A Saga de Teseu

— Pai Poseidon, que sempre me amaste, uma vez me prometeste que realizaria três desejos meus. Lembro-te de tua promessa. Só quero que um desejo meu se realize: não permitas que meu maldito filho veja o por-do-Sol de hoje!

Mal pronunciara esta maldição quando Hipólitos, sabendo da chegada do pai, voltava da caçada e entrava pelas portas do palácio. Querendo abraçá-lo, notou a frieza de seu pai, que se mantinha de braços cruzados.

— Ousaste, na minha ausência, abusar da mulher que ocupa o lugar de sua mãe?

Sua voz era bem articulada, mas seus membros agitaram-se subitamente. Hipólitos silenciou. Sabia que nada que dissesse poderia fazer seu pai acreditar em sua inocência. Às maldições do pai, seu filho somente restou-lhe responder serenamente:

— Pai, minha consciência está tranquila, não sei de nenhum mal que tenha sido cometido por mim.

Teseus não se conteve, pois amava Fedra como a sua própria vida, e jamais poderia desconfiar de uma infidelidade sua. Acreditava que Hipólitos quisesse se vingar pelo que havia acontecido à sua mãe Antíope, repudiada e abandonada pelo amor de outra mulher. Portanto, não hesitou e o expulsou do país. Hipólitos invocou sua protetora, a virgem Ártemis, como testemunha de sua inocência e despediu-se, pela segunda vez, de sua pátria. O jovem foi ter com seus dois servos e apressá-los a preparar sua quadriga, pois iria partir imediatamente para o Peloponeso. Iria para o Epidauros e, depois, para Árgos.

Teseus, sozinho, fervia de ódio. Nem mesmo Fedra o acalmaria. Nenhuma palavra, nenhuma carícia, nada poderia refrear o ódio que sentia. Os problemas políticos se avolumavam, mesmo assim não pensava neles; nem se lembrava de Menesteus, seu rival, que disputava com ele o poder, apoiado por nobres insatisfeitos, ou seja, tinha uma conspiração à espreita, mas mal tinha tempo para pensar nisso senão em seu filho depravado.

Enquanto isso, com sua quadriga e seus servos prontos, Hipólitos ergueu os braços para o Céu e disse:

— Zeus, pune-me se fui um homem mau! E, esteja eu vivo ou morto, possa o meu pai descobrir que foi injusto para comigo!

Dizendo isso, saiu a conduzir velozmente seu carro pela praia, pelo caminho de Árgos e Epidauros, rumo a Troézen, fugindo horrorizado dos pensamentos funestos que lhe perseguiam. Seus dois servos o seguiram em outra carruagem, tentando acompanhá-lo em sua veloz ansiedade de chegar ao destino.

Então, alcançando um lugar deserto, dos imensos Rochedos Cirônicos, ouviram um estrondo do mar e viram erguer-se na praia uma enorme onda repentina, e, horrorizados, viram também sair das águas um enorme touro, mugindo como se estivesse possuído.

— Por Zeus, o que é isto?

Assustou os cavalos, e o carro de Hipólitos pôs-se em disparada, partindo a rédea ao meio. Os dois servos tentaram alcançá-lo, mas o perderam de vista. Enquanto isso, Hipólitos, olhando para trás, viu que o touro, em disparada, o perseguia, soltando fogo pelas ventas, e pôde ver nas feições da fera o desenho do rosto de sua madrasta.

— Eu devo estar delirando! Isso não pode ser real!

Durante o tempo em que Fedra tramava revelar-se ao jovem Hipólitos, a deusa Ártemis procurara se manter ausente. Seu amigo estava prestes a ser engolfado no turbilhão de uma paixão, e ela, deusa castíssima entre as deusas, temia ser envolvida naquela atmosfera que tanto temia. Alvo, certa feita, dos desejos indiscretos de Actéon, ele bem soubera dos desgostos que podiam acarretar a um mortal — e mesmo a uma divindade poderosa como ela — os furores inspirados por Afrodite. Mas ao saber, finalmente, do trágico rumo que tomara aquela funesta paixão, Ártemis resolveu intervir e tentar ainda, desesperadamente, salvar a vida de Hipólitos, uma vez que contra ele se levantara a ira de dois pais: a de Teseus, seu próprio pai, e a de Poseidon, pai implacável de seu pai. E a deusa, surgindo diante do rei, suplicou:

— Teseus, filho de Poseidon, modera a tua ira...

— És tu, deusa severa, que me vens aqui falar em moderação? Por qu não o aconselhaste?

Mas Ártemis, intransigente na defesa do amigo, disse:

— Vamos, Teseus, bem sabes que o teu filho é inocente.

Conduzindo, então, orei até o espelho d’água do palácio, fez com que se desenrolassem ali as cenas verídicas. Diante dos olhos estupefatos de Teseus surgiu uma nova Fedra, como ele nunca havia visto: a Fedra inquieta da procissão, a mulher desesperada no alto da sua torre desolada, os votos secretos de amor e o grande momento de sua declaração, quando seu seio desnudo agitava-se ao sabor de suas palavras ardentes.

— Hipólitos, filho meu!

Ártemis tentava acalmar o coração do pobre rei, mostrando a cena do confronto, que se desenrolava naquele instante, entre Hipólitos e a terrível fera marinha.

— Acalma o teu coração e prepara-o para coisas ainda piores, pois a Morte aguarda o teu filho numa curva mais adiante.

O rei, descolando as mãos da face, mirou o espelho e assistiu à cena mais cruel que seus olhos poderiam contemplar: Poseidon, atendendo o pedido do filho predileto, numa curva próxima, atirou duas serpentes marinhas na frente dos quatro cavalos, que se assustaram. Os cavalos, perdendo o passo bruscamente, enovelaram suas patas umas nas outras. A carruagem atropelou os animais, rodopiou, e Hipólitos, sem ter como se segurar, foi lançado para fora do carro, e sua cabeça e seu corpo foram bater violentamente contra as pedras. E, ali perto, uma árvore ressequida, com seus galhos nus, esticados em todas as direções, parecendo braços esquálidos, imploravam ajuda humana ou divina.

Teseus deu um grito e cobriu novamente os olhos. Nesse momento, a rainha apareceu para ver o que estava acontecendo. A deusa se desfez numa névoa. Mas Teseus expulsou a esposa de sua presença, pois precisava ficar só, com o seu desespero, pois ainda não acreditava de todo naquilo que vira, e não pretendia cometer outra imprudência. E ficou sozinho durante horas a pensar e chorar, ou pela culpa de Hipólitos ou pelo seu próprio erro. Mas foi tempo suficiente para esquecer aqueles acontecimentos que lhe pareceram fantasiosos, principalmente depois que mandou chamar Fedra para lhe confortar.

Só no final desse mesmo dia, um dos mensageiros apresentou-se ao rei Teseus e lhe deu a triste notícia:

— Meu senhor e rei, teu filho Hipólitos não mais enxerga a luz do dia.

Teseus recebeu a notícia com a mais absoluta frieza, mas ainda com muitas dúvidas, e disse com um sorriso amargo:

— Terá ele sido assassinado por algum amigo cuja mulher ele desonrou da mesma forma como quis desonrar a mulher de seu pai? Ah... deve ter sido isso.

— Não, meu senhor. Ele foi morto pela seu próprio carro.

Teseus ergueu as mãos aos céus, em gratidão.

— Ó Poseidon! Provaste hoje ser meu pai verdadeiro, ouviste minhas súplicas!

E voltou-se para o mensageiro:

— Mas dize-me como foi que meu filho se acabou!

O mensageiro, estranhando a frieza do pai do menino, começou a contar:

— Nós, servos, estávamos cuidando dos cavalos de nosso senhor Hipólitos quando ele chegou e nos mandou preparar os cavalos e a carruagem para a partida. Tudo estava pronto quando ele ergueu as mãos para os céus e dirigiu-se a Zeus. Depois, subiu ao carro, agarrou as rédeas e partiu conosco pelo caminho de Árgos e Epidauros. Tínhamos chegado às praias desertas do mar. À nossa direita o mar rugia, à esquerda erguia-se gigantescos blocos de rocha. De repente ouvimos um ruído profundo. Parecia um trovão subterrâneo. Os cavalos levantaram as orelhas e todos olhamos temerosos à nossa volta, buscando ver de onde vinha aquele ruído. E eis que vimos no mar uma onda que se erguia como uma torre em direção ao céu, ocultando todas as demais ondas e também o istmo. Então o colosso de água abateu-se sobre a praia, reboando e espumando. E junto com aquela onda furiosa um monstro saiu do mar, um touro gigantesco cujos mugidos ecoaram pela praia e pelos rochedos. Essa vista amedrontou os cavalos, mas nosso senhor puxou as rédeas com ambas as mãos. Os cavalos, porém, saíram galopando, corriam como nunca, e nada podíamos fazer. E duas serpentes cortaram o caminho; os cavalos, assustados, quiseram escapar para o lado, mas ele fez com que esbarrassem no rochedo e trotassem junto dele. E assim sucedeu que as rodas bateram na rocha e teu infortunado filho caiu de cabeça e foi arrastado pelos animais em fuga, juntamente com o carro, e dilacerado pelas pedras. Tudo aconteceu muito depressa, e nós não fomos capazes de ampará-lo. Uma saliência no rochedo impedia a nossa visão. Subitamente o monstro desapareceu, como se tivesse sido engolido pela Terra.

Teseus, impressionado com a intensidade da vingança de seu pai divino, permaneceu imóvel e silencioso, fitando o chão demoradamente, tentando assimilar a narrativa com o que vira no espelho d’água. E disse, por fim:

— A desgraça dele não me alegra, mas também não a lamento. Ah, se ainda pudesse vê-lo em vida uma só vez, interrogá-lo, falar com ele sobre a sua culpa...

Por tal desgraça, Ártemis, enojada pelo ocorrido, buscou a velha ama da casa de Teseus, inspirou-lhe o arrependimento e fê-la revelar toda a verdade. Então, Teseus foi interrompido pelo grito de dor de uma anciã que, saindo do meio dos servos, veio prosternar-se aos pés do rei. Era a velha ama da rainha Fedra, que, não conseguindo mais guardar silêncio, banhada em lágrimas, revelou ao rei a inocência de seu jovem filho e a culpa de sua senhora. Antes mesmo que o infeliz pai pudesse se dar conta do que ela lhe dizia, seu filho Hipólitos, dilacerado mas ainda respirando, foi trazido para dentro do palácio numa maca. Arrependido e desesperado, Teseus atirou-se sobre o moribundo, que ainda conseguia fazer uma pergunta aos que estavam à sua volta:

— Minha inocência foi reconhecida?

A resposta afirmativa que recebeu o consolou.

— Pobre pai, eu te perdoo.

E morreu.

A Loucura quase se apossou de Teseus, que conteve-se para não acabar com a vida de sua esposa. Mas teve apenas a vontade de acudir a seu filho. Mas foi o último suspiro. Diante de gritos chorosos de Teseus, com o filho nos braços envolto em sangue, Ártemis assegurou que se vingaria de Afrodite, na pessoa que mais amasse, e, no momento, quem Afrodite mais amava era Adônis, o mais belo dos mortais. E Ártemis, apoiando a mão suave no ombro do desconsolado pai, prometeu faustuosas honras fúnebres e que as gerações futuras conheceriam a sua virtude e o pecado de Fedra.

Não foi exatamente esta a intenção de Fedra. Pretendia vingar-se, mas de forma que lhe trouxesse algum benefício. Pelo contrário, ao ver que a morte de Hipólitos lhe causava remorsos e a afastava ainda mais de Teseus, açoitada pelas Erínias, Fedra enforcou-se.

Adônis, o amante de Afrodite, existia ainda quando Hipólitos foi enterrado por Teseus sob a árvore onde Fedra tantas vezes tentara conter seu amor. Ali, naquele lugar de que ela tanto gostava, foi também enterrado o seu cadáver, pois o rei não quis deixar de prestar as homenagens devidas à sua esposa, pois, de certa forma, reconhecia que a infidelidade dela era culpa sua, por sua irresponsável ausência.

Ártemis, então, pediu para que Hermes recolhesse a alma de Hipólitos e a levasse para Troézen, onde permaneceria em seu templo, até o momento de ser levado aos Campos Elísios.

TESEUS E OS FILHOS DE HÉRACLES

Um tempo depois que Héracles perdeu sua esposa Mégare, descarregou sua ira contra seus velhos inimigos e foi punido novamente com a vassalagem, desta vez, a serviço de Ônfale, a rainha da Meônia. Assim que retornou em liberdade à Hélade, foi cumprir uma promessa que fizera a Meléagros nos Infernos: foi tomar sua irmã Dejanira como esposa, não sem antes desafiar e vencer o deus-rio Áquelous. E Dejanira, após ter sido raptada pelo centauro Nessos, este, abatido por uma flecha envenenada de Héracles e à beira da morte, entregou-lhe um elixir nocivo dizendo ser um afrodisíaco para conquistar o amor de seu marido, cujo coração vacilava em favor de Íole. Dejanira embebeu o manto de Héracles com o falso elixir, provocando-lhe a morte inesperada. Heracles, então, foi levado para a morada dos deuses.

Então, a notícia da morte de Héracles chegou aos ouvidos de todos, na Hélade, e satisfatoriamente aos ouvidos do rei Euristeus. Este, mais do que contente com tal notícia, mais ainda o preocupava, pois Héracles tinha um exército de filhos:

— Quando eles crescerem vão querer se vingar! Unidos, tornar-se-ão perigosos e muito poderosos.

Decidiu perseguir a todos os filhos e descendentes do herói, os Heráclidas; estavam espalhados por todos os lugares da Hélade: em Micenas, em Tirinto, em Tebas, em Téspias, em Árgos... Uma parte deles, que estava em Micenas, teve que fugir imediatamente da Argólida. Macária levou-os para Tráquis, aonde encontraram asilo com o rei Cêix.

Já Alcmena, mesmo tendo morrido seu filho Héracles, estava morando na cidade de Tirinto, junto com Licímnio, Íolas e alguns Heráclidas. Mas Euristeus expulsou-os da cidade, obrigando-os a ir para Tráquis, junto de Hilos. Mas o soberano de Micenas pediu, ou melhor, insistiu ao rei Cêix que fizesse o mesmo àqueles asilados em Tráquis. Por isso, sob a ameaça que vinha da poderosa Micenas, todos tiveram que abandonar Tirinto, Tráquis, Tebas e Árgos e fugiram para a Ática, aonde Teseus era rei. O rei deu asilo a todos eles e hospedou-os em Maratona. Lá se reuniram em torno de Hilos, que tomou a frente de todos, como seu tutor.

A reunião dos Heráclidas, em Maratona, tirou o sono de Euristeus. E conforme cresciam os filhos do filhos de Zeus, seu medo crescia ainda mais.

Quanto aos filhos que Héracles tivera com Mégare, Terímacos e Creontíades, estes, reacendendo a pira do pai, sacrificaram-se e alcançaram a Morte.

Hilos era chefe entre os Heráclidas, apesar de ser mais jovem que a maioria deles. Junto de Teseus, o rei de Atenas, planejavam vingança por terem sido expulsos da Argólida. Por isso, prepararam uma expedição contra o Peloponeso, especialmente os territórios governados por Euristeus, já que se tornava o rei supremo da Hélade.

Os Heráclidas tentavam, debalde, voltar para o Peloponeso. Mas somente Tleopólemos, filho de Héracles e Astíoque, e seu tio-avô Licímnio obtiveram permissão de se estabelecer em Árgos.

Numa discussão entre os dois, Tleopólemos irritou-se e afugentou um boi que se encontrava perto deles; o jovem o fez com um pau, mas escapou-lhe da mão e foi golpear Licímnio, que acabou morrendo mais ou menos da mesma forma que o pai Eléctrion.

Os parentes do morto obrigaram Tleopólemos a exilar-se de Árgos. Ele partiu com a mulher, Polixo, e se estabeleceram em Rodes, aonde foi fundar duas cidades: Lindos e Iálisos.

HIPÓLITOS RESSUSCITADO

Hipólitos foi honrado na região da Ática como um herói. As jovens atenienses, em procissão, passaram a oferecer mechas de seus cabelos em sacrifício antes de se casar e muitos passaram a crer que Hipólitos havia sido convertido na Constelação do Áuriga. Um dia, foram dizer ao rei Teseus que seu filho se levantara do ataúde, de início recusou-se a acreditar. Mas quando, com os próprios olhos, avistou Hipólitos, estendeu-lhe os braços e apertou-o ao peito, agradecendo aos deuses misericordiosos que se mostravam tão prontos a socorrer os homens no seu infortúnio.

Na verdade, um amigo de seu pai, o médico Asclépios, que tinha fama de ressuscitador, o houvera feito, e Ártemis converteu-o em um deus de segunda ordem, chamado Vírbios, “homem duas vezes”, e levou-o para o bosque de Arícia, perto do lago de Nemi, na Trinácria (Sicília), para fazer companhia a ninfa Egéria. Hipólitos, ou Vírbios, reconhecido pelos favores que a deusa lhe prestara, ergueu no bosque um templo, e dedicou-o à deusa, chamando-a Diana-Aricina. Nesse lugar sagrado, era proibido a presença de cavalos para que não pudesse recordar seu passado. O sacerdote desse santuário deveria ser um escravo fugitivo, devendo ter mata do seu antecessor e trazer, sempre, a espada desembainhada na mão, a fim de prevenir-se daquele que o quisesse substituir, e que, então, deveria matá-lo antes. E Hipólitos instituiu, a seguir, festas solenes que se celebrariam nos idos de agosto.

TESEUS E O RIO ÁQUELOUS

Durante o tempo de crise de seu governo em Atenas, Teseus empreendeu algumas expedições para reaver a sua credibilidade. Numa dessas, percorrendo a Etólia, à frente de seus homens, deteve-se às margens do Áquelous, onde precisou aguardar que baixassem as águas. Teseus e os seus foram visitados pelo próprio deus-rio, que lhes contou várias histórias, como a de Erisícton, que ousou desafiar a deusa Deméter e foi terrivelmente castigado pela Fome.

Ao terminar a narração, acrescentou:

— Por que, porém, contar-vos as transformações de outras pessoas, quando eu próprio sou um exemplo da posse de tal poder? Às vezes, transformo-me em serpente e outras vezes, em um touro, que outrora perdi um dos chifres.

E, nesse ponto, deu um gemido e calou-se.

Teseus indagou-lhe a causa de seu pesar e pediu-lhe que contasse essa história, ao que o mais velho dos rios respondeu da seguinte forma:

— Quem se apraz em contar as próprias derrotas? Não hesitarei, contudo, em relatar a minha, consolando-me com a grandeza do meu vencedor, que foi Héracles.

— Héracles? Ouvi muitas histórias sobre ele, até cheguei a acompanhá-lo, mas quando ele conseguiu derrotar a fúria de um deus-rio?

— Houveram outras vitórias, Teseus. Héracles, sem dúvida, foi o maior de todos os heróis. Venceu as correntes do estreito de Messina e das águas em fúria do mar de Creta. E um dia, na Síria, Orontes, um de meus incontáveis irmãos, apaixonou-se por Melibéa, nossa irmã, e transbordou suas águas para alcançá-la, inundando o campo vizinho de seu leito. E acabou subjugado pelo filho de Zeus, que obrigou-o a recolher-se.

E continuou:

— Talvez já tenhais ouvido falar em Dejanira, a mais linda das donzelas etolianas, a quem uma multidão de pretendentes procurava conquistar.

— Claro, é a esposa de Héracles.

— Eu e Héracles estávamos entre eles, e os demais não se atreveram a competir conosco. Héracles apresentava a seu favor o fato de descender de Zeus, e também por seus famosos trabalhos, que até então eu ignorava. Eu, por meu lado, julgava-me mais forte. E nos desafiamos. Héracles conseguiu me derrubar, e a luta se prolongou com muitas tréguas. Mantínhamos nossa posição, dispostos a não ceder, disputando passo a passo o terreno. Somente depois que ele conseguiu me derrubar pela quarta vez, e me cavalgado, é que comecei a sentir o peso da derrota. E vos digo a verdade: era como se uma montanha tivesse caído sobre as minhas costas. Lutei para libertar os braços, respirando ofegante e coberto de suor. Héracles não me deu oportunidade de livrar-me e agarrou-me o pescoço. Meus joelhos estavam em terra, minha boca no pó. Compreendendo que não podia competir com ele na arte da guerra, recorri a outros meios e escapei, rastejando, sob a forma de uma serpente. Enrosquei o corpo e silvei, ameaçando o meu adversário. Mesmo assim fui vencido, e me transformei em touro. Héracles mais uma vez segurou-me pelo pescoço e atirou-me à areia. E não se deu por satisfeito. Arrancou-me um chifre da cabeça. As Náiades o recolheram, e só me devolveu o chifre em troca do Corno da Abundância, o que lhe foi concedido.

E assim, ouvindo cada história do deus-rio, Teseus e seus atenienses ali permaneceram até que as águas furiosas se acalmarem. Talvez o deus assim pretendesse para que pudesse contar as suas histórias. Na verdade, jamais aventuravam-se os antigos de atravessar o Áquelous na época das cheias, por isso, criou-se o costume de acampar às margens do rio até as águas baixarem.

A BATALHA DOS HERÁCLIDAS

Apesar de tantos problemas que atormentavam Teseus, preocupavam-no os distúrbios que se sucediam em sua cidade no seu regresso, e embora tivesse retomado as rédeas do governo, afastando o partido de Menesteus, não voltou a ter sossego. Quando quis tomar nas mãos as rédeas do Estado, ergueu-se contra ele uma nova revolta, liderada por Menesteus, que, voltando para Atenas, via o momento propício de rebelar os cidadãos descontentes e era apoiado pelos Palântidas, descendentes de seu ancestral Pálas e de seus filhos assassinados. Os que antes o odiavam tinham agora perdido o temor, o povo em geral havia sido tão desencaminhado por Menesteus que, em vez de obedecer-lhe, só queria ser adulado.

De início Teseus tentou usar a violência, mas conspirações sediciosas e a franca oposição fizeram com que todas as suas iniciativas fracassassem, e o infortunado rei decidiu tomar providências. E, procurando seus filhos, aconselhou-os a tomarem cuidado ou abandonarem de vez o país e fossem procurar asilo na corte do rei Eléfenor, na Eubéia. Em seguida, na região de Gárgetos, ele amaldiçoou solenemente os atenienses, e muito tempo depois ainda se exibia o lugar de sua maldição.

Menesteus, que era pretendente à coroa como soberano, sendo descendente da casa real, vendo na confusão em que se estabelecia a Ática uma oportunidade real de ocupar definitivamente o seu lugar, expulsou Teseus vergonhosamente de Atenas, e obrigou-o a exilar-se em Ciros. Teseus, então, embarcou para lá, pois considerava os moradores dessa ilha grandes amigos seus, já que lá o rei, seu primo, possuía vastas propriedades que herdada de seu pai. Mas ele, antes de partir, deixou o reino aos cuidados de seus dois filhos, Acamas e Demofóon, e não deixou de orientá-los.

Os Heráclidas já estavam fracassando no seu retorno ao Peloponeso. Alguns estavam sucumbindo e outros sendo expulsos. Principalmente ao apareceram os poderosos exércitos micênicos do rei Euristeus. Por isso, Hilo retirou-se da batalha, vencido, e foi buscar reforços com os antigos aliados de seu pai.

Agora reinavam sobre a Ática os filhos de Teseus, Acamas e Demofóon, que substituíam o pai na sua ausência. Teseus teve que abandonar Atenas pelas pressões a respeito do assassinato de Hipólitos, um de seus filhos. Portanto, com o seu exílio ao país do rei Licômedes, Acamas e Demofóon receberam o encargo de zelar pelo reino, ainda que Menesteus, filho de Peteus, tencionava ser o novo soberano.

Porém, os filhos de Héracles não eram nada fracos. Tinham como chefes Hilo, que não conhecia o significado da palavra medo. Ao seu auxílio também tinha vindo o velho Íolas, sobrinho do grande herói, acompanhado de vários guerreiros. Íolas, que por diversas vezes ajudara Héracles, quando então Euristeus tentava liquidá-lo, agora, ainda que já estivesse idoso, desejava apenas uma coisa: vingança.

Todos estavam reunidos, acampados na praça do mercado, em Atenas, junto ao altar de Zeus, e imploravam a proteção dos atenienses. Mas foram ameaçados Copreus, o mensageiro do rei Euristeus, que desdenhosamente dirigiu-se a Íolas e lhe disse:

— Tu pensas que encontrastes lugar seguro aqui, Íolas! Mas quem ousaria provocar a hostilidade do poderoso Euristeus? Sai daqui com todos os teus asseclas e vai imediatamente para Árgos, onde, por força de uma decisão judicial, sereis condenados ao apedrejamento!

Imperturbável, Íolas respondeu:

— Não! Este altar é um lugar sagrado que me protegerá não só de ti mas também dos exércitos de teu senhor. Estamos a salvo nesta terra livre!
— Terra livre? A Hélade pertence a Euristeus, que é senhor absoluto. Saibas que não vim para cá sozinho. Segue-me uma força que logo expulsará a todos vós, liquidando com essa suposta liberdade.

Íolas, então, clamou ao povo de Atenas:

— Piedosos atenienses! Não tolerais que os protegidos de Zeus sejam expulsos com violência, que os deuses e toda a cidade sejam honrados!

Ouvindo esse apelo, os atenienses, incitando uns aos outros, acorreram de todos os lados à praça do mercado. E perguntaram aos estranhos que suplicavam aos pés de Zeus:

— Quem é esse homem honrado? Quem sois? Por que vinde pedir proteção ao senhor do Olimpo?

Assim perguntaram, e descobriram que se tratavam dos filhos de Héracles. Por isso, foram tomados de piedade e respeito, mandaram o mensageiro afastar-se do altar e comunicaram suas intenções aos reis de Arenas.

E Copreus, ignorando a importância de qualquer outro rei senão a de Euristeus, perguntou, intimidado:

— Quem é o rei deste país?

— Seus julgamentos tu podes acatar com toda a confiança: Demofóon e Acamas, filhos do grande Teseus, são nossos reis.

Logo chegou aos ouvidos dos jovens reis, no palácio, a notícia de que a praça do mercado estava ocupada por refugiados e de que um exército estrangeiro, precedido por um emissário, tinha chegado ao país fazendo exigências. Demofóon e Acamas dirigiram-se à praça e ouviram da boca do mensageiro as pretensões de Euristeus:

— Meu nome é Copreus, de Árgos, filho do grande rei Pélops e embaixador de Euristeus, o soberano de Árgos, Tirinto, Micenas, de todo o Peloponeso e, é claro, de toda a Hélade. Os homens que pretendo levar também pertencem a Árgos, são súditos de meu senhor. Vós, filhos de Teseus, não deveis ser tão imprudentes a ponto de pretender ser os donos da Hélade, nem deveis entrar em guerra com Euristeus por causa desses refugiados!

Demofóon e Acamas entreolharam-se chocados com tamanha petulância. Mas eram sábios e sensatos. Demofóon tomou a palavra:

— Como é que poderemos analisar corretamente essa questão e decidir a disputa antes de termos ouvido ambas as partes? Que o líder desses jovens exponha o que tem a dizer.

Íolas ergueu-se dos degraus do altar, inclinou-se respeitosamente perante os reis e disse-lhe:

— Ó reis de Atenas, nobres filhos do grande Teseus, fiel amigo de Héracles, nosso parente. Pela primeira vez vejo que estou numa cidade livre, pois aqui impera o direito de falar e ouvir. Em outros lugares, meus protegidos e eu fomos expulsos sem que nos ouvissem. Euristeus expulsou-nos de Árgos, não permitindo que ficássemos sequer mais uma hora em suas terras. Como pode ele ainda chamar-nos de seus súditos ou alegar qualquer direito sobre mim e esses jovens, se nos privou de todos os nossos direitos? Acaso um refugiado de Árgos também fica proibido de pisar em todo e qualquer lugar da Hélade? Não, pelo menos não em Atenas! Os habitantes desta cidade heróica não irão expulsar de suas terras os filhos de Héracles. Nem vós, ó reis, tenho certeza. Vosso pai, Teseus, deu-nos asilo e um lugar para vivermos em Maratona, mas tivemos que deixar a cidade por nos sentirmos pressionados e inseguros. Aqui, Zeus e o povo ateniense nos protegem.

E, virando-se para os Heráclidas, disse-lhes:

— Consolai-vos, filhos, estamos no reino da liberdade. Aqui encontramos nossos parentes, pois, os reis desta terra não estão recebendo estrangeiros, pois, tanto Teseus como Héracles eram ambos netos do grande rei Pélops. E lembrai-vos, também, ó nobres reis, que Teseus, vosso pai, foi tirado do reino de Hádes graças ao nosso pai e senhor Héracles.

Copreus retrucou:

— E daí? Sou legítimo filho de Pélops e...

— Pois não sabes honrar a teu pai. Ao invés, serves a um rei injusto e cruel.

As palavras do jovem rei Acamas chocaram Copreus, que ficou paralisado, sem saber o que dizer. Mas Demofóon tinha na boca as palavras certas:

— Três motivos levam-nos a acatar o teu pedido, senhor Íolas. Primeiro, Zeus e este altar sagrado; depois, o nosso parentesco; e, por fim, todo o bem que Héracles fez a nosso pai. Estamos cercados por vistas grossas, inimigos que pretendem apossar-se deste país, porque o invejam. Se permitíssemos que fôsseis levados à força desse altar, estas terras deixariam de ser as da liberdade, do respeito aos deuses e da virtude! Por isso, mensageiro, volta para Micenas e anuncia ao teu senhor que jamais permitiremos que leves esses refugiados!

Copreus, erguendo de maneira ameaçadora o seu bastão de mensageiro, disse-lhes:

— Vou-me embora, mas sabeis que voltarei com o exército argivo. Dez mil escudeiros aguardam apenas um sinal de meu rei. Eu mesmo os comandarei. O exército já está de prontidão nas fronteiras.

— Vai, e não voltes. Não temos medo nem de ti nem de tua Árgos!

Os filhos de Héracles, então, que formavam um exército, ergueram-se alegremente do altar e saudaram seus generosos salvadores. Íolas tomou mais uma vez da palavra e em nome deles agradeceu aos cidadãos de Atenas.

Os reis de Atenas deram início aos preparativos para receberem de armas em punho as hostes de seu novo inimigo. Reuniram os videntes e mandou que se fizessem oferendas solenes. Queriam acomodar Íolas e seus protegidos no palácio, mas Íolas declarou que não pretendia deixar o altar de Zeus e que ficaria ali com seus homens a fim de orar pela salvação da cidade.

— Só depois de conquistar a vitória, com a ajuda dos deuses, é que concederemos descanso a nosso corpos cansados, sob o teto de vossa hospitalidade.

Entrementes, os reis subiram à torre mais alta do palácio e dali observaram o avanço do exército inimigo. Reuniram então os guerreiros atenienses, fizeram todos os preparativos para a guerra, aconselharam-se com os videntes e estavam prontos para fazer as oferendas solenes. Demofóon então chegou, com passos rápidos e expressão transtornada, e aproximou-se de Íolas.

— Que faremos, amigos? Embora nosso exército esteja armado e pronto para enfrentar os argivos, os videntes afirmam que a vitória só se dará sob uma condição impossível de ser satisfeita. O Oráculo disse que não devemos sacrificar bezerros nem bois, e sim uma donzela da mais nobre estirpe. Só assim poderemos obter a vitória. Como faremos uma coisa dessas? Qual o pai que irá suportar tal condição? Que cidadão me entregaria sua filha? Isso provocaria uma revolta sem tamanho...

Os Heráclidas ouviram assustados as palavras de seu protetor. E Íolas complementou:

— Ai de nós! Somos como náufragos que, tendo chegado a uma praia, são novamente arrastados para o alto-mar por uma tempestade! Vã Esperança, por que nos acalentaste com teus sonhos? Estamos perdidos, meus filhos. Ele agora nos entregará, e não podemos sequer censurá-lo por isso!

Subitamente, contudo, um brilho de esperança luziu nos olhos de Íolas.

— Sabes o que nos haverá de salvar, nobre rei? Entrega-me a Euristeus, no lugar dos filhos de Héracles. Ele decerto preferirá matar vergonhosamente a mim, que fui o fiel acompanhante do filho de Zeus. Estou ficando velho, e é com alegria que sacrifico a minha vida por esses jovens!

— Tua oferta é nobre, mas não nos ajuda em nada. Achas mesmo que Euristeus se dará por satisfeito com a tua morte? Não, ele quer exterminar os descendentes de Héracles. Se tiveres alguma outra ideia, diz. Esta não serve para nada.

Os altos lamentos provocados pelo cruel Oráculo chegaram ao palácio real, onde se encontravam Alcmena e Macária, mãe e filha de Héracles, protegidas dos olhares dos curiosos. Alcmena, já muito velha e senil, nada percebia do que estava acontecendo lá fora. Mas sua neta ouvia os lamentos. Temendo pelo destino de seus irmãos, correu para a praça do mercado. Permaneceu escondida durante algum tempo no meio da multidão e assim inteirou-se da situação em que se encontravam a cidade e os filhos de Héracles, assim como do terrível oráculo. Os Heráclidas tinham de enfrentar uma nova dificuldade. Como o Oráculo declarasse que a vitória sobre Euristeus dependia do sacrifício de uma vítima humana, feminina, da parte dos filhos de Héracles, decidiram fazer um sorteio.

Com passos firmes, dirigiu-se aos reis de Atenas e propôs:

— Vós estais procurando uma vítima que vos permita alcançar a vitória na guerra, evitando que os filhos de Héracles sejam assassinados pelo tirano de Árgos. Esquecestes de que a filha de Héracles também está entre vós? Pois sou Macária, a filha mais velha de Héracles e Dejanira. Estou pronta para ser sacrificada e tenho certeza que os deuses me aceitarão, pois o faço voluntariamente. Se a cidade vai combater pelos descendentes de Héracles, sacrificando assim centenas de seus filhos, será que não haverá entre os descendentes do herói uma só pessoa disposta a morrer para assegurar essa vitória? Não seríamos dignos de ser salvos se nenhum de nós pensasse assim!

Íolas e todos os que estavam à sua volta permaneceram silenciosos por muito tempo. Por fim, o líder dos Heráclidas disse:

— Tu provaste seres digna de teu pai. Mas parece-me que seria mais justo se todas as donzelas de tua família se reunissem e sorteassem qual delas deve morrer pelos seus irmãos.

Mas retrucou Macária jubilosamente:

— Não quero morrer em virtude de um acaso, meu primo, senão por livre e espontânea vontade. Mas não hesiteis mais para que o inimigo não vos surpreenda, revogando o Oráculo.

E assim, acompanhada das mais nobres mulheres de Atenas, a nobre donzela entregou-se voluntariamente à Morte, num sacrifício, e, onde morreu, perto de Maratona, nasceu uma fonte, que levou o seu nome: Macária, “a bem-aventurada”.

Admirados, o rei e os cidadãos de Atenas a seguiram com o olhar. Mas o Destino não lhes permitiu refletir sobre o que acontecia. Mal Macária desapareceu, um mensageiro chegou correndo ao altar com uma expressão de contentamento.

— Onde está Íolas? Tenho uma mensagem amistosa para ele. Onde está Íolas?

Este ergueu-se do altar, mas não conseguiu ocultar a dor que ainda sentia. E perguntou-lhes o mensageiro:

— Não me conheces mais? Sou o velho criado de Hilo, filho de Héracles e Dejanira. Tu sabes que meu senhor separou-se de vós quando fugia em busca de aliados. E agora ele acaba de chegar com um poderoso exército.

Ao ouvir essa notícia, os refugiados ficaram exultantes, assim como os cidadãos de Atenas. Íolas não vacilou um momento sequer. Mandou que lhe trouxessem armas e protegeu seu corpo com uma armadura. Entregou os filhos e a avó de seu amigo aos cuidados dos mais velhos dentre os atenienses, que ficariam no interior da cidade. Com o jovem exército e os reis Demofóon e Acamas, saiu para juntar-se ao exército de Hilo. Quando o exército estava pronto para o combate e eles se viram diante das infinitas fileiras do poderoso exército do rei Euristeus, Hilo desceu de sua carruagem de guerra, colocou-se no meio do espaço estreito que o a hoste argiva deixara livre e gritou para o rei dos argivos:

— Príncipe Euristeus, antes que comece esse inútil derramamento de sangue e duas cidades entrem em guerra por causa de umas poucas pessoas, ouve a minha sugestão: decidamos nós dois a luta num duelo honesto. Se eu cair, tu terás o direito de levar contigo os meus irmãos e fazer com eles o que quiseres. Mas, se tu fores derrotado, então que as honras ao pai deles e teu domínio sobre o Peloponeso sejam asseguradas a mim e a todos os descendentes de Héracles.

O exército de aliados aprovou por aclamação esta sugestão, enquanto as hostes inimigas também murmuravam, concordando. Só Euristeus, que já dera provas de sua covardia diante de Héracles, mais uma vez não ousou colocar em jogo a própria vida e não deixou o abrigo proporcionado pelas fileiras de soldados sob o seu comando. Copreus, lembrando-se das palavras do rei Acamas, entristeceu pela escolha que fez, servindo um rei como Euristeus.

Mas Hilo não obteve resposta e teve que voltar para junto de suas tropas. Os videntes fizeram oferendas e logo ecoou o grito de guerra. E Demofóon soltou a voz:

— Cidadãos! Lembrai-vos de que estais lutando pela vossa própria cidade, a cidade que vos deu a vida e vos dá alimento!

Do outro lado, Euristeus, pela boca de Eumolpos, seu comandante, exortava os seus a não envergonharem Árgos e Micenas. As trombetas atroavam, escudos chocavam-se, as carruagens retumbavam, as lanças eram atiradas, espadas chocavam-se, e em meio a todo esse clamor ouviam-se os gritos dos feridos. Num primeiro momento, os aliados dos Heráclidas recuaram ante o ataque das lanças argivas, que ameaçavam romper as suas fileiras, mas logo conseguiram afastar os inimigos e avançar. Começou então um embate corpo a corpo que por longo tempo deixou a batalha empatada. Mas, por fim, as fileiras dos argivos foram derrotadas e seus guerreiros, pesadamente armados, fugiram em debandada, com Euristeus à frente, que nem ao menos havia enfrentado um só inimigo ou atirado uma única lança. Este, apavorado, fustigava com toda a força os cavalos que puxavam o seu carro, e fugia em direção de Micenas.

Então Íolas também foi tomado pelo desejo de guerrear, e justamente quando Hilo passava a seu lado, em seu carro de guerra, estendeu-lhe a destra e pediu para subir no carro, em lugar dele. Hilo cedeu respeitosamente o lugar ao amigo e apeou. Não era fácil para Íolas, que passava a comandar guerreiros, dominar as duas parelhas de cavalos mas, decidido, tocou os cavalos. No santuário de Atena, que ficava na estrada para Maratona e nas proximidades de Palene, avistou ao longe a carruagem de Euristeus em fuga, mas já se sentia velho demais para persegui-lo e matá-lo; já haviam-se passado muitos anos depois que os Heráclidas haviam sido expulsos da Argólida. Íolas, porém, pretendia castigar Euristeus, mas estava para morrer e sem forças para tanto. Mesmo assim, decidido, levantou preces a Zeus para que lhe concedesse, apenas por um dia, sua antiga juventude e a sua força. E o milagre aconteceu: duas estrelas desceram do céu, colocaram-se sobre os arreios dos cavalos e ao mesmo tempo a carruagem inteira foi encoberta por uma densa neblina. Isso durou apenas alguns minutos; logo as estrelas e a neblina tornaram a desaparecer. Héracles e Ivi, deuses do Olimpo, com o consentimento de Zeus, lhe devolveram, a rogo seu, a força e a juventude.

Íolas estava rejuvenescido, com os cachos castanhos, a postura ereta e os braços fortes de um jovem guerreiro. Com as mãos firmes segurava as rédeas das duas parelhas, e assim corria em grande velocidade com a sua carruagem, e ele pôde incitar os seus a levantar um combate contra Micenas. Imediatamente, com todo o seu vigor, conduziu os cavalos num terrível galope e, como um raio, alcançou a meia distância o aterrorizado Euristeus na entrada de um vale através do qual o argivo pretendia fugir, junto dos Rochedos Cirônicos. Euristeus não reconheceu o homem que o perseguia e desviou-se de sua carruagem, mas Íolas levou a melhor e, então, antes que o argivo pudesse alcançar as portas da cidade, Íolas estendeu para trás o braço robusto e atirou sua lança com tanta força, que atingiu um de seus cavalos, poupando-o da Morte. Mas obrigou-o a descer da carruagem, bateu-lhe no rosto, amarrou-o e levou-o consigo para as hostes aliadas, como troféu de guerra.

Enquanto isso, o heráclida Hilos, com seu exército, penetrou nos domínios da cidade e invadiu o palácio. Neste ataque, morria também a filha do rei, Perímede, e seus fiéis parentes foram massacrados. A batalha estava vencida, e o exército desordenado dos argivos pôs-se em fuga, e logo não restava um só inimigo no solo da Ática.

O exército dos vencedores chegou a Atenas e Íolas, voltando a assumir a sua forma natural, conduziu o humilhado perseguidor dos Heráclidas, com as mãos e pés atados, à presença da mãe de Héracles. Só então Euristeus percebeu que havia sido Íolas que o havia capturado.

— Enfim chegaste, rei dos injustos!

Euristeus, como sempre um covarde, cabisbaixo, só ouvia o que a velha Alcmena lhe dizia.

— Depois de tanto tempo, eis que te alcança a justiça dos deuses! Olha teus inimigos nos olhos, Euristeus!

O rei vencido levantou os olhos.

— Então foste tu quem perseguiu meu filho ao longo de tantos anos, humilhando-o e impondo-lhe tarefas difíceis e cruéis; foste tu quem o mandou matar serpentes venenosas e leões famintos, para que ele tombasse; foste tu quem o mandou descer até Hádes para que ali perecesse? E agora tu pretendias expulsar a mim, a mãe dele, e aos seus filhos de toda a Hélade? Mantém os olhos em mim, rei das víboras!

Euristeus ergueu novamente os olhos, temendo que o maltratassem.

— É, Euristeus, encontraste uma cidade e um povo livres do teu poder, que não tiveram medo de ti. Agora morrerás, e deves dar-te por satisfeito de morrer simplesmente, pois merecias ser torturado lentamente até a morte!

Euristeus conteve-se e falou com calculada frieza:

— Não estou tentando evitar a Morte. Só quero falar uma coisa para me justificar: não foi por minha própria vontade que persegui Héracles. A deusa Héra foi quem me encarregou de travar essa batalha, e tudo o que fiz foi por ordem dela. Mas como eu me tornei, embora a contragosto, inimigo de um poderoso homem e semi-deus, tinha que fazer de tudo para me proteger do seu ódio. Por isso, depois de sua morte pus-me a perseguir os seus descendentes, meus inimigos, já que são os vingadores de seu pai. Faze comigo o que bem entenderes, não me importa ter que deixar esta vida, pois não me arrependo do que fiz.

Assim falou Euristeus, que parecia aguardar serenamente o seu infortúnio. Mas o próprio Hilo pronunciou-se a favor do prisioneiro, e os cidadãos de Atenas invocaram a generosidade de sua cidade, que costumava perdoar os criminosos vencidos. Alcmena, porém, permaneceu inflexível. Pensou em todos os sofrimentos que seu filho tivera que suportar na terra enquanto fora servo daquele rei cruel. Lembrou-se da morte de sua querida neta, que se sacrificara voluntariamente para assegurar a vitória sobre Euristeus, retratou o destino que se teria abatido sobre ela e sobre todos os seus netos se Euristeus fosse agora o vencedor, e não um prisioneiro.

— Não, ele deve morrer.

Euristeus então voltou-se para os atenienses e disse:

— A vós, senhores, que pedistes misericórdia, minha morte não haverá de trazer mal algum. Se me enterrardes de maneira honrosa no lugar onde fui alcançado por meu perseguidor, no Templo de Atena em Palene, então, como um hóspede propício, vigiarei as fronteiras de vosso país para que nunca sejam atravessadas por nenhum exército inimigo. Pois sabeis que algum dia os descendentes destas crianças e destes jovens que agora protegeis vos atacarão, pagando com o mal pelo bem que vós agora fazeis. E então eu, o inimigo jurado dos descendentes de Héracles, serei o vosso salvador.

Euristeus foi levado para fora da cidade, onde morreria com dignidade, a seu pedido. E uma espada lhe cortou a garganta. O corpo caiu e sua cabeça ficou suspensa nas mãos de um soldado ateniense.

A cabeça de Euristeus foi levada, às ocultas, até Alcmena, matriarca dos Heráclidas, que deu o ultimato: arrancou-lhe os olhos com os fusos. Em seguida, reuniram o corpo e a cabeça do rei e enterraram perto de Palene, sob a estrada que conduzia a Atenas, para proteger a cidade. Em seguida, levantaram um túmulo e realizaram seu funeral. Afinal, por mais crimes que ele tivesse cometido contra Héracles e seus filhos, os vencedores não o deixaram sem sepultura.

Após a morte de Euristeus, Alcmena preparou-se para partir. Ela e seu neto Hilos foram para Tebas, depois para Ocálea, aonde passaram a viver até o fim de seus dias. Já o restante dos Heráclidas, prometendo eterna gratidão aos reis de Atenas, deixaram a cidade, conduzidos por Íolas, e foram viver em Tebas, por algum tempo.

Quanto a Acamas e Demofóon, algum tempo depois, pressionados por conspirações da parte dos fiéis a Menesteus, seguindo o exemplo do pai Teseus, deixaram o país e foram buscar asilo no país do rei Eléfenor, na Eubéia.

A MORTE DE TESEUS

Licômedes era o soberano da ilha de Ciros, e Teseus, chegando lá, foi ter com seu primo e pediu-lhe que lhe entregasse suas propriedades para que ele pudesse estabelecer-se no país, onde mais tarde pretendiam morar os seus filhos e a sua mãe, Aetra. E foi atendido. No entanto, estando a par das notícias que vinham de Atenas, o rei Licômedes não esquecera da amizade que fizera com Menesteus.

Então, Menesteus, percebendo que a Ática era alvo de mudanças e necessitava de um braço forte, aproveitando a ausência de Teseus, incitou a conspiração e usurpou o trono de Atenas, e obrigou Acamas e Demofóon a abandonarem o país. Estes, temendo perseguições, decidiram seguir para a ilha de Creta, onde reinava Deucálion, amigo e aliado do pai Teseus. Talvez pudessem reunir forças para recuperar o trono. Seria uma questão de tempo.