses voltasse, esta porta, conquanto larga, seria estreita para a atropelada fuga que empreenderias com os teus companheiros.

Eurímacos ficou iradíssimo:

— Velho miserável! Ou estás bêbado, ou estás vaidoso por ter vencido o poltrão Iros. Duma forma ou de outra, vou-lhe dar a justa paga do que atrevidamente me disseste.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:28

E, novamente, agarrando um escabelo, atirou-o furiosamente em Ulisses, que com agilidade se esquivou aos pés de Anfínomos, e o atingido foi um copeiro, que caiu de costas, aos gemidos, enquanto a jarra de vinho rolava pelo chão. Alguns príncipes acudiram-no, enquanto outros caíram na gargalhada.

Serenado o incidente, um dos convivas falou bem alto:

— Quem dera que este estrangeiro fosse embora. Desde que aqui chegou só tem causado desordens. Que prazer poderá nos propiciar um festim no meio de tantas confusões?

Telêmacos, então, falou:

— Já vos farteis de comer e beber! O vinho já vos sobe à cabeça. O melhor a fazer é irdes para casa dormir. Claro que não estou enxotando ninguém. Apenas é um conselho que dou.

Anfínomos, o mais sensato, erguendo-se, disse:

— Telêmacos tem razão, meus amigos. Não vos oponhais ao que ordena. Nenhum de vós, nem os criados, volte a ofender o forasteiro. Enchamos as taças pela última vez para a libação e partamos. Quanto ao velho, fique aqui sob a proteção de Telêmacos.

Houve um geral assentimento e logo o salão se esvaziou.

ULISSES E PENÉLOPE

Ulisses, que ficara no salão premeditando, sob a influência de Palas-Atena, o aniquilamento dos seus desafetos, de súbito disse a Telêmacos:

— É hora, filho, de fazer o que te recomendei. Tira daqui todas as armas e deposita-as na minha câmara.

Obediente, Telêmacos chamou a velha ama:

— Tranca as escravas na cozinha, Euricléia, enquanto eu levo estas armas para uma boa limpeza. Já não é sem tempo, pois estão muito sujas.

— Felizmente estás criando juízo, meu rapaz! Que bom que todos os bens de teu pai fossem cuidados com o mesmo zelo. Mas não podes trabalhar no escuro, e quem levará uma tocha, se dispensas todas as escravas?

— Este estrangeiro se encarregará . Eu não gosto de gente ociosa. Vai pagar com trabalho o pão que lhe dei.
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