A Saga de Teseu

Entretanto, o tempo passou. Todos os dias Teseus ia até a pedra. Já não tentava levantá-la. Tentava empurrá-la. Enquanto isso, treinava os seus músculos, enquanto crescia. Aetra viu-o crescer e olhava, apreensiva, os seus braços cada vez mais possantes. Viu-o levantar enormes troncos caídos no chão, troncos cada vez maiores e mais pesados. Poseidon zelava por ele.

— Não faças tanta força, meu filho, isso pode fazer-te mal... Espera mais uns dois ou três anos...

— Mãe, eu não tenho tempo a perder!

Até que um dia, de coração inquieto, Aetra ficou de longe a observar, fingindo-se ocupada em colher flores, mas sentia aproximar-se o momento final. Neste dia, Teseus completava quatorze anos de idade.

Teseus dirigiu-se à moita, aproximou-se da pedra e, com certo esforço, fê-la mover-se, chamando a atenção de Aetra. Então ele se animou e disse:

—Hei de levantá-la, mesmo que meu coração e meu corpo se rompam.

Puxou-a pela segunda vez. E foi quando Aetra viu-o, finalmente, vermelho de esforço, erguer, lentamente, a imensa pedra e virá-la para o outro lado, num misto de orgulho e de dor... Aetra caiu-lhe nos braços.

— Meu filhinho!

Ele já estava com seis pés de altura, maior que sua mãe que media cinco. Ele já a havia ultrapassado há muito tempo. E era o mais belo e robusto entre todos os rapazes de Troézen.

Já não havia mais uma pedra em seu caminho. Teseus, agora, só queria saber o que havia no cofre oculto debaixo da pedra, que despertava sua curiosidade de muitos anos. Emocionado, Teseus abriu o cofre, mostrando a Aetra os preciosos presentes que Egeus lhe deixara, à espera de que ele se tornasse forte e valoroso, para empregar nas suas aventuras pelo vasto mundo.

— Olha, mãe, que espada maravilhosa!

Tinha o punho de ouro, com o desenho de uma cobra na lâmina, e era bastante pesada, o gume afiado não sofrera com os longos anos debaixo da pedra. Não tinha arranhões, e brilhava com os raios do Sol. E havia um par de sandálias, que ele tratou logo de calçar. Dignas de um rei, de tão formidáveis. Aetra chorou longa e silenciosamente, ocultando o formoso rosto no xale; e Teseus permaneceu ao seu lado, e também chorou, sem saber porque o fazia. E quando ela se cansou de chorar, ergueu a cabeça, pôs um dedo nos lábios e disse:

— Esconde-as no teu peito, Teseus, meu filho, e acompanha-me. Vamos a um lugar de onde possamos contemplar o mar.

Transpuseram o muro sagrado e contemplaram o claro mar azul, que se estendia lá em baixo. Aetra indagou:

— Vês essa terra aos teus pés?

— Sim; é Troézen, onde nasci e me criei.

— É um pequeno país, árido e pedregoso, voltado para o frio nordeste. Vês aquele outro, mais além?

— Sim, é Égina; disseram-me que pertence à Ática.

— É um vasto e belo país, Teseus, e está voltado para o ensolarado sul: é o país do azeite de oliva e do mel, alegria dos deuses e dos homens. Pois os deuses rodearam-no de montanhas, veladas de prata pura; e as suas colinas cheiram a tomilho e manjericão e seus prados cheiram a violeta e asfódelo, e os rouxinóis cantam o dia inteiro nas suas moitas, que bordejam rios cujas águas fluem sem cessar. Doze cidades bem povoadas se elevam no seu território, berço de uma velha raça, e dos filhos de Cécrops, o rei-serpente, filho da Mãe-Terra, que adorna as tranças de seu cabelo dourado com cigarras de ouro; pois, tal como as cigarras, surgem da terra, e, tal como as cigarras, cantam o dia inteiro, contentes sob o Sol amável. Que farias, meu filho Teseus, se fosses rei de semelhante país?

Teseus emudecera, maravilhado, quando ao alongar o olhar pelo cintilante mar, avistara no horizonte, para além de Égina, os cumes das montanhas da Ática.

Então seu coração se dilatou dentro do peito e ele respondeu à mãe angustiada:

— Se eu fosse rei de semelhante país, eu o governaria com sabedoria, a fim de que todos os homens chorassem no meu túmulo quando eu morresse e exclamassem: “Ai do pastor do seu povo!”

Aetra sorriu e disse:

— Tudo isso foi deixado aí por teu pai, meu filho. É Egeus, o rei de Atenas, e mora na colina de Palas. Leva essas coisas para ele e dize-lhe que as encontrou debaixo da pedra e que desejas saber a quem pertence. Apresenta a espada e as sandálias ao teu pai e aguarda o que os deuses enviarem. Mas cuidado: os sobrinhos de teu pai ficariam furiosos se soubessem seres tu o verdadeiro herdeiro do trono de Atenas. Assim, não digas uma palavra sobre este assunto. É por causa deles que, durante todos esses anos, eu fingi que Poseidon, e não Egeus, era o teu pai. Só tu sabias disso.

Teseus pôs-se a chorar.

— Terei que deixar-te, minha mãe?

— Não chores por minha causa. O que está escrito tem de acontecer, e a tristeza não pesa muito àqueles que nada possuem além dela. Cheia de tristeza foi a minha juventude, e cheia de tristeza foi a minha vida de mulher. Triste foi minha juventude, por causa de Belerofonte, o matador da Quimera, a quem meu pai expulsou por traição; e triste foi minha vida de mulher, por causa da infidelidade de teu pai e também por tua causa; e cheia de tristeza será a minha velhice (pois vi meu destino em sonhos), quando os filhos do Cisne me carregarem para o cativeiro, no fundo vale do Eurotas, e fizerem-me cruzar os mares convertida em escrava, serva do flagelo da Hélade. Contudo, serei vingada quando os heróis de cabelos de ouro puserem-se ao mar para atacar a poderosa cidade do Oriente; então teus descendentes me libertarão da escravidão e eu ouvirei a história da glória de Teseus. Porém, mais adiante, antevejo novos dissabores; saberei suportá-los, como já os suportei no passado.

— Bem, mãe, chegou a minha hora, como prometeu meu pai. Eu vou sair pelo mundo. Mandarei notícias de Atenas.

Aetra recomeçou a chorar, pedindo-lhe que não fosse tão depressa. Ela precisava arrumar coisas para a sua viagem. Ele precisava despedir-se do avô. E a muito custo conseguiu convencê-lo. Teseus concedeu dois dias de prazo e foi ao palácio real despedir-se de Piteus.

Piteus não se comoveu. Ele era rei e amava o perigo. Mas, embora visse a compleição robusta do neto e o olhar altivo e desafiador, estava preocupado com a sua impetuosidade e, acima de tudo, com a sua inexperiência. Entretanto, Piteus aconselhou-o a não fazer a sua viagem a pé.

— Por quê, meu avô?

— Porque podes tomar um navio. Chegarás mais depressa, descendo a um dia de viagem, apenas, da cidade em que Egeus te espera. Cruza o mar de Égina e alcançarás a Ática.

— Ótimo! Irei por mar.

— Assim evitarás, também, as perigosas estradas que levam a Atenas.

— Perigosas por quê?

— Porque estão infestadas de salteadores e Gigantes. Eles podem te atacar.

Teseus suspirou e pensou:

— E se meu pai tiver outros filhos junto de si, a quem ame? É... tem cinqüenta sobrinhos... E se não quiser receber-me? Que fiz para que me receba? Nunca se lembrou de mim desde que nasci; por que me acolheria agora?

E disse ao avô:

— Ora, meu avô... Para chegar mais depressa, tudo bem. Mas evitar os bandidos...

— ... e as feras!

— Para evitar os perigos, não! Eu, justamente, pretendo enfrentá-los! Sonho, desde a infância, com o perigo... Eu vou por terra. Farei que meu pai me ame, pois me mostrarei digno do seu amor. Conquistarei fama e renome e realizarei proezas tais que Egeus se orgulhará de mim! Pois Héracles não se tornou glorioso, embora fosse escravo de Euristeus e por ele humilhado? Não matou os salteadores e os animais ferozes e não drenou grandes lagos e lagoas, quebrando colinas com o seu cajado? E os homens glorificaram-no, pois os livrou de desgraças e de misérias, tornando a vida agradável, não só para eles como para seus filhos. Qual o caminho que poderei percorrer, a fim de seguir-lhe os exemplos? Onde encontrarei estranhas aventuras, bandidos e monstros, e os filhos do Inferno, inimigos dos homens? Sim, viajarei por terra, do lado das montanhas, contornando-as pelo caminho do Istmo. Talvez lá eu possa ser informado de bravas aventuras e fazer alguma coisa que me granjeará o amor de meu pai.

E complementou, um pouco irritado:

— Aliás, o que o deus, que todos dizem ser o meu pai, haveria de pensar de mim se eu empreendesse esta viagem no colo seguro de suas águas e levasse como provas de que sou seu filho sapatos sem poeira e uma espada sem sangue?

Não houve argumento que o fizesse mudar, apesar dos conselhos de Piteus. Em vão a pobre Aetra derramou lágrimas, procurando convencê-lo. E, no dia marcado, com o rosto molhado de lágrimas da mãe, Teseus disse adeus às terras da Argólida; jogou às costas o seu alforje de queijos e frutas, que Aetra preparara, e ganhou o mundo.

— Adeus, povo de Troézen.

— Não vais mais voltar, Teseus? Esquecerás teus amigos?

— Voltarei um dia nas asas da Fama.

Aetra encaminhou-se para o Templo de Poseidon, e não mais viu seu filho.

OS BANDIDOS DA ARGÓLIDA

Iniciou a viagem através das montanhas, a espada de seu pai presa à cintura. Mal caminhou meio dia, sob o Sol alto, Teseus teve a primeira surpresa. Avistou, no alto de uma colina, que teria de atravessar, homens estranhos que se escondiam atrás das árvores.

— Zeus permita que sejam ladrões.

E eram. Percebeu que estavam armados de pesadas maças e que fingiam trabalhar na estrada. Um pouco além, já no começo da mata, à direita, viu um infeliz amarrado a uma árvore, nu e descalço. Devia ter sido assaltado pouco antes. Nem por isso Teseus se abalou. Pelo contrário, quando chegou perto, antes que eles fizessem qualquer movimento, gritou:

— Escravo!

Um deles olhou-o aterrado com seu timbre de voz. Teseus continuou seu caminho.

— Vem, escravo!

— Eu não sou escravo, sou livre.

— Mas vais tornar-te um escravo, se não vieres aqui amarrar as minhas sandálias.

Jamais os bandidos daquela região tinham sido tratados daquela maneira. Todos fugiam ou procuravam fugir, se pudessem. Mas aquele forasteiro era diferente. E o homem, timidamente, de olhar baixo, foi-se aproximando. Eles eram muitos. E criando coragem pelos muitos que eram, os demais ergueram suas clavas e apanharam pedras. Num forte grito, avançaram contra Teseus, dispostos a acabar com tanto atrevimento, atropelando o primeiro deles, que estava no caminho.

Num instante, Teseus acabou com a luta. Desarmou o primeiro que se aproximou, atirando-o longe com um pontapé. Agarrou dois outros, com as mãos potentes, e quebrou com a de um a cabeça do outro. Apanhou no ar uma enorme pedra que lhe atiraram e, devolvendo-a, num golpe violento, atingiu dois ao mesmo tempo, que tombaram de cabeça quebrada. Três ou quatro saíram correndo. Um deles, o que com ele havia falado, caiu de joelhos pedindo-lhe perdão. Teseus ordenou-lhe:

— Agora, amarra minhas sandálias... escravo!

O bandido tratou de obedecer.

— Desamarra aquele infeliz, homem!

Foi rapidamente obedecido. O prisioneiro, ainda trêmulo, aproximou-se do herói, agradecendo a intervenção salvadora. E Teseus perguntou-lhe:

— Quem são esses encrenqueiros?

— São bandidos terríveis!

— Bandidos assim, fáceis de vencer?

Disse isto olhando com desprezo o amedrontado bandido, que, aproveitando a distração de Teseus, tratava de sumir como um gamo.

— Vais seguir por este caminho, meu rapaz?

— Vou para Atenas.

— Sem querer ofender-te, eu te aconselho a não continuar. Sei que és muito forte e corajoso, é... já vi que és valente. Mas por todo esse caminho, por todas essas furnas, há bandidos e feras. Vencerás um, vencerás dez, dominarás cem. Mas acabarás morrendo, não resistirás. Há pelo menos mil bandidos e monstros no caminho de Atenas. Muitos deles fugidos dos territórios por onde o grande Héracles costuma transitar.

— Vou fazer uma festa com o milésimo, meu amigo.

E, depois de apanhar do chão uma das clavas abandonadas pelos bandidos, seguiu viagem.

O ENCONTRO COM MÉTIS

Durante algum tempo, Teseus caminhou sem nenhum problema. De repente, um urro de leão reboou pelos ares. Teseus manteve-se alerta, apertando no punho a clava que ganhara no primeiro encontro. Outro urro selvagem abalou aquela região. Atento, o herói aguardava algum movimento. E teve sua primeira decepção, pois esperava um leão de cinco ou seis cabeças, que soltasse fogo pela boca. Mas esse leão tinha apenas uma cabeça... Se encontrava numa clareira, com sua juba revolta, o olhar feroz e jeito de poucos amigos.

— Pois bem, sou uma deusa, e também tua amiga. Eu sou amiga dos heróis. E como estás iniciando agora a tua carreira de aventuras, há muitas e grandiosas esperando por ti. Quero que te lembres de mim em todos os perigos que vais enfrentar. Em qualquer dificuldade, pensa em mim, chama-me e eu estarei ao teu lado para ajudar-te a vencer. Eu sou a Prudência, a companheira dos heróis bem-sucedidos. Segue o teu caminho e... lembra-te de tudo o que te disse.

E a deusa Métis desapareceu.

CORINETOS

Teseus, então, chegou aos montes Aracne, que se debruçavam sobre o Epidauros e sobre o mar, e de cujos cumes desciam estreitas passagens, sulcando-lhe as encostas como os raios de uma teia de aranha.

E ele escalou as rampas sombrias, por entre vertentes estriadas de mármore até que a terra, lá embaixo, se tornou azul, e as nuvens umedeceram-lhe a cabeça.

Continuou a subir pela intrincada teia de aranha dos caminhos, descortinando a seus pés, ao norte e ao sul, a leste e ao oeste, espalhados pela paisagem, gargantas estreitas, e fendas meio recobertas pelo nevoeiro e sobretudo, tétricas planícies.

E tudo isso ele precisava transpor, pois não havia estrada nem à direita, nem à esquerda; e ele caminhou penosamente por pântanos e matagais, e finalmente chegou a um monte de pedras.

Um homem envolto num manto feito de pele de urso estava sentado nessas pedras. A cabeça do animal servia-lhe de barrete e os dentes abriam-se num sorriso branco sobre a sua teste; os pés da fera estavam atados em torno do seu pescoço, e as garras brilhavam-lhe sobre o peito. O homem levantou-se ao avistar Teseus, e riu-se, levantando eco pelas encostas:

— Quem és tu, formosa mosca, que caíste na teia da aranha?

Teseus continuou seu caminho, firme, sem responder. E ponderou consigo mesmo:

— Será algum salteador?

Mas o singular indivíduo riu-se ainda mais alto e observou:

— Mosca atrevida, não sabes que esses atalhos são a teia, de que nenhuma mosca consegue sair, que o lugar onde estou é o ninho da aranha, e que sou a aranha que suga as moscas? Aproxima-te e deixa que eu me regale contigo; de nada te adiante fugir, pois meu pai Hefaístos, ao abrir esses labirintos na montanha, fabricou para mim uma teia engenhosa, e nenhum homem consegue encontrar o caminho de volta.

Teseus avançou, imperturbável, e indagou:

— E qual é teu nome entre os homens, aranha atrevida? E onde estão teus ferrões?

O estranho homem tornou a rir-se:

— Meu nome é Perífetes, filho de Hefaístos e Anticléia, a ninfa da montanha. No entanto, os homens chamam-me Corinetos, o portador do barrete, que recebi das próprias mãos de meu divino pai; aqui está meu ferrão de aranha.

E ergueu o sólido cajado de ferro, que se encontrava sobre as pedras, a seu lado.

— Foi-me dado por meu pai, forjado no coração da montanha, e com ele eu espanco as moscas vaidosas, até extrair-lhe o mel e a gordura. Portanto, entrega-me essa vistosa espada, e teu manto, e tuas sandálias prateadas, se não quiseres ser espancado, correndo o risco de morrer.

Num gesto rápido, Teseus enrolou o manto em torno do braço esquerdo, de modo a formar pregas rígidas do ombro ao punho, puxou pela espada e precipitou-se sobre o homem do cajado e o homem do cajado precipitou-se sobre ele.

Por três vezes Perífetes, o “amplamente notório”, bateu em Teseus com seu cajado de ferro e fê-lo curvar sob os golpes como um galho tenro, mas Teseus defendeu a cabeça com o braço esquerdo e com o manto que o envolvia.

Três vezes Teseus endireitou-se depois de golpeado; conseguiu atingir o homem do cajado com a sua espada, mas as amplas pregas da pele de urso salvaram-no.

Então o sangue subiu à cabeça do jovem e ele investiu contra o adversário, segurando-o pela garganta; ambos caíram e rolaram juntos. E quando Teseus se levantou do chão, deixou Corinetos inerte a seus pés.

Teseus tirou-lhe o cajado e a pele de urso, abandonando-o aos milhafres e às gralhas e continuou seu caminho; desceu pelos vales em direção à longínqua vertente e chegou a uma ampla e verdejante várzea, onde rebanhos de carneiros e de bois dormiam sob o arvoredo.

AS NINFAS E OS PASTORES

À sombra dos rochedos e das árvores, junto a uma aprazível fonte, dançavam Ninfas e pastores; mas não havia ninguém tocando música.

E ao notarem a aproximação de um homem vestido com a pele de um urso e portando um cajado de ferro, todos gritaram; os pastores fugiram, tangendo seus rebanhos, e as Ninfas mergulharam na fonte, e desapareceram como se fossem aves aquáticas.

Teseus riu-se, surpreso:

— Que estranhos caprichos tem essa gente, que foge dos estrangeiros e dança sem música!

Mas estava fatigado, sedento e coberto de pó; não pensou mais no incidente, saciou a sede, banhou-se nas límpidas águas do poço e depois se deitou à sombra de um plátano, enquanto a água escorria de pedra em pedra, embalando-o com a sua canção.

Ao acordar, ouviu cochichos e avistou as Ninfas que o espreitavam, do outro lado da fonte, na abertura negra de uma caverna, sentadas sobre verdes almofadas de musgo. E uma delas observou:

— Acho que não é Perífetes.

— Ele não parece um salteador e sim um mancebo nobre e formoso.

Teseus sorriu e disse-lhes:

— Formosas Ninfas, não sou Perífetes. Ele está dormindo no meio dos milhafres e dos corvos; trouxe comigo a sua pele de urso e seu cajado.

Então as Ninfas atravessaram a lagoa, aproximaram-se e tornaram a chamar os pastores. E Teseus contou-lhes como matara o bandido da montanha Aracne; os pastores beijaram-lhe os pés e contaram aliviados:

— Agora podemos apascentar nossos rebanhos em paz e não precisamos mais ter medo de tocar música para dançarmos; pois o perverso homem do cajado recebeu o castigo merecido e não mais ouvirá o som das nossas flautas.

Ofereceram a Teseus carne de cabrito e vinho, e as Ninfas trouxeram-lhe mel, colhido nos rochedos: ele comeu, bebeu e tornou a dormir, enquanto as Ninfas e os pastores dançavam e cantavam. E, ao acordar, as Ninfas pediram-lhe que se demorasse mais. Teseus, porém, não lhes fez a vontade:

— Tenho que executar um trabalho importante. Preciso seguir na direção do Istmo, a fim de chegar a Atenas.

Os pastores indagaram:

— Vais sozinho para Atenas? Ninguém viaja por estas paragens a não ser acompanhado de tropas armadas.

— As minhas armas bem me bastam, como vistes. E quanto a tropas, um homem honesto é boa companhia para si próprio. Por que achais que não devo ir sozinho para Atenas?

— Se fores, precisas tomar cuidado ao passar pelo Istmo, pois podes te deparar com o terrível Sínis, “o salteador”, conhecido por Polipémnon, “autor de muita desgraça”, ou ainda Pituocamptes, “o que curva os pinheiros”; pois ele curva dois pinheiros e neles amarra os viajantes pelas mãos e pelos pés e quando solta as árvores, os corpos são estraçalhados.

Outro pastor observou:

— Além disso, deves seguir pelo interior, evitando passar pelos penhascos de Círon; pois, à esquerda, ficam as montanhas e, à direita, o mar; assim sendo, não há escapatória possível e terás que encontrar Círon, o bandido, que te obrigará a lavar-lhe os pés; e, enquanto o fizeres, ele te jogará pelo despenhadeiro com um pontapé, a fim de que teu cadáver sirva de alimento a uma enorme tartaruga que vive lá em baixo.

Antes que Teseus pudesse responder, o terceiro pastor acrescentou:

— E ainda há mais um perigo, a não ser que sigas sempre pelo interior, e deixes Elêusis à direita, a uma boa distância. Pois em Elêusis governa Cércion, “o homem de rabo”, o desalmado soberano, terror de todos os mortais, que condenou a sua própria filha Álope a morrer na prisão. Mas ela foi transformada numa linda fonte; e abandonou na montanha o seu neto, que foi amamentado por uma égua selvagem. Ele costuma desafiar os recém-chegados para lutar, pois é o melhor lutador de toda a Ática, e a todos vence; e massacra impiedosamente os vencidos: o pátio do seu palácio está juncado de ossos.

Teseus franziu a testa e disse:

— Este país me parece bem mal governado e aventuras não faltam para quem quiser se meter nelas. Se vier parar às minhas mãos, hei de endireitá-lo, e aqui está o meu cetro real.

E sacudiu o seu cajado de ferro, enquanto as Ninfas e os pastores, que o cercavam, suplicavam-lhe que não partisse.

Contudo, ele continuou a sua viagem até divisar os dois mares, e as torres da cidadela de Corinto alteando-se sobre as terras circunvizinhas.

TESEUS E SÍSIFOS

Sísifos tornara-se insuportável. Os deuses não conseguiam fazê-lo morrer, já que soube enganar a Morte. Só restaria levá-lo à força para os Infernos.

Foi então que Sísifos teve a infelicidade de cruzar o caminho de Teseus, quando este passava por seus domínios, no Istmo de Corinto. Teseus aplicou-lhe o castigo devido, dando a Sísifos um termo à sua vida de salteador e tirano. Um dos seus últimos atos indignos foi raptar Anticléia, a noiva de Laertes, e de sua união com a princesa teria gerado um filho chamado Ulisses. Laertes foi buscá-la grávida em Corinto e toma-la como esposa.

Por isso, com o consentimento de Zeus, Hádes mandou Hermes buscá-lo de uma vez por todas.

— Mas, por quê? Por acaso as Moiras cortaram o fio da minha vida?

— Elas cortaram, eu mesmo vi. Teu orgulho não permite sequer lembrar-te como foste derrotado. Paraste nas mãos de um homem justo. Pagaste caro por tua ousadia. Tu não devias ter revelado a Ásopos o segredo de Zeus, pois provocaste a sua ira.

Sísifos, desconfiado e duvidoso, chegou a querer enganar o deus, mas, vendo que não havia mais jeito e que já havia vivido tempo demais, muitas gerações, dom que jamais algum mortal havia recebido em vida, suspirou:

— Bem, de qualquer modo, pelo menos consegui uma boa fonte de água para Corinto.

— Vem logo, e nada mais de truques!

Com isso, a cidade de Corinto ficou sem um rei. A pedra que os juízes dos mortos ordenaram que Sísifos ficasse para sempre empurrando morro acima, no Tártaros, tinha exatamente o mesmo feitio daquela na qual um dia Zeus se transformara ao se esconder de Ásopos.

Mas os coríntios continuaram a amar Sísifos por tudo o que havia feito por eles e, anualmente, passariam a realizar uma festa em sua honra. Afinal, havia sido ele mesmo o herói-fundador dos Jogos Ístmicos, em memória de Melicertes, o filho de Átamas e Ino. Por isso, os coríntios ergueram em sua honra uma estátua com seu nome gravado no pedestal.

Glaucos, seu filho, longe se encontrava e precisava ser encontrado para assumir o seu lugar no trono.

O ENCONTRO COM SÍNIS

A cada distância percorrida, Teseus encontrava um salteador ou algum bando, e também enfrentava as feras que davam para as portas de Atenas. Os bandidos que escapavam e as testemunhas dos acontecimentos saíam contando sobre as proezas de um homem que rumava para a cidade do rei Egeus, e a sua fama corria na frente e, muitas vezes, aonde chegava, mulheres, crianças e velhos acenavam para o herói, batiam palmas, festejando a sua passagem e agradecendo a limpeza que andava fazendo. E aclamavam-no:

— Glória ao protegido dos deuses, o libertador dos humildes! Glória ao nosso novo Héracles!

Mas a fama de Teseus chegava tanto aos bons quanto aos maus. Procurando por lugares mais perigosos, seguiu em direção de um ponto chamado hoje Kechries. Havia um bandido particularmente mau por aquelas bandas. Sínis era o seu nome, conhecido pelo cognome de Pituocamptes, “o curvador de pinheiros”, tal qual seu pai Posseidon. E, como Teseus, tinha um pai mortal, Polipémnon, “autor de muita desgraça”, e sua mãe chamava-se Siléia, “a saqueadora”. Esse salteador tinha feito inúmeras vítimas, difícil de saber quantas, pois, depois de assaltá-las, jogava-as ao mar, do alto de um rochedo.

Sínis, ao ouvir falar desse novo herói, riu ferozmente.

— Estarei lhe esperando...

E esperou-o numa curva da estrada perto de Cêncreas, um dos dois portos de Corinto.

Teseus transpôs o Istmo com passos rápidos, pois almejava encontrar-se com o cruel Sínis, e um grupo de pessoas foi a ele se juntar, já que a notícia havia-se espalhado pelos pastores da região. E finalmente deparou-se com o bandido, junto a um pinheiro, no ponto em que o Istmo se estreitava e elevados rochedos bordejavam a estrada. Sínis estava sentado numa pedra, à beira do caminho, tendo nos joelhos um grosso galho de pinheiro novo, que lhe servia de cajado, e, ao seu alcance, uma grossa corda desenrolada; e sobre a sua cabeça, havia ali um pinheiro novo curvado até quase o chão, preso por uma das cordas, e outro para ser curvado, e em ambos pendiam ossos de algumas de suas vítimas.

Teseus gritou:

— Olá, valente curvador de pinheiros, preparaste dois pinheiros para mim?

Sínis, que já o esperava, pôs-se de pé e respondeu, apontando os ossos que pendiam das árvores:

— Minha despensa tem andado vazia ultimamente; portanto, reservei dois pinheiros para ti.

Investiu contra Teseus com o cajado erguido, e Teseus também investiu contra ele, inaugurando seu novo cajado. A luta foi rápida. Malharam-se reciprocamente a ponto de despertar ecos no arvoredo; mas o metal era mais rijo do que o pinheiro e uma pancada do bronze partiu ao meio o frágil cajado de Sínis. Teseus vibrou outro possante golpe, que atingiu o rosto do bandido; depois se ajoelhou nas costas do bandido, amarrou-o com sua própria corda, diante dos olhos dos espectadores que iam, alegremente, acompanhando o herói, para ver o justo castigo:

— Assim como fizeste com os outros, assim farei contigo.

Então, com a força dos braços, curvou o outro pinheiro, e entre os quais amarrou Sínis, que se debatia, sem prestar atenção às suas súplicas; e soltou as árvores, dando um fim ao bandido, agora transformado em dois. Em seguida, continuou seu caminho, abandonando-lhe o corpo aos falcões e aos corvos, sob os aplausos dos espectadores.

Então, Teseus percebeu que uma menina, que a tudo observava, saiu correndo de seu esconderijo.

— Olha, estrangeiro, a filha de Sínis! É inocente, nada fez para contribuir com as maldades do pai.

— É alta e muito formosa... Como se chama?

— Perígone. Apesar das crueldades de seu pai, era tudo o que ela tinha. Probrezinha, tornou-se órfã.

E Teseus, temendo o que ela pudesse fazer consigo mesma, procurou-a por toda a parte. Perígone, “em torno do jardim”, tinha-se escondido no meio de arbustos de aspargos e morriões, e com uma inocência pueril suplicava às plantas que a ajudassem. Jurou que nunca mais destruiria nem queimaria os arbustos se eles estivessem dispostos a escondê-la e salvá-la.

— Menina, sei que estás aí escondida. Não temas, pois não te farei mal algum. Vem comigo para Atenas. Encontrarás lá um lugar para ficar. Eu te protegerei contra qualquer mal que possa te afligir. Vem...

Perígone saiu de seu esconderijo, e desde então permaneceu sob a proteção de Teseus. E, enquanto caminhavam, a menina lhe prevenia sobre um homem cruel que vivia nas proximidades de Mégara. Segundo dizia-lhe o seu pai, adorava obrigar os viajantes a lavar-lhe os pés e depois matá-los. Teseus ouvia atentamente, afeiçoando-se ainda mais a ela.

A JAVALINA DE CRÔMION

Teseus e Perígone seguiam para Atenas. Ia Teseus vitorioso e feliz, acompanhado de muitos curiosos, imaginando ele o dia em que se apresentaria a Egeus e, diante de seu espanto e surpresa, cairia em seus braços chamando-o de “meu pai”. Imaginava quão grande seria a alegria de seu pai, ao vê-lo tão forte e ouvir as suas proezas e saber que tinha então um digno sucessor para o trono.

A jornada era intranquila. Pensava não ser mais assaltado pelos bandoleiros, mas de todos os lados vinham camponeses humildes pedir-lhe que expulsasse algum bandido, que matasse alguma fera à solta. Com a melhor vontade e com a maior sede de glória, Teseus aceitava os novos encargos e fazia uma limpeza quase completa naquele país governado pela casa de Sísifos.

Depois, em Crômion, nome tirado de krommyon, “cebola”, lugar este ainda no território de Corinto, Teseus soube existir nas redondezas uma imensa porca selvagem que tinha o nome de sua dona, Féa, “cinzenta” ou “escura”. Ela possuía presas maiores e mais afiadas do que uma foice e era tão grande quanto um touro. E, afirmavam, escapava do curral da velha Féa, de vez em quando, e ia dizimar os rebanhos da redondeza. Segundo afirmavam, era a própria dona que a libertava para alimentar a fera. Foi um dos feitos mais célebres, nos últimos dias. Vitória que muitos achavam impossível e que quase nada havia custado a Teseus, já então experimentado e habilíssimo lutador. Teseus enfrentou-a e matou-a com uma lança, e, antes de dar o golpe final, com sua espada, Féa, a velha dona da javalina, caiu por terra e pediu-lhe misericórdia. Mas Teseus, num ímpeto decisivo, tirou a vida do monstro e, amarrando-o no seu cajado de ferro, levou-o às costas até onde estavam os curiosos que o acompanhavam.

— Quem quer churrasco de javali?

Foi uma festa no campo. Muita gente acorreu para participar do banquete improvisado, embora muitos outros, supersticiosos, se recusassem a provar aquela carne tentadora. Talvez medo de estar comendo a própria carne de parentes que a fera devorara anteriormente.

CÍRON

Teseus e sua acompanhante, Perígone, sozinhos, dirigiram-se para Mégara, ladeando o mar, e finalmente chegaram aos penhascos do Geraneios, a “montanha Grou”, num lugar chamado Círon (skiron). Nos velhos tempos, a estrada ali servia de passagem para os viajantes e suas mulas; à direita erguia-se a encosta escarpada da montanha, tal como é hoje; à esquerda havia uma descida a prumo para a água, na qual, segundo reza a história, nadava uma tartaruga marinha, criatura de Hádes que capturava e devorava os viajantes. Se o caminho superior se tornasse intransitável, como acontecia amiúde até nos tempos históricos, o viajante precisava descer ao nível do mar e continuar a jornada ao longo da praia estreita; ou era obrigado a vadear ou nadar até chegar ao lugar onde poderia marinhar de novo montanha acima até o nível do caminho das mulas. Com mau tempo, era sempre perigosa essa faixa estreita, e sempre semelhante a uma porta do Inferno, mesmo sem a tartaruga por perto, e ainda mais sombria depois da passagem de Teseus por aquele lugar.

Então ambos enveredaram pelo estreito caminho cavado entre a montanha e o pélago.

E avistou Círon sentado junto a uma fonte, à base do penhasco. Tinha um possante cajado colocado nos joelhos. Interceptara o caminho com pedras, a fim de obrigar os viandantes a deterem-se.

Teseus gritou-lhe:

— Olá, criador de tartarugas, precisas de limpeza hoje?

Imediatamente Círon se pôs de pé e respondeu:

— Minha tartaruga está faminta e meus pés precisam ser lavados. Se me lavares os pés, prometo te deixar partir sem nenhum dano.

E postou-se junto à barreira de pedras, erguendo o cajado com ambas as mãos, tendo aos pés uma bacia cheia de água tirada da fonte.

Teseus, afastando Perígone, foi ajoelhar-se diante dele para lavar-lhe os pés, mas o que fez foi atirar-lhe ao rosto a água da bacia; depois precipitou-se sobre ele. E árdua foi a luta travada no penhasco, pois ao sentir o peso do cajado de bronze, Círon largou o seu e atracou-se com Teseus, tentando arremessá-lo pelo despenhadeiro abaixo. Teseus, porém, lutador prudente, também deixou cair o seu cajado e segurou o adversário pela garganta, comprimindo-lhe o corpo com o joelho; conseguiu empurrá-lo contra o muro de pedras e esmagá-lo contra elas, fazendo-o sufocar. E Círon bradou, ofegante:

— Solta-me, que eu te deixarei passar.

Mas Teseus respondeu:

— Não passarei antes de limpar este caminho áspero.

E continuou a empurrá-lo contra o muro, até que este desabou, e Círon rolou de costas no chão.

Teseus levantou-o, todo contundido, e ordenou-lhe:

— Vem cá e lava meus pés.

Puxou pela espada e sentou-se junto ao precipício, repetindo a mesma ordem:

— Lava meus pés ou te cortarei em pedaços.

E, tremendo, Círon obedeceu. Encheu a bacia com água e lavou os pés de Teseus, diante de Perígone, que tudo assistia, e quando terminou o serviço, Teseus levantou-se e declarou:

— Assim como fizeste com os outros, assim farei contigo. Vais servir de comida para a tartaruga!

E deu-lhe um pontapé, projetando-o penhasco abaixo. Enquanto caía, esperneando, bracejando e bufando com fúria, o Mar olhou-o e não quis manchar suas águas com o seu corpo, e recuou. Também a Terra, vendo-o cair, também recuou, abrindo uma enorme fenda. O corpo desfalecido de Círon continuou a cair... cair... cair... por muito tempo, até desfazer-se numa nuvem negra, que foi-se esconder, muito envergonhada, atrás das outras nuvens.

CÉRCION

Teseus tomou Perígone pela mão e seguiu pela estrada litorânea até Atenas. Aproximavam-se de Mégara, que, subjugada pelos cretenses, tinha um rei perverso, Cércion, e onde, em verdade, aquele povo insistia em que Círon não infestava a estrada, mas castigava os salteadores e era amigo de todos os homens de bem, uma espécie de herói. Segundo eles, era genro de Cicreus e sogro do grande Éacos. Cicreus era o Cécrops dos habitantes de Salamina, a ilha fronteira; nascido da Terra, meio homem e meio serpente. Éacos, genro de Círon segundo a tradição megariana, filho de Zeus e da epônima da ilha de Égina, guardava as chaves do mundo subterrâneo. Todos os lugares nomeados — a região calcária de Mégara, Égina, e ainda Elêusis, onde Cicreus, em forma de serpente, servia no Templo da deusa Deméter —, podiam ser vistos de Salamina, e seria muito conveniente para ambos os heróis, Cicreus e Éacos, que tivessem relações de parentescos com um homem como Círon.

Transpuseram Mégara, já no território ático, e viram altearem-se à sua frente os picos coroados de neve do Citéron, onde, acima das florestas de pinheiros, nas solidões geladas, que dominavam as soturnas montanhas, habitavam as Erínias, as delirantes Mênades, e as Ninfas que enlouqueciam os homens. E, à direita, estendia-se o mar, e Salamina, com suas ilhas de pedra e o estreito sagrado.

Teseus e a filha de Sínis caminharam o dia inteiro, descansando às vezes um pouco, e à tarde avistaram a planície Triasiana, e a sagrada cidade de Elêusis, onde se erguia o Templo da mãe-Terra. Pois foi aí que Deméter, sobraçando um feixe de trigo, encontrou Triptólemos, numa época em que o solo ainda permanecia inculto. E foi ela quem o ensinou a arar os campos, a subjugar o gado preguiçoso, a semear e a colher o grão dourado; ordenou-lhe, depois que transmitisse o ensinamento a todas as nações e desse sementes para todos os homens semearem. Em Elêusis, Deméter era cultuada por todos quantos lavravam a terra; assim o era Triptólemos, seu bem-amado, que distribuiu trigo entre os homens.

Teseus e Perígone transpuseram uma longa planície e, chegando a Elêusis, foram recebidos por um punhado de pessoas, que, curiosos, começaram a acompanhá-los. Teseus se postou no mercado, indagando:

— Onde está Cércion, o rei desta cidade? Quero desafiá-lo para lutar comigo. E tem que ser hoje.

O povo apinhou-se ao redor dele.

— Formoso jovem, procuras a Morte? Apressa-te em sair da cidade antes que nosso perverso rei saiba que chegou um forasteiro e te tire a vida.

Porém, enquanto o povo chorava e rezava, Teseus, notando que eram amistosos, confiou-lhe a jovem Perígone e atravessou a cidade, transpôs os portões do pátio e as diversas pilhas de ossos e de crânios, e apresentou-se à porta da sala do palácio de Cércion, o terror dos mortais, que se dizia filho de Poseidon.

Cércion estava sentado, diante da mesa, no amplo vestíbulo; tinha à sua frente um carneiro assado, inteiro, e um jarro de vinho cheio até às bordas. Teseus deteve-se e interpelou-o:

— Olá, valente lutador, aceitas um desafio?

Cércion, levantando a cabeça, fitou-o, riu-se e respondeu:

— Aceito um desafio; mas entra, pois estou sozinho, e tu, entediado; come e bebe antes de morrer.

Corajosamente, Teseus entrou, retirou a sua pele de urso, encostou o cajado de ferro, sentou-se à mesa, defrontando Cércion, “o homem de rabo”, e surpreendeu-se com o seu aspecto que fazia jus ao seu nome: tinha dupla natureza, e procurava ocultar-se, pois tinha uma cauda de serpente, como Cicreus e o grande Cécrops; e comeu carne de carneiro até fartar-se, e bebeu vinho à vontade. Porém, se comeu por três homens, Cércion comeu por sete. E, enquanto comiam e bebiam, não desviavam o olhar um do outro.

Porém, nenhum dirigiu uma só palavra, conquanto se fitassem furtivamente através da mesa; ambos pensaram:

— Ele tem ombros robustos; porém, tenho certeza de que não são mais robustos do que os meus.

Finalmente, após o carneiro ter sido devorado e o jarro de vinho ter ficado seco, o rei Cércion levantou-se e declarou:

— Vamos lutar antes de dormir.

Eles tiraram as roupas e dirigiram-se ao pátio do palácio; Cércion mandou espalhar areia num espaço vago, entre as ossadas. E os heróis enfrentaram-se, com olhos cintilantes como os olhos dos touros selvagens, enquanto o povo se aglomerava junto aos portões, a fim de acompanhar a luta.

E eles lutaram até as estrelas brilharem sob suas cabeças; lutaram renhidamente, de todas as maneiras, e seus pés deixaram marcas fundas na areia. Seus olhos reluziam nas trevas, como estrelas, seus hálitos subiam como fumaça, no ar noturno; mas nem um deles recuou ou avançou um só passo. E o povo, dos portões, assistia à luta, em silêncio.

Cércion irritou-se, afinal, e agarrou Teseus pelo pescoço, sacudindo-o; mas não conseguiu fazer com que seus pés se movessem.

Ágil e prudente, Teseus abraçou Cércion pela cintura e, num impulso rápido, fez com que os rins do contendor lhe ficassem sob os seus joelhos, ao mesmo tempo que lhe agarrava os pulsos; e depois, fazendo um esforço violento, que teria abalado um carvalho, ergueu Cércion por cima do ombro e arremessou-o ao solo.

Então, saltou sobre o adversário vencido e exclamou:

— Entrega-te, ou te matarei!

Cércion não respondeu, pois seu coração se rompera em virtude da queda, da carne e do vinho, de que abusara.

Teseus então abriu os portões e mandou que o povo entrasse. E o povo gritou:

— Mataste o nosso desalmado rei; agora, fica e reina sobre Elêusis e governa-nos com sabedoria.

— Serei vosso rei, em Elêusis, e hei de governar-vos com sabedoria; foi para isso que matei todos os malfeitores. Matei Sínis, Círon e Cércion para vós.

Um ancião deu um passo à frente e disse:

— Jovem herói, mataste Sínis? Nesse caso, toma cuidado com Egeus, rei de Atenas, para onde te diriges, pois é parente próximo de Sínis.

— Então matei um parente meu, embora ele bem merecesse morrer. Quem me purificará da sua morte, pois tinha o direito de matá-lo e matei-o, sendo ele injusto e execrável?

E o ancião respondeu:

— Vai procurar os heróis, filhos de Fítalos, que moram debaixo do elmo de Afidnas, junto à margem do prateado Céfisos: eles conhecem os mistérios dos deuses. Vai até lá, a fim de seres purificado, e depois serás nosso rei.

E Teseus fez juras aos habitantes de Elêusis que o serviriam como rei. Para tanto, pediu que dessem abrigo e proteção a sua acompanhante, pois, a partir de então, precisava seguir sozinho, e prometeu buscá-la quando se tornasse rei em Atenas. E encarregou Hipótous, filho de Alopéia e neto do rei morto, a tomar as rédeas da cidade até a sua volta. Então, vestindo sua pele de urso e apossando-se de seu cajado, partiu na manhã seguinte para Afidnas, e através das colinas e da planície Triasiana, em busca dos filhos de Fítalos.

Mais tarde, afirmou-se que Teseus foi o verdadeiro inventor da luta esportiva e que venceu Cércion mais pela destreza do que pela força bruta, o que de fato aconteceu.

PROCUSTO

Teseus caminhou um bom tempo. Ao contornar o vale do Céfisos, junto à base do elevado Parnes, viu chegar um homem alto e robusto, barbudo e descabelado, porém afável e risonho, ricamente trajado. Tinha braceletes de ouro nos braços e um colar de pedrarias ao redor do pescoço; adiantou-se, cumprimentou Teseus cortesmente, erguendo ambas as mãos, e falou:

— Olá, amigo! Para onde vais? Sê bem-vindo a estas montanhas; sinto-me feliz por encontrar-te! Porventura haverá maior prazer para um homem virtuoso do que acolher forasteiros? Vejo, porém, que estás cansado. Tenho uma hospedaria. Ficarei contente se pernoitares.

— Sou Teseus, filho do rei de Atenas. Tenho pressa de subir o vale para alcançar Afidnas, no vale do Céfisos.

— Ai de ti! Não alcançarás Afidnas ainda hoje, pois te desviaste muito do caminho e muitas milhas de montanhas, cheias de atalhos escarpados e de penhascos perigosos durante a noite, se interpõem entre ti e o teu destino. Meu nome é Damastes. Foi bom que eu tivesse deparado contigo, pois o meu único prazer consiste em encontrar forasteiros, acolhê-los na minha casa, e ouvir histórias de terras distantes. Vem comigo: há muito vinho e queijo em minha casa, e tu irás te fartar. E dormirás no meu famoso leito, do qual dizem os viajantes nunca terem encontrado melhor. Pois qualquer que seja a estatura do meu hóspede, pouca ou muita, esse leito lhe serve perfeitamente e ele dorme como nunca dormiu. E não foram poucos os reis e heróis que eu hospedei.

E reteve as mãos de Teseus, sem permitir que continuasse a viagem. Mas Teseus desejava partir; envergonhava-se, porém, por mostrar-se rude com homem tão hospitaleiro; e também estava curioso por conhecer aquele extraordinário leito. Além do mais, sentia-se fatigado e faminto. Contudo, aquele homem inspirava-lhe certa repulsa, cuja origem não sabia explicar; embora amável e lisonjeira, a sua voz era rouca como a de um sapo; e, embora seus olhos procurassem agradar, eram pesados e frios como pedras. Aceitou o convite, porém, e acompanhou o anfitrião por uma passagem estreita, sombreada pelos rochedos, que ligava a estrada aos picos do Parnes.

E enquanto subiam, o atalho estreitou-se, os penhascos tornaram-se mais altos e mais sombrios; e uma torrente rugia lá em baixo, meio oculta por entre lisos rochedos calcários. Não havia uma só árvore, nem a menor vegetação ao derredor; e dos picos gelados do Parnes vinham rajadas de neve, cortantes, que varriam o caminho. E uma sensação de angústia foi-se apossando de Teseus ao contemplar aquele lugar lúgubre. Aquele era o lugar não muito longe de onde, há muito tempo, o sombrio Hádes havia raptado a filha de Deméter. Ficava aos pés do monte Corídalos, sobre o qual se estendia o Caminho Sagrado, que ligava Elêusis e Atenas. Hoje, essa área chama-se Dafni. Dizia o povo da região que era aquele o lugar em que Hádes houvera raptado a divina filha de Deméter.

E Teseus, transtornado, observou, afinal:

— Ao que parece tua morada está situada numa região muito triste.

— É verdade; lá dentro, porém, a hospitalidade empresta às coisas cores mais alegres. Mas quem serão?

Damastes voltou-se para trás, seguido de Teseus, e ambos avistaram, na estrada que tinham deixado, lá em baixo, muito ao longe, uma fila de mulas carregadas, e mercadores que caminhavam ao lado delas, vigiando as mercadorias.