A Saga de Teseu

— Por isso mesmo só me resta morrer!

— Essas palavras não são próprias de um herói! Ensina-me algo que eu possa aproveitar parar quando eu estiver prestes a ser um!

Héracles ficou em silêncio, mas replicou:

— Que eu hei de fazer senão morrer? Viver, eu? Um homem marcado, que todos reconhecerão e de quem todos dirão: “Olha! Lá vai aquele que matou seus filhos!” Em toda a parte e a todo o momento estarei perante os meus carcereiros, com os seus aguçados escorpiões da língua prontos a ferrar!

— Mesmo assim! Sofre e sê forte! Serve de modelo para mim! Vens para a casa de meu avô Piteus, e tudo receberás! Ou segue para Atenas, onde reina meu pai Egeus, e pede-lhe a purificação. Nada te faltará, tenho certeza.

Seguiu-se um longo silêncio. Por fim, Héracles pronunciou palavras lentas, pesadas:

— Assim seja. Serei forte e esperarei a Morte a seu tempo!

Então, Héracles deixou Tebas e foi com o jovem Teseus para Troézen, na casa de Piteus. Lá, depois de ser purificado de seu crime, passou um tempo a ensinar Teseus algumas coisas úteis, como a arte da guerra. Em troca, Teseus, já demonstrando dotes de um excelente pensador, rejeitava a ideia de que um indivíduo poderia ser culpado de homicídio quando agisse inconscientemente, nem concordava com o conceito de que aqueles que o auxiliassem fossem também profanos. Os Trezenos concordavam em hospedá-lo com todas as honras, mas Héracles, ele mesmo, porém, não compreendia tais princípios, não conseguia abranger a sua extensão e profundidade; apenas sentia, nada mais. Tinha assassinado seus filhos, por conseqüência estava profanado e profanaria aqueles com quem convivesse. Merecia bem ser injuriado e desprezado por todos. Por isso, condenou-se ao exílio e foi-se esconder nas montanhas, em lugar obscuro, onde mergulhou em profundo sono.

Então, desnorteado, foi para o reino de seu outro sogro e amigo, o rei Téspios, que procurou ajudá-lo.

Quanto aos filhos que morreram, devido à fúria do próprio pai, a eles foram prestadas honras em seus túmulos como heróis e chamaram-lhes Calcoares, “os que sofreram uma maldição de bronze”, mas os que o homenageavam não gostavam de contar a história da morte desses infelizes.

HÉRACLES E A CAPTURA DO TOURO DE CRETA

Passaram-se alguns anos desde que Heracles foi mandado ao rei Euristeus para cumprir a punição pelo seu crime e servir a ele como vassalo. Arbitrariamente, Euristeus, que era seu parente, lhe impôs inúmeras tarefas impossíveis para qualquer homem comum. E o primeiro de seus árduos trabalhos foi matar o Leão de Neméia, e obteve o auxílio de um jovem chamado Nireus. Em seguida, teve que dar cabo da Hidra de Lerna, e teve seu sobrinho Íolas como acompanhante e escudeiro. Nessa empresa, foi ferido gravemente. Após, foi mandado por Euristeus a capturar a Corça dos Pés de Bronze, na intenção de que Héracles tivesse que enfrentar a deusa Ártemis. Mais uma vez alcançou a vitória, com a permissão da deusa. Com o objetivo de cumprir mais um trabalho, Héracles foi enviado a capturar vivo o Javali do Erimantos, e no caminho teve que bater-se em duelo e derrotar um poderoso bandido chamado Sauros. Ao retornar, mais uma vez vitorioso, partiu para Esparta a fim de livrá-la de um tirano, Hipocóon, e devolver o trono ao seu rei legítimo, Tíndaros, que encontrava-se exilado com seu irmão Icários em Cálidon. Em seguida, com a intenção clara de ser humilhado, Euristeus o enviou ao rei Áugias para que este exigisse do herói a limpeza dos seus estábulos em um único dia. Héracles conseguiu cumprir essa difícil tarefa desviando o curso dos rios Alfeus e Peneus através de um dique. Além disso, empreendeu contra o rei Áugias duas expedições bélicas auxiliado pelos árcades. Após sair-se vitorioso, instituiu na Élide os Jogos Olímpicos. Cumprindo mais um trabalho imposto pelo rei de Micenas, Héracles foi incumbido de dar cabo dos terríveis gansos do lago Estínfalos, na Arcádia.

Héracles e Íolas, enfim, retornaram à região de Micenas, onde haviam levantado um acampamento. E não demorou para que Euristeus soubesse do retorno de Héracles. Ele o esperava. Ao saber que o herói havia espantado as Estinfálides, Euristeus mordeu o beiço. E Héracles compareceu.

— Minha ordem não foi essa!

Euristeus ergueu-se furiosamente do trono.

— Minha ordem foi para que as destruísses! Se apenas as espantaste, logo as teremos lá outra vez.

— Não há perigo, Majestade. Espantei-as de lá, mas foram mortas. Usei címbalos para afugentá-las, desabrigando-as.

— Mortas?! Que címbalos?

— Os címbalos com que o deus Hefaístos presenteou a grande deusa Atena.

— E como os obtiveste?

— Do Olimpo, mandados pela própria Atena por intermédio de um mensageiro.

Euristeus olhou para Eumolpos, que se posicionava bem ao lado do trono. Héracles era freqüentemente protegido por Zeus e Atena, e Euristeus sentia-se desprivilegiado por isso. Euristeus, levantando-se do trono, em silêncio, caminhou de um lado para outro. Conhecendo o poder da deusa Atena, teve medo que, na fúria de proteger Héracles, acabasse ele mesmo morrendo. Tinha muito que refletir.

— Bom, se é assim, aparece aqui amanhã. Vou pensar no assunto e ver qual o novo trabalho que terás de realizar.

Héracles retirou-se. E, naquela noite, Eumolpos recebeu, em sonhos, a visita de Héra, que o informou de seus planos contra o filho de Zeus. No dia seguinte, Héracles voltou a Micenas e compareceu perante o rei, cujo semblante era o de satisfação. Mais alegre e confiante, tinha novas idéias, pois Eumolpos lhe revelara os planos de Héra:

— Há uma coisa que talvez Héracles não consiga realizar: a destruição do Touro de Creta.

Euristeus sabia que em Creta haviam touros, os mais bravos, animais muito comuns naquele país.

— Que touro é esse, Eumolpos? Há tantos...

— Ah, Majestade, é um touro gigantesco que está tomado de loucura. Um touro louco! Se um simples cão hidrófobo é o que sabemos, imagine-se um touro louco! Impossível que desta vez Héracles saia vitorioso.

— Eumolpos, para quem já enfrentou o Leão de Neméia, a Hidra de Lerna e o Javali do Erimantos...

— Mas esse touro é especial, Majestade. E, como sabes, um animal enraivecido pela loucura é incontrolável. Dizem que assola campos de trigo, derruba choupanas e celeiros e assusta o povo daquela terra.

— Não tenho a intenção de ajudar o rei Minos, mas, se valer a pena... Mas não há um certo Minotauro naquela ilha?

— O touro, Majestade, o touro...

O rei Euristeus sorriu diabolicamente e começou a esfregar as mãos, as mesmas que receberam o herói, como um irmão ao outro, o que surpreendeu Héracles, por não vê-lo à distância. Algo cheirava mal.

— Às ordens de Vossa Majestade! Aqui estou para receber a missão que haja por bem confiar-me.

Euristeus, com um riso mau na boca, ordenou:

— Quero que tu vás à ilha de Creta trazer-me vivo o touro que atormenta os cretenses. Mas escuta bem: nada de truques nem de armas. Exijo o touro vivo, ileso e em perfeitas condições de saúde!... Isso é tudo.

Héracles sentiu vontade de falar meia dúzia de desaforos àquele reizinho chato, mas preferiu virar as costas e ir ao encontro de Íolas. Estava aborrecido, porque, depois de ter tido um período de loucura, viera-lhe um incoercível medo aos loucos. Mas deveria cumprir tal tarefa. E os heróis saíram de Micenas e puseram-se a pensar no que deveriam fazer e providenciar.

Esse touro havia aparecido depois que o rei Minos disse aos cretenses:

— Eu sou o rei desta ilha. Que os deuses me mandem um sinal que o prove!

Enquanto ele falava, os cretenses viram um touro branco como a neve e com chifres de ouro chegar nadando desde o mar. Mas, em vez de sacrificar aquele belo animal aos deuses, como deveria fazer, Minos guardou-o para si e sacrificou um outro em seu lugar. Zeus puniu-o, fazendo o touro fugir e criar problemas pata toda Creta. Esse era o mesmo touro que, unido à rainha Pasífae, teve um filho, o Minotauro.

No dia seguinte da estadia de Héracles e Íolas em Micenas, o herói seguiu sozinho para o porto de Árgos, onde tomou um pequeno barco cretense que ia rumo a Creta, uma ilha ao sul do Peloponeso, cuja capital era Knossos. Baseado nos tripulantes, seus habitantes eram morenos, diferentes da nação helênica, de origem nórdica, e usavam o cabelo cheio de ganchinhos nas pontas.

— É um povo infeliz...

Disse um dos marujos, ao chegarem próximos da costa cretense. Héracles perguntou:

— Por causa do touro louco?

— Sim. Aquele gigantesco touro branco, com chifres de ouro e cascos de bronze já foi símbolo do país, mas agora investe contra as pessoas e animais, matando tudo e a todos que encontra pelo caminho. Isso quando não se põe a destruir as colheitas trazendo fome ao povo...

E outro marinheiro observou:

— Os deuses precisam ajudar esse povo. Muitos heróis já foram mortos tentando apanhar o monstro ou matá-lo. Se pelo menos Héracles pudesse ajudá-los...

Eles não o reconheceram, por isso aproveitou para colher mais informações:

— O touro é tão perigoso assim?

— O que tu achas, se além de tudo ele solta fogo pelas narinas? Seu hálito quanto pode até cozinhar quem está em sua frente!... Vivemos num mundo cercado de monstros...

— De onde surgiu esse monstro?

— Fala baixo, senhor...

— Alcides.

— Alcides, fala baixo. Foi presente de Poseidon, o rei dos mares, ao velho rei Minos, filho de Zeus e Europa. Isso foi há duas gerações. O atual rei, seu neto, que também se chama Minos, é filho de Licastos, e há pouco tinha o animal sob controle. Sabe, antigamente, todos os anos, o velho Minos sacrificava a Poseidon o mais belo touro de sua manada. Certa feita, o vaidoso rei foi à praia e pediu a Poseidon que lhe enviasse o ser mais perfeito que jamais se tinha visto, porque queria fazer um sacrifício em honra ao deus dos mares. Pois mal acabara de falar, quando viu, saindo do meio das espumas, um belíssimo touro tão alvo quanto as próprias espumas. Diante daquele animal tão maravilhoso, Minos ficou com dó de matá-lo e, no ritual daquele ano, sacrificou outro touro a Poseidon, o que provocou a ira do deus, enlouquecendo sua criação.

— Desde aquela época o touro anda solto?

— Não. Ele esteve sob controle, por um bom tempo, até o atual rei assumir o trono. A rainha Pasífae, uma mulher devassa, decidiu ter um filho com o belo animal. Bem... depois, Poseidon o enlouqueceu.

— Um filho com o touro? O que nasceu?

— Dizem que seu nome é Astérios. Mas todos o conhecem por Minotauro, um ser metade touro, metade homem. Ninguém que venha a causar problemas, já que o rei o alimenta. Mas o povo teme pelo que ainda venha a ocorrer...

Houve pequena pausa, e o marinheiro continuou:

— Aí, o touro fugiu e, tomado pelo acesso de loucura, uma vingança de Poseidon, começou a despedaçar tudo o que encontrava pelo caminho. Depois disso, nunca mais houve sossego.

Coçando o queixo, Héracles suspirou e queixou-se:

— É... não vai ser fácil...

— Como?

— Não, nada. Estava só pensando...

Héracles, descendo do barco, pediu para um pescador:

— Onde encontro a cidade de Knossos?

— Segue a trilha.

O rei era um sujeito muito orgulhoso e, à modo cretense, usava o cabelo cheio de ganchinhos. Usava uma roupa diferente, como a dos bárbaros, ou algo assim. Minos olhou Héracles de alto a baixo e caiu na risada depois que o herói lhe disse que seria capaz de prender o touro.

— Está bem, rapaz! Tu queres levá-lo para a tua terra, não queres? Pois então leva, se fores capaz. Espero que consigas e faças bom proveito, mas estou apostando que vais acabar como os outros que também tentaram. Se tu morreres, fica sabendo que não vou me importar, já que não faço parte da tua raça. Um herói a mais, um herói a menos, não fará a menor diferença!

Héracles nada respondeu, apenas fez reverência. E saiu. Foi para a parte oriental da ilha aonde, segundo notícias, o touro andava solto, bem próximo de um rio.

Começou os preparativos. E, num determinado momento, teve a sensação de ouvir um mugido diferente... a de um touro enlouquecido. Héracles, nervoso, apressou-se a procurar um ponto ideal para capturá-lo e libertar a ilha daquele perigo. Héracles teve que fabricar cordas com laços apertados, pois iria precisar.

De repente, vieram-lhe ao encontro alguns homens, em disparada e gritando desesperadamente:

— O touro louco! O touro louco! O touro louco está devastando a nossa aldeia, destruindo nossas casas...

— Por que não o matam?

— Impossível!... É forte demais e age como se estivesse possuído!... Foge tu também, homem, volta para tua terra, pois esta está amaldiçoada!

— Pois saibas, homem, que sou Héracles, e vim aqui especialmente para livrar esta terra do monstro.

Os homens pasmaram, ficaram paralisados. Não havia lugar cercado por aqueles mares cujos habitantes não conhecessem o grande herói — e se ele estava em Creta, já não havia mais motivos para fugir. E um deles saiu correndo para avisar aos outros.

— Héracles está aqui, vindo para capturar o touro!

— Héracles?! O filho de Zeus? Onde está ele?

— Segui-me!

E toda aquela gente correu em direção da praia. Foram conhecer aquele homem famoso. Estavam salvos, certamente!...

— Povo de Creta! As vossas desgraças chegaram ao fim. Vim da Hélade com fim expresso de agarrar vivo este touro que assola estas paragens. Já tenho tudo pronto; interrompei vossa fuga. Amanhã mesmo estareis reconstruindo os vossos lares. Bem sabeis que destruí o Leão de Neméia, que matei a Hidra de Lerna. Também sabeis que capturei o Javali do Erimantos e a Corça dos Pés de Bronze, e ainda desviei o curso do Alfeus e do Peneus para limpar as famosas cavalariças do rei Áugias. E, como sabeis, há pouco tempo afugentei e acabei com as aves carnívoras do Estínfalos. Este será um dia memorável, pois subjugarei o touro louco de Creta...

A multidão começou a gritar em júbilo. As mulheres choravam de alegria, abraçando seus filhos, enquanto seus maridos dançavam num delírio de contentamento.

De repente, silenciaram-se as vozes... Ouviram um mugido pavoroso. O monstro vinha na direção da praia, estabelecendo-se o pânico. As mulheres, esquecendo-se da presença de Héracles, debandaram com as crianças e muitos homens fizeram o mesmo. Só os mais corajosos e inteligentes ficaram ali junto de Héracles, pois estariam mais seguros.

O herói, com o laço nas mãos, deu ordem para que as pessoas se afastassem e entrassem nas águas do mar. Logo que o viu, começou a girar o laço no ar. E o touro investiu contra ele, mas Héracles desviou-se e atirou o laço, colhendo-o pelas ancas. Mas a força do animal fê-lo largar a corda. O touro, por várias vezes, tentou colher o herói pelos chifres, sem sucesso. E cada vez ficava mais furioso, até cair o laço no chão. O herói correu apanhá-lo e, girando-o novamente, lançou-o, e dessa vez colheu-o pelos chifres. E Héracles correu em direção de uma árvore e deu uma volta no tronco. Estava preso, e então o filho de Zeus começou a puxá-lo, apoiado pelo tronco e usando-o como se fosse uma roldana. Desviava-se das línguas de fogo e das marradas do touro e ia estirando o laço, de modo que o touro fosse ficando cada vez mais peado, mais próximo do tronco. Breve, o touro se viu com a testa colada ao tronco, que ficou entalado entre seus chifres.

O júbilo foi geral, enquanto bufava o animal, babando e urrando, fazendo tremendos esforços para arrancar-se dali, inutilmente. Até que, paralisado, foi domado.

Os cretenses que haviam fugido começaram a voltar, e logo ali, em torno da árvore, grande multidão se formou. Alguns, agarrando pedras e paus, pretenderam matá-lo, mas Héracles impediu-os, dizendo:

— Não! Respeitemos o vencido. Tenho ordens para levá-lo vivo a Micenas.

E a multidão começou a dispersar-se. Amarrando mais forte o touro, o povo daquele lugar conduziu Héracles em escolta até o rei Minos, e prestaram-lhe honras heroicas, mediante um banquete. Em seguida, foram alimentar o touro, que precisava ser mantido vivo.

Héracles passou a noite naquele lugar, para garantir a segurança do animal. Entrementes, no Olimpo, a implacável Héra viu que o touro havia sido vencido e Héracles continuava incólume, e a cólera lhe estufou o papo. E, chamando um ratinho, mandou-o que corresse até lá, roesse o laço e soltasse o touro. O ratinho obedeceu, de modo que, pela manhã, depois que Héracles acordou, vieram-lhe correndo avisá-lo.

— O touro!!! Alguém libertou o touro!

Todo o esforço do herói se perdera naquela noite. Deveria ser obra de Héra, e Héracles teria que capturá-lo novamente. Desta vez, o touro deveria estar ainda mais feroz e enlouquecido. E começou a rastreá-lo.

Héracles seguiu rumo a um bosque, informado pelos habitantes do lugar. Até que ouviu um berro terrível, que ecoou como se fosse um leão. O herói subiu rapidamente em uma árvore. E o touro reapareceu. O mesmo olhar chispante, os mesmos bufos. Escarvava o chão com fúria. Esperou que o touro passasse, e pulou-lhe nas costas, tentando agarrar-lhe os chifres. Mas a fera conseguiu derrubá-lo. Ao dar com o herói, urrou de novo e investiu em sua direção, como se o havia reconhecido. Héracles, de pé, esperou-o de clava erguida. Mas, lembrando-se que deveria levá-lo vivo ao rei Euristeus, jogou-a para longe.

O touro atirou-se sobre ele, que permanecia firme como um rochedo. Quando a marrada do touro colheu o herói pelo peito, estacou como se tivesse batido contra uma parede de pedra. Os braços de Héracles o haviam cingido pelos chifres, e nenhum dos dois gigantes se movia. O esforço de Héracles neutralizava o esforço do touro... até que o filho de Zeus conseguiu derrubá-lo. O touro escoiceava, soltava fogo pelo nariz. Mas Héracles não o largava, e foram os dois rolando pelo declive da margem do rio que atravessava o bosque, até caírem na água. As pessoas amedrontaram-se quando ambos desapareceram, nada viram a não ser as águas mansas do rio. Mas, de repente, elevou-se uma coluna de fogo e fumaça, vindo de dentro da água: era o último bafo do touro que, depois, perdeu as forças e se deixou amarrar como um animal manso. E, com o laço, amarrou-o pelos chifres e, repetindo o mesmo truque da primeira vez, conseguiu dominá-lo, preso a uma árvore.

Ao receber a notícia da captura do touro de Poseidon, Minos teve de engolir a arrogância e, aos júbilos do povo, agradecido, ofereceu ao herói muitos presentes. O rei deu ordens para que, no dia seguinte, Héracles e o touro fossem conduzidos a Hélade.

Desta vez, a fera ficou presa sob vigilância, durante toda a noite. E, na manhã seguinte, Héracles desamarrou da árvore o animal e o amarrou às costas, e resolveu levá-lo a nado para a Hélade, pois os marinheiros cretenses, temendo a fúria do touro, haviam fugido com seus barcos. Mesmo assim, com a ajuda dos deuses, nadou... nadou... nadou, até chegar ao cabo Maléia, na Lacônia. Havia levado após um dia para chegar em terra, algo inacreditável...!

Héracles, derrubando o touro amarrado em suas costas, caiu também por terra, certamente exausto como deveria estar. Apesar de ser filho do deus mais poderoso do Olimpo e de sua força descomunal, era humano. O touro ainda debatia-se, também exausto pelo esforço inútil de querer se libertar.

Algum tempo depois, após recuperar-se, Héracles chegava em Micenas, pelo caminho da Arcádia. Micenas encontrava-se em tumulto por causa de sua chegada. A notícia de sua vitória já havia chegado na cidade, e todos o esperavam na praça do mercado. Héracles levou o touro de arrasto até um palanque e lá o amarrou. Em seguida, foi-se apresentar ao rei.

— Pronto, Majestade! Cumpri fielmente a missão que Vossa Majestade houve por bem confiar-me. O touro de Creta está amarrado num esteio, na praça do mercado.

Euristeus deixou cair o queixo e fechou a carranca, pois já estava cansado das vitórias daquele homem. Indubitavelmente, Atena tinha mais força que Héra. E Euristeus consultou com os olhos o seu ministro Eumolpos, sempre ao seu lado. Eumolpos, que já tinha na cabeça um novo trabalho destinado ao herói, cochichou com o soberano. Em seguida, Euristeus transmitiu o novo trabalho:

— Muito bem. Agora o que tens a fazer é ir das cabo das éguas do rei Diómedes.

Héracles jamais soubera algo sobre as éguas desse rei que também nunca ouvira falar, e ficou a esperar alguma explicação. Eumolpos continuou:

— Diómedes é rei dos bístones, na Trácia. Possui quatro éguas, filhas da hárpis Podargéia, que só comem carne humana. Diómedes alimenta-as com os náufragos que as tempestades arrojam às costas de seu reino. Sua Majestade ordena que vás e liquides com esses animais, e traze uma prova de que fizestes.

Héracles, virando-se para Euristeus, baixou a cabeça respeitosamente, murmurando:

— Assim será feito, Majestade!

E saiu do palácio. Euristeus ficou a conferenciar com Eumolpos. Estavam tramando qualquer coisa. Depois ordenou a Copreus:

— Vai à praça do mercado e solta o Touro de Creta.

O guarda abriu a boca e ousou dizer:

— Majestade, melhor mandar levar esse bicho embora porque, vomitando fogo desse jeito, ele poderá incendiar os nossos campos. E que será do povo reunido na praça do mercado?

— Cumpre as minhas ordens e não discute, miserável!!!

Copreus, muito humilhado, baixou a cabeça e foi cumprir as ordens. O povo estava reunido na praça a admirar aquele belo animal, que parecia estar mais calmo.

— Que belo animal!

— Belo, sim, apesar de perigosíssimo. Olha como baba de cólera e fumega. Parece espirrar fogo...

— Tenho medo de Creta! Já estive lá uma vez. É o país dos touros... Inclusive, ouvi falar de um tal Minotauro que anda escondido num labirinto. Dizem que é um monstro...

E, enquanto o povo estava reunido, viu aproximar-se um dos guardas comuns do rei, que parecia vir cumprir alguma ordem de Copreus. Vinha com ar aborrecido, mas decidido.

— Evacuai, Evacuai as ruas!! Vim com ordens de Sua Majestade para soltar o touro.

— Quë?! Soltar o Touro de Creta? Estás louco?

— Repete isso, e eu corto tua cabeça! São ordens de Sua Majestade, o rei Euristeus.

Talvez o rei Euristeus quisesse encontrar um pretexto para que Héracles voltasse a enfrentar o monstro. Mas, o que Euristeus não sabia, é que Héracles, na ânsia de voltar a Tebas, já se encontrava longe. Quando o povo percebeu e viu que o guarda estava falando sério e já estava para fazê-lo, entrou em pânico. Todos correram apavorados e entraram em suas casas. Outros mal tiveram tempo de escapar. O guarda sabia que não teria chance alguma de escapar com vida, mesmo assim cumpriu o seu dever. Soltou o touro e foi a sua primeira vítima. O touro louco colheu-o nos chifres e o arremessou a vinte metros de distância. Muitos morreram naquele dia... O monstro estava com o ódio represo, acumulado, de maneira que ao ver-se solto explodiu num horrendo acesso de furor. Cada arranco que dava era uma criatura em pedaços.

Depois de muitas vítimas, o touro, encontrando as ruas vazias, saiu para a liberdade, alcançando uma das portas de saída de Micenas. E o touro louco, numa corrida furiosa, foi parar nos arredores de Maratona, na Ática, e até então outras tantas vítimas já havia feito, e começou a assolar a região.

A MORTE DE ANDRÓGEO E A IRA DE MINOS

Andrógeo (Andrógeôs), filho de Minos, o rei de Creta, e da rainha Pasífae, era um jovem alto e forte, que em pouco tempo se tornou famoso lutador. Então, percorreu o mundo à procura de alguém que o pudesse derrotar, e ouviu falar sobre a realização de jogos na Hélade. Procurando informar-se a respeito, ficou sabendo que se tratava dos Jogos Atléticos de Atenas, onde Egeus era rei. E foi preparar-se para a viagem.

Então, o filho do grande rei Minos foi visitar Atenas, a fim de participar dos jogos, nas festas das Panatenéias, nas modalidades de corrida, salto, pugilismo, luta livre e arremesso de disco, onde se tornou vencedor de tudo quanto participou, sagrando-se o grande campeão. O rei Egeus ficou receoso de que o povo ateniense o proclamasse herói nacional, e isso poderia ameaçar o trono destinado a seu filho. Os filhos de Pálas, enciumados, aproveitaram o receio de seu tio, o rei, e acusaram Andrógeo injustamente de estar armando uma conspiração para conquistar o trono, e o assassinaram secretamente.

O rei Minos estava em Páros a oferecer sacrifícios às Cárites quando recebeu a notícia do infortúnio do filho Andrógeo, e, arrancando as grinaldas da testa, ordenou aos flautistas que parassem de tocar, e, a partir de então, os pários sacrificam às Cárites sem grinaldas e sem música de flautas. Minos foi queixar-se aos Olímpicos, e eles outorgaram que Egeus fosse obrigado a, de nove em nove anos, mandar sete moças e sete rapazes para servirem de alimento ao Minotauro, um filho bastardo que sua esposa Pasífae tivera secretamente — era metade touro, metade homem e ficava aprisionado no centro do Labirinto de Knossos, construído por Dédalos.

Minos era o senhor dos mares, o mais poderoso rei de sua época, reconhecido por todos a não ser desafiado. Mantinha o controle do pélago de Creta, de norte a sul, desde as Cíclades, as ilhas ao sul do Peloponeso e as ilhas Espórades, cujo povo, os léleges da Cária, estabeleceu o seu “Território Pirata” com o consentimento do rei Minos. E o soberano decidiu por uma vingança ainda maior do que ir direto a Atenas: resolveu sitiar e conquistar as demais cidades vizinhas, na Ática, para assenhorar-se do país dominado. Assim, poderia cobrar tributos das mesmas e fortalecer seu império.

Nem a força de Héracles impediria as conquistas de Minos. Os deuses afastavam-no para mais uma tarefa longe da Hélade.

Assim, após a realização dos jogos fúnebres em honra de Andrógeo, nos quais o grande campeão foi Tauros, o capitão da guarda cretense, a armada de Creta dirigiu-se para Mégara, aonde reinava Nisos, de descendência ateniense. Era filho de Pandíon, descendente de Cécrops, e irmão de Pálas, Licos e Egeus, o rei de Atenas. Mas a Minos pouco importou a ascendência real de Nisos, e sitiou a sua cidade de Nisa.

Minos não conseguia vantagem sobre Nisa, não conseguia capturá-la, visto que Nisos contava com o auxílio de seu aliado Megareus, que reinava na parte de Mégara, junto de Nisa. No entanto, mesmo que as forças cretenses conseguissem superar aos dos inimigos sitiados, havia ainda uma força maior que mantinha as portas da cidade invulneráveis, impenetráveis, e não era a força bruta. Parecia algo assim como o auxílio de algum deus poderoso. E o sítio já durava havia seis meses sem que a sorte se declarasse nem por um partido, nem por outro.

Havia em Nisa uma princesa, Cila, uma das três filhas do rei. Ela conhecia os segredos da invulnerabilidade do rei seu pai; era a única das filhas que ainda não havia sido desposada: Ifínoe era esposa do rei Megareus e com ele vivia na parte nova de Mégara, e Eurínome, desposada pelo velho rei Glaucos, de Corinto, e unida ao deus dos mares, tornara-se mãe do herói Belerofonte, que até há alguns anos era noivo de Aetra (mãe de Teseus).

Em Nisa, havia uma torre cujas muralhas produziam um som harmonioso desde que Apolo ali deixara a sua lira. A filha do rei, Cila, subia freqüentemente, em tempo de paz, a essa torre, para ter o prazer de produzir nas muralhas alguns sons atirando-lhes pequeninas pedras. Durante o cerco, que já durava seis meses, também visitava o mesmo lugar para de lá ver os ataques e os combates feridos em torno da cidade. Como fizesse bastante tempo que os inimigos se achavam acampados em torno, ela conhecia os principais oficiais, as suas armas, os seus cavalos e a sua maneira de combater. E, do alto das ameias, Cila viu e se apaixonou pelo rei de Creta que, em particular, despertava sua admiração, com seu porte gentil, contrastando com sua bravura, agilidade e força; E quando, porém, ele deixava o elmo e, envergando as vestes de púrpura, cavalgava o ginete branco ricamente ajaezado, a filha de Nisos mal conseguia conter-se; sentia por ele uma admiração frenética; invejava as armas que ele segurava, as rédeas que sustentava; tinha vontade de ir, se fosse possível, procurá-lo, através das fileiras inimigas; sentia o impulso de lançar-se da torre no meio do acampamento de Minos, ou abrir-lhe as portas da cidade, ou de fazer qualquer coisa que lhe desse a satisfação dele se aproximar. Sentada na torre, falava consigo mesma:

— Não sei se devo lamentar ou regozijar-me com esta triste guerra. Lamento que Minos seja nosso inimigo, mas regozijo-me com qualquer coisa que o traga a mim. Talvez ele esteja disposto a nos conceder a paz e tomar-me como refém. Eu voaria, se pudesse, para pousar em seu acampamento e dizer-lhe que nos entregamos à sua mercê. Mas trair meu pai, como posso assim proceder? Não! Antes nunca mais tornar a ver Minos.

E, observando-o melhor, continuou:

— No entanto, não há dúvida de que é bem certo que, às vezes, não há coisa melhor para uma cidade que ser conquistada, quando o conquistador é clemente e generoso. Minos sem dúvida está com a razão; acho que seremos vencidos, e, se tal deve ser o desfecho, por que não abrir-lhe as portas da cidade, em vez de deixar que isso se faça pela guerra? Seria preferível evitar a demora e a carnificina.

Pensou mais um pouco:

— E se alguém matasse Minos? Ninguém certamente teria a coragem de matá-lo; é possível, contudo, que alguém o fizesse, por ignorância, sem conhecê-lo. Vou entregar-me a ele, tendo meu país como dote e pôr fim a esta guerra. Mas como? As portas estão guardadas, e somente abrirão se ele assim o quiser. Meu pai é meu verdadeiro obstáculo. Oxalá quisessem os deuses levá-lo!

E, finalmente, encontrou a solução:

— Mas por que pedir aos deuses para fazer tal coisa? Outra mulher, amando como amo, afastaria com sua próprias mãos qualquer obstáculo que se interpusesse no caminho de seu amor. E pode outra mulher fazer mais do que eu? Desafiarei ferro e fogo para conquistar o que desejo. Mas não há necessidade de ferro e fogo. Preciso apenas da madeixa cor-de-púrpura de meu pai. Mais preciosa para mim do que o ouro, isso me dará tudo o que quero.

E desejou tornar-se rainha e bem-sucedida esposa, tal qual suas irmãs. Enquanto a jovem assim refletia, a Noite chegou, e em breve todo o palácio estava mergulhado nos braços de Morfeus. E, secretamente, saindo por uma porta lateral, entrou no acampamento inimigo e pediu para ser levada à presença do rei, e foi ter com Minos. Explicando-lhe as intenções, fez-lhe uma proposta:

— Sou Cila, filha do rei Nisos. Entrego-te meu país e a casa de meu pai. Não pretendo que mais gente perca a vida quando há uma saída para o entendimento.

— E o que pretendes fazer? Tu convencerás o rei teu pai a render-se?

— Tenho um plano. Eu conheço o segredo da força desta cidade. Amanhã a cidade será tua, te prometo. Mas terás um débito comigo.

— O que queres em troca? O trono de Nisa?

— Não é bem o trono de Nisa. Amanhã saberás. Te darei o sinal, e poderás atravessar os portões livremente.

Para tanto, Cila não revelou a Minos a cerca do segredo da invulnerabilidade de Nisa para surpreendê-lo. Não era exatamente a cidade, nem seus exércitos, mas Nisos era invulnerável, o que refletia em Nisa. Nisos tinha na cabeça um fio de cabelo purpurino entre os outros fios negros, e sua vida dependia dele, e só Cila sabia disso.

E não teve outra opção senão entrar nos aposentos do pai e entregá-lo à Morte. Naquela noite calma, enquanto todos dormiam, Cila, aproveitando um momento de afago, acariciando seus cabelos, arrancando-lhe o fio vital, e Nisos começava a abandonar o Mundo dos Vivos, quando os deuses Olímpicos, apiedados, o metamorfosearam em gavião.

Assim que o corpo do soberano foi encontrado sem vida, pela manhã, a um sinal de Cila, os exércitos cretenses se aproximaram dos portões, que se abriram em sinal de sujeição.

A cidade de Nisa estava em suas mãos, por isso Cila foi até o rei Minos para cobrar a sua recompensa.

— Muito bem, princesa. Dize-me: o que fizeste para convencer o rei teu pai a entregar a cidade? E o que queres em troca de teus serviços?

— Cila estendeu o braço com o despojo fatal. Minos não quis tocá-lo e indagou:

— O que é isto?

— É a madeixa que tornava o meu pai e a cidade invulneráveis. Cortei-o para ti, pelo teu amor. Leva-me para teu reino e faze de mim tua esposa; é tudo o que desejo.

Nisso, entrou um oficial cretense para dar as últimas notícias ao rei Minos:

— Majestade, o rei Nisos foi encontrado morto nos seus aposentos. Não há sinal de sangue pelo corpo. Foi uma morte misteriosa.

Minos virou-se para a cruel filha de Nisos e a censurou:

— Os deuses te destruam, mulher infame! Desgraça de nosso tempo! Que nem a Terra nem o Mar te deem um lugar de repouso! Minha Creta, onde o próprio Zeus foi criado, não será poluída com tal monstro!

— Mas, meu senhor, eu...

— Tu, que traíste teu pai, poderás também vir a me trair. Guardas! Levai-a daqui!

Dito isto, deu ordens para que fossem oferecidas condições razoáveis à cidade conquistada e que a frota partisse imediatamente. Cila ficou desesperada:

— Homem ingrato! É assim que me abandonas? Eu que te dei a vitória, que sacrifiquei por ti meu pai e minha Pátria? Sou culpada, confesso, e mereço morrer, mas não por tuas mãos!

Estava prestes a partir; desprezou a princesa por sua traição e sua fraqueza, proibiu-a de embarcar nos seus navios. Foi em vão que ela alcançou, banhada em lágrimas, a praia, cabelos desalinhados, braços estendidos para os homens que a repeliam.

Então Minos, finalmente cedeu; resolveu recompensá-la pelos seus serviços: mandou amarrá-la pelos calcanhares ao cadaste do navio e levou-a a reboque para Creta. Cila morreria afogada, porém, antes que isso acontecesse, atacou-a uma ave repentinamente; era Nisos, seu pai, agora uma ave de rapina, e começou a cair sobre ela para dilacerá-la a bicadas. Assim, em vez de morrer no mar, os deuses resolveram poupá-la e dar-lhe uma chance: transformaram-na numa ave, uma calhandra ou “ciris”, e, libertada, deste dia em diante, ambas as aves, e suas descendentes, passaram a fazer guerra perpétua.

A armada cretense voltou a atacar Atenas, desta vez mais confiante e decidida, já que a principal aliada já havia sido domada. Como a luta se prolongasse, o rei Minos pediu a Zeus que enviasse a Atenas uma peste, no qual foi atendido, e os atenienses começaram a dar viva impressão de desistência. Sitiada a cidade, o povo se viu acuado e miserável, sem água e alimentos, e, para obter a proteção dos deuses, se fazia necessário que houvessem vítimas voluntárias; e ofereceram-se as Jacintíades, — Antheis, Aigleis e Lytaia — as três filhas de Jácintos, filho de Píeros, e foram imoladas sobre o túmulo do cíclope Cerastes. No entanto, sem resultado algum, Atenas, enfim, foi vencida numa guerra contra o tirano de Creta. O inimigo surgira de imprevisto, com um exército poderoso, mais numeroso que a própria população da cidade. Foi uma guerra sangrenta e covarde que enlutou todos os lares.

Terminada a batalha, depois de depredações, aldeias e campos queimados e inocentes assassinados, Atenas teve que se render, para que o inimigo se afastasse, pois se encontravam em condições desumanas. Os escravos mortos e os guerreiros tombados eram, no começo, atirados ao Minotauro pelo rei invasor, ele próprio mais perverso que o monstro. Divertia-se com a ferocidade da sua fome. Depois, o rei achou que não havia diversão alguma em atirar cadáveres ao Minotauro. Passou a alimentá-lo com a carne dos vivos. Pena de morte, em Creta, era servir de alimento ao monstro. Ladrões, assassinos e inimigos políticos do tirano eram jogados à besta, muitas vezes sem julgamento.

Minos sentenciava, impiedosamente e ironicamente:

— O Minotauro tem fome! É preciso combater o crime!

O “habitat” do monstro, o Labirinto de Knossos, era, com o Minotauro, o grande orgulho do tirano bestial. Fora construído justamente por um arquiteto ateniense da casa de Erecteus, sob as ordens de Minos. E tal obra, de tão magnífica, fora batizada com o nome de seu construtor: “dédalos”.

Pois, quando os atenienses se dispuseram a reunir todas as suas riquezas e entregá-las como resgate das cidades conquistadas ao rei Minos, este sorriu, dizendo:

— Eu aceito o ouro. Trazei tudo. Mas só deixamos Atenas e as outras cidades gregas com uma condição: todos os anos, tereis que nos pagar um tributo humano de sete rapazes e sete moças...

Houve tumulto na população ateniense, sem compreender os objetivos daquele rei. E alguém perguntou já pressentindo os motivos:

— Para quê?

— Para apaziguar o Minotauro... ou trarei o monstro e o soltarei dentro dos muros de Atenas!

Os atenienses se desesperaram, mas não houve outro jeito. Atenas assinou o tratado. E, anualmente, pagaria seu tributo de sangue, tal qual as demais cidades das redondezas, tanto a Ática como a Megárida. Do contrário, o mal sobre o reino seria inevitável.

Diante desse cruel ajuste com os cretenses, Egeus, inquieto, preocupava-se, andando de um lado para outro, sem saber como agir, restando-lhe apenas a esperança, remota esperança, de que, do outro lado mar, em direção de Troézen, viessem notícias de seu filho, que talvez, um dia, viria a por termo no seu sofrimento.

TESEUS E A PEDRA

Aetra, finalmente decidida, pensando que já chegava a hora de enviar o filho para o pai, em Atenas, foi buscar Teseus. Ela o levou ao Templo de Poseidon, junto às moitas que cresciam no pátio. E conduziu-o ao pé de um majestoso plátano, em cuja sombra cresciam arbustos, lentiscos e touceiras de urzes cor de púrpura. E disse-lhe:

— Teseus, meu filho, vai até aquela moita e encontrarás, aos pés do plátano, uma grande pedra chata; levanta-a e traze-me o que estiver embaixo.

Teseus embrenhou-se por entre as moitas espessas, observando que não tinham sido tocadas havia muitos anos. Depois de procurar entre as raízes, encontrou uma grande pedra chata, toda recoberta de hera, acanto e musgo. Experimentou levantá-la, mas não o conseguiu. Tornou a tentar, e o suor escorreu-lhe da testa, por causa do calor, e as lágrimas escorreram-lhe dos olhos, por causa da vergonha que sentiu; mas de nada adiantou tanto esforço. Acabou regressando para junto de sua mãe e disse-lhe:

Encontrei a pedra, mas não consegui levantá-la; também acho que, em Troézen, ninguém o fará. Mas meu pai conseguiria, não é, mãe?

Aetra suspirou e disse:

— Os deuses demoram muito, mas acabam fazendo justiça. Esperemos mais um ano. Dia virá em que hás de ser o homem mais forte de Troezen.

Aetra tomou o menino pela mão, entrou no Templo, rezou, e depois tornou a voltar para casa.

Aetra via Teseus crescer. Teseus crescia ouvindo as histórias do grande Héracles, que não conhecia, mas sabia que era amigo de seu pai, mas ficava empolgado mesmo era com as vitórias do pai e do avô.

— Mãe, conta aquela história do dragão que meu pai matou? Conta...

— Mas eu não te contei, ainda ontem?

— Conta outra vez, mãe...

Aetra contava. Teseus, de olhos sonhadores, perguntava:

— Esse dragão deixou filhos?

— Não sei... Por quê?

— Tenho tanta vontade de encontrar um dragãozinho...

— Mas pode ser perigoso, meu filho!

— Pra ele, mãe. Pra ele...

Assim ia crescendo Teseus. Sonhando com dragões e monstros, recordando as aventuras que seu pai vivia em Atenas. E repetindo tudo aos seus amigos.

— Quando eu crescer, vou fazer estragos no Mundo dos Mortos! Vou ser tão famoso quanto Héracles! Esta noite eu sonhei com uma Hidra de oitenta cabeças.

— Não exageres, Teseus. Ontem mesmo tu sonhaste com um leão de cem cabeças...

— Setenta. Só setenta...

— É, e tu cortaste todas de um golpe só, não foi?

— Não. Ele ainda fugiu com umas trinta...

— Aí, tu montaste em Pégasos e saíste atrás do leão...

— Não. Acordei.

— Sonhas demais, Teseus.

— Vou ser muito melhor de verdade. Por isso que eu não quero continuar nesta terra. Na Argólida não deve haver mais monstros... Héracles, provavelmente, já matou a todos.

E saiu correndo para, mais uma vez, pedir à mãe que o enviasse a Atenas, onde reinava seu pai Egeus. Paciente e melancólica, Aetra ouvia o pedido de Teseus.

— Não há pressa, querido. Sabes muito bem que teu pai não pode cuidar da tua educação. Está ocupadíssimo com os negócios do Estado. Constantemente vai à guerra. Ele te espera quando fores um homem forte e preparado para a luta. Recorda-te da pedra...

Sim, havia uma pedra no caminho de Teseus... Fora deixada pelo pai, pouco antes de partir. E Teseus recordava-se:

— Disseste-me que só no dia em que eu fosse capaz de erguer, sozinho, essa pedra e tirar, de baixo dela, o cofre que meu pai me destinou, eu estarei em condições de ir ter com ele em Atenas. Estarei forte, serei um homem, chegará a minha hora de enfrentar o Destino...

Era uma pedra enorme, muito pesada. Muitíssimas vezes o jovem Teseus tentara erguê-la. Mas em vão. A pedra não se movia.

— Mas é preciso erguê-la? Por quê? Então eu não tenho o direito de morar com meu pai se eu não erguê-la?

— Teu pai não espera somente um filho, mas sim um rei. Não queres ser rei? Rei tem que ser forte, tem que ser valente, tem que ser o melhor. No dia em que demonstrares a tua força, poderás partir.

E, dizendo isso, mãe e filho ficaram tristes. Ele, porque ainda não tinha força suficiente. Ela, porque sabia que, mais cedo ou mais tarde, ele teria aquela força e, a partir desse dia, nunca mais o veria de novo. Perigos e lutas o esperavam... E pensava:

— Sem dúvida chegará o dia em que conseguirei erguer a pedra, embora nenhum homem em Troézen possa fazê-lo.

Teseus já era adolescente, mas não tinha namoradas como os seus amigos. Ao invés, todos os dias, ia ver a pedra, como se a namorasse. Sempre tentava erguê-la, mas esgotava-se, ficava irado. Muitas vezes, cansado de tentativas inúteis, dava murros e pontapés na pedra, que insistia em permanecer imóvel. Quando Aetra o via machucado, já sabia: ele havia perdido a paciência...

O jovem Teseus participou da peregrinação a Delfos, e foi com o intuito de oferecer seus cabelos a Apolo. Não lhe cortaram, porém, todos os cabelos mais juvenis compridos, apenas as madeixas na testa, moda de usar que viu moda e recebeu o nome de corte Teseio, por sua causa.

Novamente Teseus se encontrava diante da pedra e o seu segredo que precisava ser descoberto. Não era tão-somente uma pedra, mas um pequeno rochedo. Teseus tinha a impressão de que, às vezes, se enraizava na terra, de que era parte de uma rocha maior, afundada no chão.

Certa vez, deparando-se com uns camponeses que passavam, todos muito fortes, teve uma ideia maliciosa. Pôs-se a conversar com eles, com a maior naturalidade — todos adoravam o jeito simples daquele garoto — e disse ao mais velho, de olho em sua fabulosa musculatura:

— Foste tu que carregaste outro dia aquele bezerro que caiu num poço?

O robusto camponês confirmou, fazendo certa pose com seus músculos. Com o ar mais despreocupado, Teseus continuou:

— Pesava muito aquele bezerro, não pesava?

— É... nem tanto assim...

— Dize isto a outro. Eu vi como tu estavas suando, roxo de tanto fazer força... Até pensei que não ias aguentar...

— O quê? Eu? Estás doido! Bezerro é brincadeira para mim. Eu levanto um boi pelos chifres.

— Duvido!!

— Queres que eu prove? Eu sou mais forte que um touro!

E o homem já ia sair, à procura de um boi, para demonstrar o poder de sua musculatura, quando Teseus o reteve.

— Tu vais fugir, meu velho. Sabes muito bem que não há touro algum aqui por perto...

— Eu vou buscar um nem que seja na Ática. Trarei um touro nas costas...

Teseus pôs-se a rir, o que irritou ainda mais o camponês.

— Garoto, o que pretendes? Queres que eu dê outra prova? Queres que eu derrube aquele carvalho?

— Não. Eu não vou perder aquela sombra. É lá que a gente descansa quando o Sol está mais forte.

E, como se não tivesse a menor intenção, apontou-lhe a sua pedra.

— Olha... Se fores homem, levanta esta pedra!

— É pra já!

— Se tu levantares, a um dedo de altura, esta pedra, vais ganhar cem dracmas!

O homem, entusiasmado pelo desafio e pelo prêmio, já que sabia que o avô do menino podia pagar,, agarrou, com as duas mãos calosas, o bloco de pedra e tentou levantá-lo. Foi inútil. Nem se moveu.

Muito mais interessado estava Teseus, que via, desapontado, o fracasso daquele homem de força espantosa. E restou-lhe desafiar os demais:

— Ninguém pode com essa pedra! Nem vocês três juntos! Que tal uma aposta? Se fordes capazes — só que duvido muito! — eu dou cem dracmas a cada um de vós!

Os três juntos não conseguiram, com muito esforço, erguê-la sequer um pouco, o que foi muito bom para Teseus, visto que não tinha dinheiro consigo, não exploraria seu avô, nem deveria conquistar a honra de ser rei com a ajuda dos outros... Quem devia levantar a pedra era ele, ele sozinho. E foi pensando nisso que disse àqueles homens:

— Pois bem. Quando eu crescer, um pouco mais, vou erguer esta rocha com a maior facilidade. Vereis o que eu digo!

E puseram-se a rir, enquanto tomavam seu caminho.

E na intenção de tornar-se forte, ele passou os dias lutando, boxeando, jogando péla, amansando cavalos, caçando javalis e touros, perseguindo cabras e veados por entre os rochedos; a tal ponto que se tornou o mais veloz caçador das montanhas. E o povo murmurava:

— De fato os deuses protegem o rapaz.