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A Saga de Ulisses

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A Saga de Ulisses - Página 11 Empty Re: A Saga de Ulisses

Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:29

A ama Euricléia encerrou as servas na cozinha, e Ulisses e Telêmacos levaram as armas para a câmara, precedidos pela invisível Atena com um facho de ouro que espalhava uma luz maravilhosa.

Telêmacos não pôde conter o assombro e murmurou:

— Pai, que coisa estranha! Parece que as paredes, as vigas e as colunas estão brilhando como fogo vivo! Algum deus se faz presente?

Ulisses, que não ignorava ser o fenômeno mais uma arte da deusa amiga, advertiu-o:

— Eu sei do que se trata. Mas cala a tua curiosidade e não fales a ninguém o que sucede. É dessa forma que procedem os Imortais.

E, quando acabaram de transportar o armamento, Ulisses mandou o filho se recolher:

— Vai dormir em paz, que eu quero conversar com a tua mãe Penélope.

— Vais revelar-lhe a tua identidade?

— Não é chegado o momento ainda. Apenas submeterei a nova prova tua mãe e as criadas.

Telêmacos retirou-se, Ulisses ficou uns minutos no salão combinando com Palas-Atena o morticínio dos pretendentes, até que Penélope, radiante de beleza, veio se sentar junto à lareira, numa cadeira de marfim com ornatos de prata. Servas vieram, limparam os restos do banquete, retiraram a louça, reanimaram o fogo. E, pela segunda vez, Melante insultou Ulisses:

— Forasteiro, não queiras passar a noite no palácio, andando de um lado para outro. Não fica bem. Contenta-te com o que recebeste e vai-te agora, se não queres que te lance este tição à cabeça.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:30

O mendigo, olhando-a torvamente, respondeu-lhe:

— Infeliz, por que me ultrajas dessa maneira? Por que ando esfarrapado e vivo de esmolas? Não é esse o destino dos que não têm pátria? Houve um tempo em que eu também era feliz e vivia em casa opulenta; dava aos forasteiros tudo quanto lhes era necessário, e não lhes repudiava pela aparência. Não me faltavam criados nem criadas, mas Zeus tudo me tirou. Lembra-te, mulher, de que também tu passarias mal, se a princesa se fartasse de ti. E se Ulisses voltar? Olha, que não estão perdidas todas as esperanças. Imagina só se Telêmacos, que já não é uma criança, decidisse substituir-te!

Penélope ouviu as palavras do mendigo e imediatamente repreendeu a petulante:

— Desavergonhada! Conheço-te e sei o que andas fazendo. Mas pagarás tudo muito caro. Ouviste dos meus lábios que respeito este forasteiro e desejo pedir-lhe notícias de meu marido, e, no entanto, ousas insultá-lo! Vai cuidar dos teus afazeres!

E Melante, amedrontada, recuou. Penélope, então, ordenou a Euricléia:

— Traze uma cadeira e um coxim para o estrangeiro. Quero conversar.

Ulisses sentou-se e Penélope começou:

— Antes de mais nada, estrangeiro, me responde: Quem és? De onde vens? Qual a tua cidade? Como é o nome de teus pais?

— Majestade, és mulher irrepreensível, e também a fama de teu marido é muito grande; teu povo e teu país desfrutam de enorme glória. Pergunta o que quiseres, rainha, menos sobre a minha linhagem e a minha Pátria. São coisas que me pungem enormemente. Não posso pensar nelas sem lágrimas, e não gosto que ninguém me veja chorando.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:30

— São infindáveis os meus dissabores, estrangeiro, e as minhas lágrimas não têm conta depois que meu marido foi combater em Tróia. Vi-me confusa, privada de deliberação e o reino anda desmoronando. Os príncipes de Ítaca e das ilhas vizinhas acudiram em massa ao palácio pedindo a minha mão, assim de forma inexplicável, de uma hora para outra. Daqui não arredaram o pé, quer fosse dia ou noite. Nem sei como até agora consegui escapar. A princípio, na verdade, fui inspirada por um deus e consegui ludibriá-los inventando que só poderia me casar após tecer uma mortalha para meu velho sogro. Durante três anos, o que tecia à luz do Sol, desmanchava de noite à luz das tochas. Mas uma escrava infiel me delatou e me vi obrigada a pôr fim à trama. Como consegui até agora atrasar o meu novo himeneu, foi um milagre. Mas agora é impossível encontrar mais subterfúgios. Meu pai e minha mãe, que vivem em Esparta, insistem para que me case. Meu filho está indignado com os que devoram os seus bens e já é homem capaz de administrar o que é seu. Mas, afinal, não sei a quem faço tais confidências. Quem és e donde vens? Certamente não és filho de um carvalho ou de uma rocha, como acontecia nas antigas lendas.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:31

Usando a sua lábia, Ulisses atendeu-a, inventando a mesma história de sempre:

— Como pode um forasteiro escapar a todos os interrogatórios, senhora? Vou responder, embora isto me acenda profundas mágoas. Sou natural da ilha de Creta, terra bela, fértil e populosa, pois não tem menos de noventa cidades. Chamo-me Aéton e sou o último filho nascido do rei Deucálion. É, não sou tão velho quanto pareço. Quando meu pai morreu, meu irmão Idomeneus ocupou o trono. Ao partirem os gregos para Tróia, meu irmão a eles se incorporou. Pouco depois da partida, chegou à cidade um estrangeiro afirmando ser Ulisses, e dizendo que também rumava para Tróia, mas que os Ventos o haviam afastado da rota. Perguntou por meu irmão, de quem disse ser grande amigo. Forneci-lhe os víveres de que necessitava. Permaneceu doze dias à espera de que mudasse o vento, coisa que só aconteceu no décimo-terceiro dia, quando então se foi, e encontrou os demais nas terras da Míssia, como ouvimos notícias.

Penélope ouviu-o com ansiedade e não pôde evitar que as lágrimas escorressem pelas suas faces. Ulisses comoveu-se ao vê-la chorar, mas conteve-se, porque sentiu muita vontade de abraçá-la, e manteve os olhos secos como se fossem feitos de chifre ou de ferro. E novamente Penélope interrogou-o:

— Responde-me a duas questões, estrangeiro, para que possa me certificar de que aquele homem era mesmo o meu esposo. Como se vestia? Alguém em especial o acompanhava?
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:31

— A primeira pergunta tenho dificuldade em responder. Quando já se passaram vinte anos, a memória pode se obscurecer. Mas, se não me falha a lembrança, trazia um largo manto de lã vermelho escuro preso por um broche de ouro de original feitio: um cão sujeitando com as patas dianteiras um cabrito montês; e a túnica era alva e luzidia. Aqueles detalhes me chamaram muita atenção. Não sei se as roupas ele já usava na nesta casa, ou se foram presentes de amigos nas terras que visitou, tantos amigos tinha desejosos de agradá-lo. Eu mesmo lhe ofereci uma espada de bronze e uma comprida túnica. Quanto à segunda pergunta, posso ser mais positivo, pois me lembro perfeitamente que Ulisses se acompanhava de um arauto, mais velho do que ele, de tez escura e cabelos crespos.

— Polites.

Penélope ainda mais chorou ao verificar a veracidade do que lhe contava o falso mendigo, apesar de que Ulisses esquecera-se do nome de seu falso pai que havia dito a Eumeios; antes, dissera-lhe que se chamava Cástor, agora, diante de Penélope, denominara-o Deucálion, um nome famoso entre os soberanos de Creta. Em vista de tudo, que pareciam fatos, confirmou a rainha:

— Realmente, Aéton, é Ulisses. Usava as roupas que eu dobrei com as minhas próprias mãos, e quanto ao broche, era dele. Ah, nunca mais verei meu marido!

— Não digas tal coisa, veneranda senhora. E não chores mais. As lágrimas envelhecem as mulheres. Cedo, Ulisses estará de retorno. Foi o que o rei Fídon me garantiu, mostrando-me as riquezas que Ulisses acumulara para que a sua família vivesse na opulência por muitas gerações. Fídon guardava-as zelosamente, enquanto Ulisses fôra a Dodona consultar um Oráculo sobre a melhor maneira de chegar até aqui. Acredita, senhora. Antes do fim do mês ele estará em Ítaca.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:32

— Maravilhoso seria se o que dizes se cumprisse! Em pagamento, não permitirias que sofresse mais privações. Nunca mais! Mas não acredito. Agora, vai repousar. As escravas haverão de prepara-te água para lavar teus pés e uma cama com boas cobertas para que possas dormir bem aquecido.

— Fico muito agradecido, senhora, mas dispenso a cama e as cobertas. Acostumei-me a passar sem elas. E dispenso também o banho. Não me agradam as servas que tens no palácio. Salvo se há uma velha servidora em que tu verdadeiramente confies. Se tiveres, eu consentirei que me lave os pés.

— Tenho uma velha ama, que me é extremamente fiel. Ela amamentou Ulisses e dele sempre cuidou. Está muito velhinha, mas irá atender-te. Vou chamá-la.

A velha ama atendeu e recebeu a ordem de Penélope:

— Euricléia, vai lavar os pés de Aéton, o estrangeiro. Ele conheceu o teu senhor Ulisses.

Euricléia mostrou-se enternecida, dirigindo-se a Ulisses, enquanto Penélope se retirava:

— Prontamente o farei, estrangeiro, tanto em atenção à minha senhora quanto à tua pessoa, que muito me faz recordar o meu senhor. É... nunca na minha vida vi ninguém tão parecido com ele. Me fazes lembrar meu Ulisses.

— Verdade? Pois já muitas outras pessoas me disseram a mesma coisa.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:33

A velha ama despejou água morna numa bacia de que ela se servia para a lavagem dos pés, mas Ulisses foi-se sentar no escuro, temendo ser reconhecido pela cicatriz que tinha na perna. Depressa, porém, Euricléia percebeu a marca dos dentes do javali que o mordera certa vez que fora visitar o avô Antólicos, tinha então dezoito anos. Autólicos, pai de sua mãe, era quem escolhera o nome de Ulisses, a pedido da ama. E prometera na ocasião dar ao neto um régio presente, quando ele chegasse à adolescência e fosse visitá-lo no palácio onde morava, no monte Párnassos. Na data precisa, Ulisses compareceu à presença do avô materno. Homenagearam-no com um lauto banquete, recebeu magníficas prendas e, no dia seguinte, foi convidado para uma caçada. Com amestrada matilha, galgaram a encosta do Párnassos, e o Sol já havia nascido quando chegaram à espessa floresta, cujo chão era coberto de folhas secas. Logo os cães farejaram o rastro da caça e foram acuar um enorme javali, escondido no meio da densa moita, que tentou fugir, mas, as fazê-lo, deu de frente com os caçadores e parou, eriçando as cerdas, os olhos brilhando ferozmente. Ulisses, de lança em riste, avançou para matá-lo. O javali, porém, num pulo, conseguiu mordê-lo acima do joelho, arrancando um bom pedaço de carne, sem, todavia, chegar a atingir o osso. Mesmo desequilibrado pelo impacto, Ulisses não errou o golpe; atravessado pela lança, a fera estrebuchou e morreu. Ulisses foi socorrido; estancaram o sangue abundante, prensaram a ferida com ervas e praticaram vários exorcismos. Depois carregaram o ferido para o palácio e lá o retiveram até que o ferimento cicatrizou, mas a marca da dentada não desapareceu.

E a velha ama balbuciou, ao passar a mão naquele ponto, sacudida pela emoção:

— Ulisses?! És tu, Ulisses, filho meu! Como não te reconheci logo?
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:33

Euricléia largou a perna do mendigo reconhecido, que foi de encontro à bacia de bronze, que esparramou a água. Sem respiração, os olhos se lhe turvaram de lágrimas, e, ao querer se virar para Penélope, a fim de chamá-la, Atena lhe desviou a atenção, e Ulisses tapou a boca da ama e sussurrou-lhe:

— Nem uma palavra, Euricléia, pois podes me perder. Ninguém deve saber que voltei, antes que eu me vingue dos intrusos. Caso contrário, se eu não vencer os pretendentes de minha esposa, aguarda-te o infortúnio como às outras criadas.

— Que dizes? Não sabes que o meu coração é firme como o ferro e a pedra? Guarda-te das outras criadas do palácio; dir-te-ei quais são as que te desprezam. Mas... como envelheceste se...?

Ulisses, com um gesto sutil, pediu silêncio:

— Confia nos deuses, minha ama. Quanto às criadas, nada me digas, pois as conheço.

E Euricléia compreendeu:

— Serei como uma muda e vou auxiliar-te como quiseres.

Euricléia preparou outro banho aos pés, visto que havia derramado quase toda a água. E, de pés lavados, Ulisses arrastou a cadeira para perto da lareira e puxou conversa com Penélope, que lhe disse:

— Bom forasteiro, encontro-me indecisa; não sei se devo continuar junto a meu filho, no caso de ainda viver meu marido, ou se tenho que resignar-me a desposar o mais nobre dos pretendentes, o que me ofereceu o presente mais valioso. Enquanto Telêmacos era criança, a sua pouca idade não me permitiu contrair novas núpcias; agora, no entanto, está na flor da idade e ele próprio deseja que eu parta, a não ser se assim, a sua herança será inteiramente dissipada.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:34

E, virando para o suposto Aéton, pediu-lhe:

— Explica-me um sonho, bom homem; pareces-me muito sábio. Tenho em casa vinte gansos e gosto de contemplá-los, quando comem o trigo atirado a água. Sonhei que uma águia das montanhas lhes torcia o pescoço, e vi-os espalhados pelo palácio, mortos, enquanto a ave de rapina voltava a voar. Embora sonhando, chorei e gritei. Pareceu-me que acudiam mulheres da vizinhança para consolar-me; de súbito, voltou a águia e, pousando na cornija, começou a falar com voz humana. Disse-me assim: “Consola-te, filha de Icários, isto é uma visão, e não um sonho; os pretendentes são os gansos; eu, a águia, sou Ulisses, vindo para destruir todos esses parasitas.” Foram essas as palavras da ave; acordei e corri a ver os gansos, mas todos estavam tranquilamente comendo. Poderias explicar-me este sonho? Parece óbvio, mas...

— Geralmente os sonhos são de difícil interpretação, senhora. Mas este me parece bom, e não há muito o que explicar. Ele certamente virá, e nenhum pretendente sairá daqui com vida.

— É, os sonhos são como espuma.

Suspirou, e continuou:

— Amanhã passarei por dura prova, Aéton. Tenho que escolher um, entre os pretendentes. Vou trazer para o salão o arco de Ulisses, que outrora pertencera a Êuritos e depois a Ífitos, seu filho. Aquele que mais facilmente retesá-lo e acertar a flecha no alvo será o meu marido. Com ele abandonarei este palácio, que sempre evocarei roída de saudades.

— Sob hipótese nenhuma, venerável rainha, atrases a prova! O sutil Ulisses chegará antes que qualquer deles ponha a mão no arco. Tenho certeza disso.

— Tua alentadora palavra me prenderia ao teu lado a noite inteira. Mas é hora de me recolher. Não me abandones. Dorme aqui no palácio, onde quiseres.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:34

A NOITE ANTECEDENTE

Ulisses, acompanhado de Euricléia, escolheu um canto do vestíbulo para dormir. Estendeu-se sobre um couro cru de touro e cobriu-se com uns velos de carneiros, que os pretendentes haviam sacrificado, e uma manta. Mas não pôde conciliar o sono, revolvendo no pensamento as dificuldades que teria de arrostar, mormente embaraçado com o número dos inimigos, que não sabia se poderia enfrentar apenas com Telêmacos ao seu lado. Além disso, de quando em quando, passavam criadas zombeteiras para lhe atormentar.

E o mendigo, encolerizado, bateu com a mão no peito para punir-se e disse para si mesmo:

— Paciência, meu coração, outras coisas muito mais duras suportaste! Não te lembras de quando o cíclope devorava os teus amigos? Paciência...!

Logo, não apareceram mais criadas, e pensava finalmente em dormir, mas os planos lhe vinham na mente; virava-se de um lado para outro, cobria os ouvidos, virava-se de novo, e o Sonho não vinha lhe cerras as pálpebras. Foi quando Palas-Atena mais uma vez compareceu como protetora. Tomara a forma de uma mulher alada e, pairando sobre a cabeça insone, deu-lhe tranqüilidade:

— Por que te atormentas? Estás em teu palácio, viste a fidelidade da esposa e viste também que teu filho é precisamente como desejavas que fosse. Não há razões, portanto, para ficares perturbado. Quanto aos teus inimigos, não penses no número deles. Cinqüenta vezes mais que fossem, não te venceriam. Os deuses são mais poderosos do que os homens e eu te ampararei até o fim. Dorme, portanto. Uma noite em claro não faz bem à saúde. Em breve ficarás livre de todos os males.

As palavras da deusa foram eficientes, e Ulisses entregou-se a Hipnos e Morfeus profundamente.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:35

Quanto a Penélope, esta acordou pouco depois de haver adormecido, e, sentando-se no leito, começou a chorar; no meio das lágrimas, dirigiu os seus rogos a Ártemis:

— Filha sagrada de Zeus, prouvera que neste mesmo instante a tua flecha me varasse o coração, ou me levasse uma tempestade às remotas margens do Oceano, antes de ter de ser desleal a Ulisses e casar-me com um homem inferior a ele! A dor é suportável quando se chora durante o dia, e se pode repousar durante a noite; a mim, no entanto, um deus me envia funestos pesadelos. Há um momento, tive a impressão de ter meu marido ao lado, soberbo como sempre foi, exatamente como no dia em que partiu para a guerra, e o meu coração se sentiu cheio de vida, pois supus que fosse verdade e não um simples sonho.

Penélope soluçou, e Ulisses, como um mendigo, ouviu-a. Tinha ele medo de ser reconhecido antes do tempo; assim, levantando-se, abandonou o palácio e, fora, rogou a Zeus que lhe enviasse um sinal favorável sobre os seus projetos. Apareceu, então, uma poderosa luz no firmamento e um fragoroso trovão ressoou sobre o palácio. No vizinho moinho real, uma moleira que estivera trabalhando durante a noite inteira, moendo cevada e trigo, interrompeu o mister e, olhando para o céu, exclamou:

— Como troveja Zeus, apesar de não se ver uma nuvem sequer! Seguramente, deve estar enviando uma sinal a alguém. Ó senhor dos deuses e dos homens, se quisesses satisfazer também o meu desejo, destruindo os malditos invasores que me obrigam a trabalhar dia e noite! Que comam hoje a última refeição!

Alegrou-se Ulisses com o favorável presságio e tornou a entrar no palácio.

Pouco a pouco, chegaram os ruídos matutinos; as criadas acenderam o fogo. Telêmacos, após vestir-se, correu à porta dos aposentos das mulheres e chamou a ama:

— Ama Euricléia, honraste o hóspede, com comida e leito, ou está deitado por aí, sem que ninguém zele por ele? Às vezes, minha mãe descuida os que mais são merecedores da sua atenção.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:36

— Não a censures, meu filho, que tua mãe não tem culpa. O forasteiro sorveu todo o vinho que lhe apeteceu e não pediu mais comida. Até negou o leito que lhe foi preparado, e foi, após muita insistência, que aceitou outro, pior.

Telêmacos saiu para a ágora, seguido dos seus cães, enquanto a ama mandava que as criadas fizessem os preparativos para o banquete da festa da Lua Nova. Umas colocaram tapetes cor de púrpura nas cadeiras, outras esfregaram as mesas com esponjas, ou limparam vasilhas e taças, enquanto outras, cerca de vinte criadas, iam buscar água na fonte. Também acudiram os criados dos pretendentes, que se ocuparam em partir lenha no vestíbulo. Eumeios trouxe três nutridos porcos mais gordos e saudou alegremente o hóspede da véspera.

— Salve, Aéton, meu amigo! Espero que tenhas passado uma noite tranquila! Como andas te tratando os pretendentes da rainha? Melhor ou pior que antes?

— Os deuses se encarregarão de tratá-los como eles me trataram, Eumeios!

Ulisses, levantando-se, começou a recolher os velos com que se cobrira e colocou-os sobre uma cadeira, e o couro de boi levou-o para o pátio. Porém, em seguida, Melântios, acompanhado de dois cabreiros, trouxe as cabras, que os rapazes ataram ao portal. Ao entrar, viu o mendigo deitado e, em tom zombeteiro, disse-lhe:

— Ainda andas por aqui, preso à porta, importunando os nobres, mandrião? Acho que só irás embora depois que experimentares uma sova. Tua mendicância está ficando insuportável. Não era melhor ires esmolar em outro lugar?

— Deixa-o, Melântios. Ele não está molestando ninguém.

Ulisses, sensatamente, nada retrucou, só sacudiu a cabeça. E aí quem chegou foi o bom Filétios, que cuidava do gado bovino, trazendo uma vitela e algumas cabras gordas. Passando por Eumeios, perguntou-lhe:

— Eumeios, quem é esse ancião recém-chegado à esta casa? A não ser pelas roupas, afigura-se um soberano pelo aspecto. Não é raro que a Miséria converta os reis em mendigos.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:37

O porqueiro, estranhando tal observação, tentou reparar o mesmo no velho Aéton, mas nada conseguiu ver senão um mendigo. E observou:

— Com o que ou com quem sonhaste hoje, Filétios?

Filétios nada respondeu, mas foi em direção de Ulisses para lhe falar. Saudou-o com a mão direita e disse amavelmente:

— Salve, amigo! Que no futuro tenhas melhores dias. Suei frio ao ver-te; com tristeza pensei que o nobre Ulisses talvez pudesse estar sofrendo igual infortúnio, coberto de molambos e mendigando o pão em terras estranhas, sem poder voltar. Pesa-me o coração ao pensar que assim seja. Pobre de mim se morreu! Seria uma tremenda desgraça! Há muitos anos, desde moço, que cuido do seu gado, que cresceu nas minhas mãos. Mas fico indignado com a dizimação que fazem eles, os atrevidos pretendentes. Há muito teria saído daqui para trabalhar em outro lugar, se não persistisse em mim a esperança da volta do meu senhor.

Assim foi a resposta do magnânimo Ulisses:

— Vejo, Filétios, o quanto és honrado e bondoso. Juro por Zeus que hoje, quando ainda estiveres aqui, poderás ver com os próprios olhos a chegada de Ulisses e o fim dos malfeitores que infestam o palácio.

— Oxalá pudesse acreditar em teu juramento, meu velho! Com que prazer ajudaria Ulisses com a força dos meus braços!

O ÚLTIMO BANQUETE

E, então, chegaram os pretendentes, tiraram os mantos e se prepararam para a costumeira refeição. As reses foram sacrificadas, assadas e repartidas. Os criados serviram o vinho, o porqueiro distribuiu as taças e Filétios o pão, em finíssimos cestos, enquanto Melântios cuidava de remexer o vinho. E iniciou-se o festim.

Telêmacos, astutamente, fizera Ulisses se sentar junto à soleira da porta, numa velha cadeira, e ele próprio foi servi-lo de vinho e vísceras assadas numa pequena mesa desconjuntada.

— Come e bebe em paz, meu amigo. Eu te protegerei de qualquer insulto.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:37

Até mesmo Antínous exortou os amigos a deixar tranqüilo o forasteiro, pois via muito bem que estava sob a proteção de Zeus; mas Atena instigou os outros a continuarem os motejos. Todos rangeram os dentes com a ousadia de Telêmacos. O fanfarrão de Samos, Ctésipos, homem gordo muito conhecido por seus crimes e muito confiante nas suas riquezas, não conseguiu ficar calado, protestando com um sorriso sarcástico:

— É admissível que este vil mendigo seja tratado como um de nós? Se é assim, também eu vou servi-lo, e lhe darei algo com que possa pagar a ama, que lhe tirou a sarna do corpo.

E, estendendo a manopla, apanhou de um cesto uma perna de boi e arremessou-a violentamente contra Ulisses, que, afastando ligeiramente a cabeça e sorrindo com desdém, evitou-a e ela foi estourar contra a parede. Telêmacos repreendeu o insólito agressor:

— Foi melhor mesmo que não o tivesses atingido, Ctésipos! Do contrário serias atravessado por minha lança, e teu pai, em vez do teu casamento, teria de tratar do teu funeral. Não admito que outros se permitam ousadias em minha casa; prefiro morrer a ter que viver presenciando tão vergonhosos feitos.

Calaram-se todos, diante de tão resolutas e inesperadas palavras. Finalmente, Agelaus, filho de Adamástor, levantando-se, disse aos demais:

— Telêmacos tem inteira razão. É uma vergonha ofender um hóspede dele. Mas, para evitar mais desentendimentos, devemos fazer com que Penélope se decida por um de nós. Enquanto houve esperança de que Ulisses pudesse voltar à Pátria, era compreensível que se entretivessem os pretendentes. Já não cabe, porém, dúvida de que nunca mais regressará. Por isso, persuade tua mãe a escolher o mais nobre, o mais digno. Ela cuidará da casa de outro homem e tu, Telêmacos, ficarás aqui com teu patrimônio.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:38

Telêmacos, erguendo-se, disse pausadamente:

— Minha mãe pode casar-se com quem quiser, que eu não faço nenhuma objeção. Pelo contrário, já faz tempo que lhe repito a mesma conversa, que escolha um entre vós. Jamais, no entanto, obrigarei ela a deixar este palácio.

Logo depois de falar, os pretendentes desataram em desenfreada gargalhada, mas que não traduzia alegria, pelo contrário, denunciava o travo de uma imensa indignação. E, de súbito, passaram da indignação à melancolia. Nisso, o adivinho Teoclímenos a tudo observava.

— Que vos sucede, infelizes? Tendes a cabeça envolta em trevas, os vossos olhos estão cheios de lágrimas amargas, e as vossas bocas exalam queixumes. Vejo as paredes orvalhadas de sangue, vejo que a sala e o vestíbulo estão repletos de sombras infernais e vejo que o Sol se oculta no céu.

Os pretendentes não tardaram em recobrar a alegria e novamente começaram a rir escancaradamente. Por fim, falou Eurímacos voltando-se para os outros:

— Deve estar louco esse estrangeiro, que, há pouco, se encontra entre nós. Tirai esse homem daqui! Ele não enxerga nada, muito menos sombras...!

Teoclímenos mesmo respondeu-lhe, levantando-se indignado de sua cadeira:

— Poupai trabalho, senhores. Tenho olhos, ouvidos e pés, e juízo perfeito. Vou-me, espontaneamente, pois o espírito me anuncia que está iminente a vossa desgraça.

Abandonando o palácio, rumou para a casa de Pireus, que o acolheu com benevolência.

Porém, os pretendentes continuaram seus gracejos à custa de Telêmacos:

— Ninguém entre os filhos da desta terra deve ter pior sorte com seus hóspedes do que tu, Telêmacos: um mendigo morto de fome e um louco que profetiza. Deverias percorrer toda a Hélade com eles e mostrá-los nos mercados, cobrando entrada.

Manteve-se calado Telêmacos, limitando-se a olhar para o pai, e aguardando um sinal.
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A Saga de Ulisses - Página 11 Empty Re: A Saga de Ulisses

Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:39

A MORTE DOS PRETENDENTES

Entrementes, Penélope, inspirada pela deusa Atena e acompanhada de várias ancilas, tomando uma chave de bronze com empunhadura de marfim, fora buscar à câmara, onde eram guardadas as preciosidades do rei, o arco com que Ulisses fora homenageado por um amigo, Ífitos, e que deixara no palácio, ao partir para Tróia, como cara recordação que não queria arriscar a perder. Após abrir a fechadura, fez correr os ferrolhos, abriu as portas e entrou, e pôs-se a procurar nas arcas as armas de seu marido; encontrou o arco e a aljava pendentes de um prego e pegou-os. Sentou-se, pôs o arco sobre os joelhos e, vencida pela dor, desatou a chorar ruidosamente. Serenando, enxugando as lágrimas, se levantou e pôs as armas numa caixa trazida pelas criadas. Em seguida, dirigiu-se para o salão, levando o arco e a aljava cheia de flechas. Deteve-se junto de uma das colunas, que sustentavam o teto, e falou:

— Aqui estou, altivos pretendentes! Comerdes e beberdes sem interrupção, durante longo tempo, à espera da minha decisão de escolher um de vós para marido. Hoje é chegado o dia de me decidir. Trago nas mãos o arco e a aljava do grande Ulisses. Aquele que mais facilmente retesar o arco e melhor acertar uma flecha no alvo que meu filho vai marcar, passando antes a flecha pelo olho de doze achas postas em fila, o receberei como esposo e abandonarei este palácio, que jamais tornarei a ver, exceto em sonho.

Em seguida, Penélope ordenou ao porqueiro que apresentasse o arco e as flechas aos pretendentes contendores. Chorando, Eumeios pegou as armas da caixa e as ofereceu aos pretendentes. Também o boiadeiro chorava, e aquilo enfureceu Antínous:

— Imbecis! Por que aumentais a dor da nossa rainha com as vossas lágrimas? Ide comer ou chorar lá fora. E nós, preparemo-nos para tão difícil prova. Não me parece fácil vergar este arco. Entre nós não deve haver ninguém que se compare a Ulisses; lembro-me bem dele, apesar de ser apenas um garoto, quando ele partiu para Tróia.
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A Saga de Ulisses - Página 11 Empty Re: A Saga de Ulisses

Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:39

Antínous assim falou com o propósito de intimidar os demais, já que julgava-se o mais forte e tinha a certeza de que vergaria o arco e atravessaria os olhos das achas.

Telêmacos levantou-se para dizer:

— Creio que Zeus me privou realmente do juízo. Minha mãe declara-se prestes a deixar esta casa, seguindo um dos pretendentes, e continuo a rir. Vamos, rapazes, competireis por mulher sem igual na Hélade! Já o sabeis, e não preciso tecer louvores a minha mãe. Portanto, vergai o arco, e não hesitai. Eu também tentarei, e se conseguir vencer, juro que minha mãe não sairá deste palácio.

Antínous teve que rir. Então, tirando a capa de púrpura e desfazendo-se da espada, Telêmacos marcou o alvo, traçando um sulco no chão, e, com a ajuda de Eumeios, cravou e alinhou as achas uma do lado da outra; depois, tomando distância, ensaiou retesar o arco por três vezes, arrancando risos sarcásticos dos demais. E o teria conseguido, inspirado por Atena, se não lhe fosse o destino, dado que era digno filho do grande Ulisses. Mas, ao tentar pela quarta vez retesar o arco, Ulisses fez-lhe um sinal para se conter, e Telêmacos desistiu e deu a explicação:

— Deuses! Sou moço demais para tal façanha. Que os nobres concorrentes deem começo à prova.

Em seguida, apoiou o arco e a flecha no batente da porta, sem se incomodar, e voltou calmamente a sentar-se.

Ergueu-se Antínous com ar de triunfo:

— Vamos lá, amigos! Começai os de trás, da esquerda para a direita, na ordem em que o copeiro serve o vinho!

E os homens formaram fila para a disputa. Liodes encabeçou-a, pois costumava sentar-se numa das extremidades da mesa, perto da grande vasilha. Predizia o futuro observando as entranhas dos animais imolados, e era o de melhor índole entre eles, condenava-lhes o procedimento, mas não conseguia se afastar deles. Pegou o arco, tentou dobrá-lo, mas feriu as mãos delicadas e ociosas.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:40

— Não é justo! Não sou arqueiro e não auguro sucessos. Passo-o adiante. De nada valeu toda a riqueza que trouxe comigo e destinei a esta casa...!

Antínous protestou:

— Não nos ofendas, Liodes. Não penses que todos te sejam semelhantes. Hei, Melântios, traze um pouco de gordura de carneiro para amaciar a corda do arco! Assim será mais fácil.

Assim o fizeram, mas não deu resultado. Os pretendentes iam fracassando, sucessivamente, até que, então, só restaram dois: Antínous e Eurímacos, que eram precisamente os mais fortes e, por isso, confiantes, haviam ocupado o fim da fila.

Enquanto desfilavam os incapazes, Ulisses foi para perto do vestíbulo e discretamente perguntou a Eumeios e Filétios:

— Meus amigos, gostaria de dizer-vos algumas palavras, já que confio em vós, caso contrário, prefiro calar-me. Se Ulisses voltasse, por uma intervenção divina, poderia ele contar com vossa ajuda ou ficaríeis ao lado dos pretendentes? Falai francamente.

Respondeu Filétios:

— Ó Zeus! Ah, se me fosse dado ver a realização desse desejo, se me fosse dado ver o grande rei de volta! Me verias como o melhor dos guerreiros!

E acrescentou Eumeios:

— Ora, ficaríamos com ele, com toda certeza. Nada melhor poderia se suceder senão ver de novo meu mestre e senhor...

— Ótimo! Olhai bem para mim, mas sejais discretos.

Os dois o olharam atentamente, e Ulisses continuou:

— Sou Ulisses, que volta depois de vinte anos. Comprovei que, entre os meus servos, apenas vós fazíeis votos pelo meu regresso. Certo, haverá uns poucos mais que o desejavam, mas não os conheço ou não os tenho visto. Preciso de vossa ajuda agora.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:41

Ambos olhavam-nos espantados, pois começavam a vê-lo com outros olhos, pretendendo reconhecê-lo. E Ulisses, num aceno, deu-lhes uma ordem:

— Vinde comigo e sereis recompensados. A cada um darei mulher, terra e casa própria. E felizes vivereis perto de mim e de Telêmacos, que vos tratará como irmãos. Se precisais mesmo de uma prova de que sou Ulisses, olhai para esta cicatriz. É a marca dos dentes do javali, naquela caçada no monte Párnassos. Lembrai-vos?

Ulisses suspendeu os farrapos e mostrou-lhes a cicatriz. Eles, empolgados pela alegria, choraram, abraçaram e beijaram Ulisses, e ele fez o mesmo. E ficariam em estado de efusão, se Ulisses não os contivesse:

— Sejai discretos, meus amigos, deixai de chorar! Não quero que alguém nos descubra! Vamos voltar, mas um por vez. É certo que eles não me passarão o arco, por isso, Eumeios, toma-o dos pretendentes e passa-o tu mesmo a mim. Depois manda as escravas saírem do salão e trancarem as portas; orientai para que, se ouvirem barulho de luta, não entrem. Pelo contrário, que vão juntar-se a Penélope em seus aposentos.

Depois disse a Filétios:

— Quanto a ti, meu fiel Filétios, que quase me reconheceste, fecha as portas do pátio, mas, para maior segurança, amarra os ferrolhos com corda.

E voltou ao salão, indo-se sentar perto do pórtico. Eurímacos aquecia o arco no fogo. Depois, tentando manejá-lo, não conseguiu e se pôs indignado:

— Ah! Não é por causa das núpcias que me enfureço. Muitas outras mulheres há na Hélade. Mas sim por ser em força tão inferior a Ulisses, se é que ele já conseguiu retesar este arco alguma vez! É intolerável! Nossos netos rirão de nós!
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:42

Antínous bateu-lhe no ombro:

— Não desanimes, Eurímacos. Hoje é o dia consagrado ao deus dos arqueiros e, seguramente, ele se considera ofendido com a nossa exibição. Descansemos por hoje, para recomeçarmos amanhã. Bebamos um pouco mais; as moças poderão permanecer na sala. Amanhã oferecemos um sacrifício a Apolo e terminaremos a competição mais descansados.

A aprovação foi geral. Lavaram as mãos e mandaram servir o vinho. Mas, aos primeiros goles, Ulisses falou-lhes:

— Isso, descansai hoje, pois amanhã é de crer que Apolo, o que fere de longe, vos conceda a vitória. Entretanto, deixai-me experimentar o arco. Gostaria de apurar se ainda possuo o vigor com que me distingui na mocidade.

Houve grande irritação pelo que julgavam um atrevimento do estrangeiro. E Antínous replicou:

— Forasteiro, ou perdeste o teu juízo ou o vinho te subiu à cabeça. Se chegares a vergar o arco, pagarás caro a ousadia.

Penélope, porém, defendeu o com meiguice:

— Antínous, seria injusto excluir Aéton da competição. Temes que, se conseguisse retesar o arco, me levaria por esposa? Dificilmente poderá ele próprio ter essa esperança. Não temei vós por isso. Não é possível ser insensato a ponto de se ter tal ideia.

Eurímacos defendeu o amigo:

— Não é isso que tememos, rainha, mas os comentários do povo da Hélade: não gostaríamos se dissesse que os pretendentes de tão formosa criatura não passam de varões inúteis, incapazes de manejar o arco, e que no derradeiro instante, um mendigo vergou-o sem muito esforço.

Penélope voltou a observar:

— Aéton não é tão desprezível como se vos afigura. Vede bem, vede como é robusto e aparentemente elegante. Lhe entregai o arco. Se conseguir vergá-lo, de mim só obterá um manto e uma túnica, uma lança e uma espada, e sandálias para os pés; depois, seguirá seu caminho.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:42

E Telêmacos entrou em cena:

— Minha mãe, no que diz respeito ao arco, nenhum aqueu deve dar ordens senão eu. Este arco, no momento, é meu e o darei ou o recusarei a quem bem eu quiser. Vou permitir que o estrangeiro maneje o arco e não admito oposição. Mas deves retirar-te para os teus aposentos com as tuas servas, pois estas coisas devem ser resolvidas pelos homens.

Ela, muito admirada e estupefata com o ardor do filho, saiu seguida das escravas.

O porqueiro tomou o arco e levou-o por entre os contendores, quando o ameaçaram:

— Aonde vais com essa arma? Estás louco? Queres que te despedacem os teus próprios cães?

— Entrega o arco ao estrangeiro, paizinho!

O pastor, amedrontado, deixou tombar o arco. No entanto, Telêmacos ordenou-lhe com voz ameaçadora:

— Traze o arco, velho! Aqui só a um homem deves obedecer, se não mandarei que tu sejas apedrejado! Ah, se me fosse dado enfrentar esses homens como posso enfrentar-te...!

Os convivas, gargalhando ruidosamente, não se opuseram mais, e Eumeios, não perdendo tempo, entregou o arco a Ulisses e correu à procura de Euricléia para que ela fechasse as portas e mantivesse as escravas trancadas nos aposentos da rainha, houvesse o que houvesse. Por seu turno, Filétios saiu precipitadamente para fechar as portas do pátio e, logo voltando, foi-se postar num canto, não tirando os olhos do seu senhor, que permanecia sentado.

Ulisses, de posse do arco, examinou-o atentamente para ver se sofrera algum dano. Diziam os pretendentes:

— Parece que o homem entende de arcos...

— Vai ver que tem um parecido, ou desejará ter um.

— Vede com que desembaraço o gira o vagabundo!
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:43

Quando constatou que estava em perfeitas condições, com extrema facilidade apoiou-o e retesou-o, causando espanto aos demais, e, com a mão direita, fez vibrar a corda esticada e o som que ela produziu parecia a voz da andorinha. Os homens empalideceram e se entreolharam, enquanto Zeus, do alto do Olimpo, fazia ribombar um trovão. Ulisses, então, mais do que depressa, sacou da aljava sobre a mesa uma flecha e colocou-a no entalhe adequado; mesmo sentado, dobrou inteiramente o arco e a flecha zunindo foi certeiramente passar por todos os olhos das achas e, como que por magia, atingir o alvo. E observou:

— Vê, Telêmacos, eu não te trouxe a vergonha ao palácio. Continua a mesma a minha força, apesar das zombarias. Agora, porém, é tempo de darmos de cear aos aqueus; depois, virá a música e a dança, que constituem os ornamentos do banquete.

Todos os convivas estavam perplexos. Ulisses fez um sinal a Telêmacos, que, armado de lança e espada, rápido, correu para junto dele.

O decidido Ulisses, de um salto, desfez-se dos andrajos que mal lhe cobriam os braços, e atingiu o limiar do pórtico e berrou a plenos pulmões:

— Esta prova eu já venci! Agora vou escolher outro alvo que nenhum arqueiro ainda acertou, e espero não errar!

Nesse momento, a deusa Atena fazia voltar o seu semblante natural, que os pretendentes mal podiam entender. Num passe de mágica, Aéton tornava-se mais jovem e robusto, mas não reconheceram-no.

Antínous começou a rir e, descuidado, levou à boca uma taça de vinho. Não passava por sua mente que um homem sozinho, por mais bravo que fosse, ousasse se levantar contra toda aquela hoste. Mas enganou-se. Uma flecha atravessou-lhe o pescoço e a ponta saiu pela nuca, e ele, jorrando sangue pelo nariz, tombou, derrubando a mesa que estava na sua frente.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:44

Ao vê-lo cair, os pretendentes levantaram-se e, tumultuosamente, correram à procura das armas. Logo viram que não havia nenhuma nas paredes. Aturdidos, por um momento até supuseram que Antínous fora morto casualmente pelo estrangeiro e incresparam-no colérico. Mas Ulisses com voz terrível gritou:

— Eu sou Ulisses, cães malditos! Eu jamais voltaria? Pois cá estou! Dissipastes meus bens, corrompestes meus escravos e desrespeitastes minha esposa? Pois recebereis o merecido castigo!

O medo apoderou-se dos pretendentes, que olhavam em redor, procurando um jeito de escapar. Apenas Eurímacos conseguiu falar:

— Calma, estranho! Se na verdade tu és Ulisses, tens razão para vingar os crimes aqui praticados. Mas o comandante de todos era Antínous. Não pretendia apenas a mão de Penélope, mas também assassinar Telêmacos traiçoeiramente e se apoderar do trono de Ítaca. Agora está morto, com justiça. Perdoa aos teus compatriotas, e reconciliemo-nos. Poderemos indenizar todas as perdas, pagando, cada um, vinte vezes mais do que depredamos.

— Não me fales em indenizações, Eurímacos! Se me désseis tudo o que tendes, não ficaria satisfeito. Eu quero as vossas vidas. E nenhum de vós escapareis!

Tremiam os joelhos e o coração dos pretendentes. Porém, Eurímacos ainda gritou:

— Amigos, este homem não nos perdoará! Desembainhemos nossas espadas e lancemo-nos todos contra ele. Poderemos desalojá-lo do pórtico e pedir socorro à cidade, antes que ele esgote as suas flechas.

E, de espada em punho, Eurímacos avançou contra Ulisses, que o deteve com uma flechada mortal, atravessando-lhe o fígado. Ele rolou pelo chão, arrastando na queda a mesa com os pratos e taças, e batendo com a testa no piso. Com um só golpe, arrojou para longe a cadeira, e foi essa a sua última convulsão.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:44

Anfínomos também investiu contra Ulisses, envidando esforços para abrir caminho com a espada. Desta vez foi Telêmacos que antecipou-se e cravou-lhe a lança no peito, que lhe saiu nas costas; mas não se abaixou para arrancar a arma, receoso de que os inimigos o alcançassem, indefeso, quando estivesse curvado sobre o moribundo e, célere, voltou para junto do pai, no umbral.

Temendo que, ao esgotar as flechas, ficasse em posição inferior aos pretendentes, Ulisses pediu ao filho que corresse a buscar as armas escondidas. Telêmacos, num instante, voltava com quatro escudos, quatro elmos e oito lanças, mas, na precipitação, deixou a porta aberta. Eumeios e Filétios, equipados, puseram-se ao lado dos seus senhores.

Enquanto teve flechas, Ulisses manteve os inimigos à distância, matando uns tantos deles. Mas um dos pretendentes, vendo a porta aberta que dava acesso ao saguão, gritou:

— Amigos, valos fugir pelo saguão! Pediremos ajuda!

Mas retrucou Melântios:

— Não sejas tolo! A porta e o corredor são muito estreitos, e por lá só passa um homem por vez! Basta que um deles se coloque na frente, para impedir que fujamos. Vê, a porta do vestíbulo está aberta. Vamos buscar armas!

Matreiramente escapuliram alguns com Melântios e foram à câmara buscar armas; e trouxeram doze elmos, doze escudos e doze lanças, que rapidamente distribuíram entre os pretendentes. Ulisses se alarmou:

— Meu filho, fomos traídos pelas mulheres! O miserável Melântios arranjou armas.

— Perdão, pai! Foi culpa minha. Esqueci de fechar a porta quando entrei.

E Melântios esgueirou-se novamente à cata de mais armas. Eumeios viu-o e pediu a Ulisses:

— Queres que me apodere desse canalha?

— Sim. Leva contigo o boiadeiro. Amarrai seus braços e pernas e pendurai-o por uma corda. E esperai até que morra. Depois, podeis retornar.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 18/3/2021, 18:46

Eumeios e Filétios foram, então, no seu encalço. Ao pisar na soleira, trazendo numa das mãos um elmo e na outra um velho escudo, foi agarrado e atirado ao chão. Amarraram-no bem forte, pelos pés e pelas mãos, e o deixaram pendurado numa viga.

— Arranjamos-te uma excelente cama, amigo! Dorme tranquilo!

Sem dar a menor atenção aos seus gritos, retornaram para junto de Ulisses. De repente, uniu-se-lhes outro combatente: Atena, com o aspecto de Mentor. Ulisses reconheceu-a, com enorme alegria. Os pretendentes perceberam a chegada do reforço, e Agelaus, encolerizado, gritou:

— Aviso-te, Mentor, não te juntes a Ulisses, pois do contrário mataremos teu pai, teu filho e a ti, e destruiremos tua casa!

Irritou-se Atena com tão arrogantes ameaças, e, instigando Ulisses, murmurou-lhe:

— Meu amigo, tenho a impressão de que o teu espírito não é mais o que era, há dez anos, diante dos muros de Tróia. Foi por um ardil teu que a cidade caiu, e agora que se trata de defender o teu palácio, no teu próprio País, hesitas?

Falou para incitá-lo, pois não pensava em lutar por ele. De súbito, tomando o aspecto de uma andorinha, pousou numa trave do teto, enegrecida pela fuligem. Os pretendentes, com alguns já armados, lançavam ameaças, e Agelaus tomou a frente:

— Mentor desapareceu! Fanfarrão! Avante, amigos! Somos muitos contra quatro apenas. Lancemos nossas lanças ao mesmo tempo!

Assim fizeram, sem molestar nenhum dos quatro, graças ao poder de Atena, disfarçada. A lança de um deles foi cravar-se no batente da porta; as dos outros cravaram-se na parede.
Ulisses, então, gritou:

— Apontai e atirai!
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