A Guerra de Tróia

Deífobos, pesaroso pela morte de Ásios, aproximou-se de Idomeneus e arremessou contra ele a lança. Idomeneus, virando-se, conseguiu esquivar-se, encolhendo-se inteiramente atrás do escudo. A mesma lança foi atingir Hipsénor, filho de Hípasos, abaixo do fígado, fazendo-o tombar por terra. Deífobos, mesmo assim, se satisfez:

— Ásios foi vingado e partirá para a casa de Hades com uma escolta argiva.

Antílocos, ouvindo aquilo, enfureceu-se, Mais que depressa foi colocar-se sobre Hipsénor, a fim de protegê-lo com o escudo. Mecisteus, filho de Équios, e o valente Alástor abaixaram-se e levaram o cadáver, que ainda gemia, para os navios.

Idomeneus, sempre desejoso de abater um troiano, avistou Alcátous, filho de Eséjetes e genro do ancião Anquises; casado com Hipodâmia, era cunhado do dárdano Enéias. Poseidon cegou-lhe, e Alcátous, perdido no campo de batalha, permaneceu imóvel, servindo de alvo fácil de Idomeneus, que arremessou sua lança sobre o peito do inimigo, rompendo-lhe a couraça. Perfurado pela lança, deu um grande grito; ela lhe alcançou o coração. E caiu por terra. Idomeneus, exultante, gritou para Deífobos:

— Deífobos, isto é justo, três mortos por um só? Vem, encara-me, para que possas saber que espécie de homem sou: o grande Zeus gerou Minos, o rei de Creta, que teve descendentes famosos, até que Licastos gerasse meu pai, Deucálion. Agora, tens a mim, e, como vês, nossos navios cretenses trouxeram a maldição para ti, teu pai e a todos os troianos.

Deífobos ficou hesitante, sem saber se recuava ou se arriscaria sozinho. Começou a procurar por algum herói mais poderoso que o ajudasse; e viu Enéias, que estava na retaguarda lutando. Deífobos recuou e foi procurá-lo.

— Enéias, deves agora socorrer teu cunhado, se tens compaixão. Acompanha-me, vamos proteger o corpo de Alcátous, teu cunhado, que outrora recebeu-te em sua casa, quando eras pequeno. Idomeneus tirou-lhe a vida.

Enéias, ansioso para enfrentá-lo, seguiu Deífobos e logo viu-o no campo de batalha. Idomeneus não se amedrontou nem recuou. Chamou seus camaradas, voltando-se para Ascálafos, Afareus, Deípiros, Meríones e Antílocos.

— Vinde e ajudai-me, pois estou só. Temo Enéias, que se aproxima. Ele é muito mais forte que muitos nesta guerra e é mais moço que eu. Se eu tivesse a idade conforme meu espírito, eu ou ele conquistaríamos a glória.

E Enéias, vendo que se aproximavam aqueles guerreiros, também procurou ajuda entre os seus. Deífobos chamou Páris Alexandre e Agenor para auxiliá-los. E, atrás deles, seguiram-nos outros troianos. Então, em torno de Alcátous eles se enfrentaram. Enéias arremessou a lança contra Idomeneus, que esquivou-se, e aponta da lança cravou-se no chão. Idomeneus, surpreendido por Enômaus, virou-se e, com a lança, sem atirá-la, feriu-o no ventre. Tirando a lança de seu corpo, Enômaus caiu e morreu. Idomeneus não conseguiu despojar suas armas, pois os troianos atiraram suas lanças, e teve que recuar. Deífobos atirou contra ele a lança, mas errou o alvo. Em vez disso, foi atingir Ascálafos, filho de Áres, atravessando-lhe o ombro, que não resistiu e morreu com as mãos estendidas no chão. Deífobos, rapidamente, arrancou o elmo do cadáver, mas Meríones investiu contra ele e feriu-lhe o braço com a lança, e Deífobos teve que largar o elmo. Meríones investiu de novo e retirou a lança do braço de Deífobos, arrancando-lhe um grito, e recuou para os seus. Surgiu, então, Polites, irmão de Deífobos, e foi socorrê-lo: passou os braços em torno de sua cintura e conduziu-o para o seu carro. Levaram-no para a cidade, gemendo de dor.

Enéias investiu contra Afareus, filho de Cáletor, e cravou-lhe a lança no pescoço, matando-o. Antílocos, muito atento, investiu contra Tóon, pelas costas, e cortou-lhe a veia que corre perto da nuca. Tóon caiu de costas, no pó, estendendo ambos os braços para seus camaradas, e morreu. Antílocos, mais que depressa, despojou-o da armadura, olhando para os lados por causa de alguma cruel surpresa. Lanças caíram sobre ele, mas nenhuma o feriu. Eis que Poseidon protegeu o filho de Nestor.

Antílocos, ao avançar entre as hostes, novamente, foi perseguido por Ádamas, filho de Ásios, que atingiu o seu escudo no centro, atacando-o de perto. Mas, protegido por Poseidon, a lança não chegou a atravessar o escudo, pois a ponta quebrou-se. Ádamas recuou, amedrontado, mas, quando se retirava, Meríones seguiu-o e feriu-o no ventre, abaixo do umbigo. Ali cravou a lança. Ádamas caiu sobre ela e, respirando convulsivamente, contorceu-se, até que Meríones arrancasse a lança e a escuridão velasse os olhos do troiano.

Hélenos feriu Deípiros de perto, na têmpora, com uma grande espada trácia, e arrancou-lhe o elmo, que caiu, e os aqueus o apanharam do chão. E a tenebrosa Noite cerrou os olhos de Deípiros.

E o átrida Menelaus enfureceu-se e avançou contra Hélenos, filho de Príamos. Hélenos preparou-se com um arco e atirou, ao mesmo tempo que Menelaus atirava a lança. A seta atingiu Menelaus no peito, sobre a couraça, e não o feriu, por sorte, pois foi desviada. Mas a lança de Menelaus foi atingir e atravessar a mão de Hélenos, a mesma que segurava o arco. Hélenos recuou, evitando a Morte. Agenor tirou a lança e envolveu a mão do herói num pano de lã, que outro lhe trouxera.

Então Pisandros investiu contra o glorioso Menelaus. Este, atirando a lança, errou o alvo, já Pisandros atingiu o escudo do átrida, mas não o atravessou, e a ponta quebrou-se. Pisandros sentiu-se sentiu-se vitorioso. Menelaus, cantando, desembainhou a espada de punho de prata, enquanto que Pisandros tirou de trás do escudo uma acha de bronze, de cabo comprido. Pisandros atacou primeiro, atingindo a acha na aba do elmo de Menelaus, que não se feriu nem recuou, investiu mais forte e feriu o troiano na testa, logo acima do nariz, fazendo-o desabar com as costas no chão, aos seus pés. Menelaus apoiou o calcanhar em seu peito e despojou-o das armas, vangloriando-se:

— Assim deixareis os navios dos argivos, troianos arrogantes. Não bastam outras infâmias e ultrajes que me fizestes? Não tivestes temor da ira de Zeus, que algum dia destruirá vossa cidade. Raptastes minha esposa e roubastes meus tesouros, quando ela mesma vos entreteve. E agora quereis lançar o fogo aos navios e matar-nos a todos, só que não conseguireis, apesar de todo o vosso amor a Áres.

E, erguendo a cabeça, com os despojos nas mãos, dirigiu-se a Zeus:

— Pai Zeus, dizem que estás acima de todos em sabedoria, entre os deuses e os homens, e que todas essas coisas partem de ti. Que estranha benevolência é essa que mostraste para com esses homens insolentes, cujo poderio é sempre arbitrário, que jamais acham suficiente a guerra!? Tudo causa saciedade: o Sono, o Amor, as Canções, a Dança... que aprazem mais o homem que a guerra, menos os troianos!

E Menelaus entregou os despojos aos camaradas. Logo, foi-se misturar com as fileiras mais avançadas. Harpálion, filho de Pilaemenes, investiu contra ele. O jovem guerreiro, aliado de Tróia, com sua lança, atingiu o escudo de Menelaus no centro, perto da mão, mas não o atravessou. Vendo que falhara, recuou, fugindo para o meio dos seus. Meríones, vendo-o, disparou contra ele uma seta, atingindo-o na nádega direita. A seta penetrou na bexiga, embaixo do osso. Ele caiu nos braços de seus camaradas, desabando no chão. Os seus paflagonianos levantaram-no e colocaram-no em um carro, e levaram-no para Ílion.

Páris grandemente se irou, pois o jovem era seu amigo, entre muitos dos paflagonianos. Irado, disparou uma seta contra Euquenor, filho do adivinho Políidos. Páris atingiu-o abaixo do maxilar e do ouvido, matando-o. Assim se cumpriu uma das possibilidades sobre o seu destino. Em Corinto, onde morava, antes de partir, Políidos, seu pai, previra sua morte. Se ficasse em Corinto, morreria de grave moléstia em seu palácio, ou seria morto, entre os navios dos aqueus, em Tróia.

Heitor nada sabia sobre o triunfo dos dânaos à esquerda dos navios. Heitor lutava contra os salamínios de Ájax e os tessálios de Podarces, o irmão do já falecido Protesilaus. Nesse ponto, a muralha era mais baixa. Também lutavam contra Heitor os beócios, os jônios, os lócrios, os pítios e os epeus, mas não conseguiram evitar seu ataque. Os jônios (áticos) eram liderados por Menesteus, rei de Atenas, e, com eles, estavam Feidas, Estíquios e o bravo Bias. Os epeus eram comandados por Méges, filho de Fileus, por Anfíon e por Drácios. À frente dos pítios (tessálios) estavam Médon, meio-irmão do lócrio Ájax, e o resoluto Podarces, de Fílace. Ájax, filho de Oíleo, lutava ao lado de Ájax, filho de Télamon. Os seus lócrios se encontravam na retaguarda, atirando setas à longa distância, pois eram aparentemente fracos, não tinham elmos de bronze com penachos, nem tinham escudos para sua proteção. Os salamínios estavam entre as primeiras fileiras.

Polídamas, dando-se conta da dificuldade de avançar, chamou Heitor:

— Heitor, sei que não aceitas facilmente qualquer conselho, pois os deuses te deram excesso de coragem, mais do que a outros de Tróia, e também por isso queres ser mais sábio que os demais também no conselho. Não, não podes ter tudo de uma só vez: a uns, os deuses dão a habilidade da guerra, a outros o dom das artes. Mas Zeus dá também a muitos um nobre espírito, do qual muitos homens podem tirar proveito. Direi, portanto, o que me parece o melhor, pois um círculo de guerra se estende por toda a parte, em torno de ti, enquanto que outros troianos, em menor número, perecem em outros lugares, espalhados entre os navios. Recua um pouco e convoca todos os teus melhores homens para um conselho. Temos que decidir se devemos investir contra os navios ou se recuamos. Eis que receio que os aqueus compensem as perdas de ontem, já que permanece junto dos navios um homem insaciável de guerra.

Heitor, finalmente convencido pelas prudentes palavras de Polídamas, desceu do carro, dizendo-lhe:

— Polídamas, conserva aqui todos os melhores homens. Irei enfrentar a batalha e voltarei depois de ter dado as ordens devidas.

Assim falou e começou a correr entre os teucros e seus aliados. Os heróis avisados, os chefes, correram para junto do filho de Pantous. Heitor procurava encontrar Deífobos, Hélenos, Ádamas e seu pai Ásios, filho de Hírtacos. Só não encontrou todos vivos: alguns estavam estendidos perto das popas dos navios, mortos pelas mãos dos argivos, e outros se encontravam feridos, longe de seus olhos, ausentes da batalha. Páris Alexandre, ao mesmo tempo, estava incitando os seus à batalha. Heitor viu-o e dele aproximou-se, falando-lhe com tom de irritação:

— Páris, o mais belo dos troianos, sedutor de mulheres, onde estão Deífobos e o valoroso Hélenos, e Ádamas e seu pai Ásios? Onde está Otrioneus? Onde estão os grandes chefes? Parece que agora Ílion está condenada, desde o alto até os alicerces. A destruição é inevitável, mas também cairá sobre ti o Destino. Vem lutar, enquanto os demais se reúnem em conselho.

— Heitor, já que estás disposto a censurar quem não merece censura, devo dizer-te que outro dia me mostrarei mais inclinado a afastar-me da guerra, eis que minha mãe não me gerou inteiramente sem valor. Desde que levaste teus camaradas a travar batalha junto dos navios, não cessamos de combater. Ádamas, Ásios, Otrioneus e tantos outros valorosos chefes já se encontram mortos. Apenas Deífobos e Hélenos, nossos irmãos, partiram, feridos, para a cidade, protegidos pelo grande Zeus, que os protegeu contra os inimigos. Agora determina o que teu coração e teu espírito te ditarem: te seguiremos prontamente, enquanto ainda tivermos forças, pois não somos imortais, e não te queixarás da minha coragem.

Sem mais nada dizer, ambos correram para junto de Palmis, Cebríones, Polídamas, Falces, Ortaeus, Polífetes, Ascânios e Móris, a fim de auxiliá-los. E os troianos investiram ainda com mais força, incitados por Zeus. Heitor seguiu na frente, pensando causar temor no peito dos inimigos; mas estes não se intimidaram, e Ájax desafiou-o:

— Vem, troiano louco! Por que tentas amedrontar os gregos? Não somos guerreiros inexperientes, mas fomos sim provados pelo pior flagelo de Zeus. Estamos dispostos a defender nossos navios, custe o que custar. Muito antes tua bela Tróia será conquistada e cairá desamparada em nosso poder. Afirmo-te que está chegando o dia em que fugirás e implorará aos deuses proteção, a fim de escapares ileso da batalha.

Quando disse estas palavras, uma águia voou para a sua direita, e a hoste dos aqueus levantou aclamações, alentada pelo presságio. E Heitor retrucou:

— Ájax, tagarela insolente, gabola, tu falas demais! Se eu fosse filho legítimo de Zeus, e se Héra me tivesse gerado, eu seria reverenciado como são Atena e Apolo, e certamente este dia te trará a desgraça, a ti e a todos os argivos, se te atreveres a enfrentar-me. Será comida farta às aves de rapina, pois cairás junto dos navios.

E Heitor, gritando, ergueu a lança, e todos os troianos avançaram fortemente contra os dânaos. Ájax fez o mesmo. Os gritos de ambos os lados subiram até o éter e à radiosa morada de Zeus.

A AJUDA DE POSEIDON

Enquanto continuava furiosa a luta, o velho Nestor, sentado à mesa, na sua tenda, honrava o médico e herói Macáon, que estava se recuperando de um ferimento. Ouvindo, no entanto, cada vez mais perto e mais forte o grito de guerra, enquanto bebia, disse à Macáon:

— Que achas, Macáon, que deve ser isso? Há uma grande gritaria perto daqui. Permanece sentado e bebe vinho, até que a loura Hecamede prepare um banho quente para ti, enquanto eu vou ver o que se passa.

Hecamede, ouvindo estas palavras, pôs mãos à obra. Nestor, imediatamente, serviu-se do escudo do filho Trasímedes, enquanto este usava o escudo do pai, em campo de batalha. Empunhou uma lança e saiu da tenda, para então ver um espetáculo lamentável, um lado em confusão e o outro avançando furiosamente, e a muralha parcialmente em pedaços. Nestor, meio indeciso, resolveu procurar Agamémnon. No caminho, encontrou-se com três reis feridos: Diómedes, Ulisses e o próprio Agamémnon; todos apoiados em suas lanças. Nestor tentou confortá-los, mas o átrida disse-lhe:

— Nestor, filho do famoso Neleus, por que deixaste a batalha e aqui vieste? Receio que Heitor concretize a ameaça que fez, a de que não regressaria dos navios à Tróia sem incendiá-los e matar-nos. E agora, tudo isso parece que irá acontecer, e os dânaos acalentam contra mim rancor em seus corações, como Aquiles, e não combaterão junto às popas dos navios.

— Tudo isso já aconteceu e nem mesmo Zeus pôde alterar, eis que a muralha dos aqueus caiu, a mesma em que confiávamos que seria um baluarte inexpugnável. Os troianos lutam incessantemente junto dos navios, e nenhum de vós podereis dizer, por mais que olheis, de que lado os aqueus fogem, tal a confusão com que são mortos e o clamor sobe ao Céu. Consideremos o que deve ser feito, se é que a reflexão possa ser útil. Não proponho, porém, que entreis na batalha, pois não podeis combater feridos.

— Nestor, já não tenho esperança, visto que o fosso que tanto trabalho nos custou, a muralha que seria um baluarte inexpugnável, tanto para os navios quanto para nós mesmos, de nada nos adiantou, creio que seja a vontade de Zeus que os aqueus perecem anonimamente aqui, longe da Hélade. Eis que percebi quando ele defendeu os gregos, mas agora exalta os nossos inimigos e ata nossas mãos com poderosas correntes. Será melhor lançar os navios ao mar, os que pudermos salvar, até que desça a divina Noite, na esperança de que os troianos cessem a perseguição. Assim, poderemos nos livrar do pesadelo. É preferível fugir e escapar do que ser apanhado ou morto.

Ulisses, encarando-o com desdém, replicou:

— Átrida, que palavras escaparam entre teus dentes?! Covarde! Melhor seria se comandasses outro exército sem glória, e não a nós, a quem Zeus impôs as dolorosas guerras, até que pereçamos. Estás tão ansioso de abandonar este país, para cujo saque sofremos tantas provações? Cala-te, ou algum outro aqueu ouvirá essa proposta, que jamais deveria sair de tua boca, que és um homem que sabe como falar convenientemente e que é portador de um cetro, que te dá o poder de reinar sobre tantos homens, tantos quanto comandas os argivos. Desprezo teus pensamentos, essas coisas que dizes, ordenando-nos, quando a batalha começou, a arrastar para o mar nossos navios, e que seja assegurado o que os troianos almejam acima de tudo, que eles alcancem a vitória a despeito de tudo, e que a cruel destruição caia sobre nós. Eis que os aqueus não resistirão na batalha, se os navios forem arrastados para o mar, e sim tratarão de fugir e abandonar o combate. Então, teu plano nos destruirá, grande chefe!

— Ulisses, atingiste-me bem no coração com tua rude censura. Contudo, nenhum grego se mostra indisposto a cumprir minha ordem de arrastar para o mar seu navio. Oxalá possa alguém, jovem ou velho, sugerir um plano melhor que este. Eu o aconselharia com júbilo.

Então, Diómedes, decidiu argumentar:

— O homem está bem perto, não teremos que procurá-lo. Se estiveres disposto a ouvir, então ouve, porque sou mais moço entre vós, eis que posso vangloriar-me de ser filho do valoroso Tideus, o qual a terra esconde em Tebas.

E dirigiu-se também aos outros:

— Eis que muitos filhos admiráveis teve Tálaos, que viviam em Plêuron e na alcantilada Cálidon, na Etólia: eram Ágrios, Alcátous, Leucopeus, Melas e Oineus, meu avô, que era proeminente entre eles pelo valor. Ali permaneceu, mas meu pai foi viver em Árgos, depois de muitas peregrinações: tal era a vontade de Zeus e dos demais deuses. Oineus escolheu uma esposa entre as filhas do famoso Adrastos e morou em uma casa rica de bens, dispondo de muitas terras. Foi o melhor dos lanceiros na época, sabeis disso também. Portanto, não podeis dizer que sou de baixa condição ou então um covarde, nem desprezar minha proposta, se eu a expuser.

Perguntou-lhe Ulisses:

— Qual é a tua proposta, Diómedes?

— Vamos participar do combate, embora feridos, mas, depois, retiraremo-nos da batalha, para fora do alcance das lanças e das setas, a fim de não perecermos. Incitemos os demais a lutarem, aqueles que antes estiveram na retaguarda, substituindo os da frente.

Foi uma ideia sensata, e os outros prazeirosamente ouviram-no e tomaram uma decisão. Seguiram, então, sob o comando de Agamémnon, em direção do campo de batalha.

O glorioso Poseidon, rei dos mares, não se manteve inativo, mas os acompanhou, sob a aparência de um velho guerreiro. Segurou a mão direita de Agamémnon e disse-lhe:

— Filho de Atreus, suponho que agora o cruel coração de Aquiles rejubila-se em seu peito, enquanto ele contempla a matança e o pânico dos aqueus, eis que ele é desprovido de qualquer sentimento. Que pereça ele e possa Zeus arruiná-lo! Porém, contigo, os deuses já não estão de todo enfurecidos: os próprios troianos hão de levantar o pó da vasta planície, e tu os verás fugindo dos navios e das tendas para a cidade de Tróia.

Logo, um grito estrondoso ouviu-se na vasta planície: era Poseidon, que lançava de seu peito o grito incentivador ao coração dos gregos, despertando-lhes o valor para a guerra.

Héra, ouvindo o grito, voltou-se para a Terra e viu entre os gregos o irmão imortal; isto fez que se rejubilasse. E, olhando para outro lado, viu Zeus assentado no pico mais alto do Ida. Ele não percebera que Poseidon lutava. Héra, então, imaginou como poderia iludir o espírito de Zeus e pareceu-lhe ser melhor fazer-se bela e ir ao Ida, na esperança de que ele a desejasse e a levasse para o leito de Éros, e, com isso, conseguisse lançar sobre seus olhos e sobre seu coração um profundo sono. Assim, distraindo o deus e esposo, ele não veria Poseidon ajudando os gregos. Então, dirigindo-se à sua câmara, que fôra construída por Hefaístos, seu filho, que ela sabia o segredo para abrir a porta, lá entrou e se trancou. Primeiro, com ambrosia lavou todas as manchas de sua linda pele — divinas manchas — e se ungiu com um doce óleo de ambrosia. Arrumou o cabelo louro, trazendo nela belas tranças. Vestiu uma túnica celeste que Atena fizera e lhe oferecera, com desenhos complicados. Prendeu-o com broches de ouro e cingiu um cinto de cem borlas e enfeitou-se com belíssimos brincos de três pendentes, escuros como amoras. Envolveu-se num alvo véu transparente e calcou belíssimas sandálias.

Depois, saiu de seus aposentos e foi procurar Afrodite, a deusa do amor, que, ao vê-la, virou-se para outro lado, mostrando insatisfação.

— Ouve-me, querida, no que tenho a dizer, ou recusarás ouvir-me, irada, porque favoreço os gregos e tu os troianos?

Afrodite, lentamente, e surpresa, voltou o olhar para a rainha dos deuses.

— Héra, venerável deusa, filha do grande Cronos, dize o que tens na alma. Meu espírito me impele a fazer tal coisa, se eu puder e se estiver ao meu alcance.

— Concede-me a beleza e o encanto com os quais conquistas todos os Imortais e também os homens. Eis que vou visitar, nos confins da ubérrima Terra, Océanos e Tétis, que me acolheram e me criaram em sua casa, recebendo-me das mãos de Réia, quando Zeus expulsou Cronos para debaixo da terra e do mar. Vou visitá-los e apaziguar seus desentendimentos, pois há longo tempo que eles dormem separados e a ira apossou-se de seus corações. Se eu conseguir vencer seus corações por meio de palavras e fazê-los dormir juntos, serei sempre querida e honrada aos seus olhos.

Afrodite, desconfiada, disse-lhe:

— Não é possível negar teu pedido, pois és esposa de Zeus, o rei dos deuses.

Assim falando, tirou da cintura a faixa, onde estavam bordados todos os seus encantos. Nela estavam contidas o Amor, a Paixão e a Persuasão, que perturbava a inteligência, mesmo a do mais sensato dos deuses e dos homens. E, entregando-a a Héra, disse-lhe:

— Põe na cintura esta faixa bordada com sutileza. É encantada. Creio que não deixarás de alcançar tudo que teu coração almeje.

Héra sorriu e cingiu-a ao redor da cintura. Afrodite recolheu-se à sua morada, e Héra deixou apressadamente o cume do Olimpo, atravessando a Piéria e a bela Emátia e atravessou as nevadas montanhas da Trácia, sobre os mais altos picos. De Áthos, atravessou o encapelado mar e chegou a Lemnos, onde outrora reinara Toas — pois reinava atualmente na Táurida. Ali, encontrou Hipnos, o deus do sono e irmão de Tânatos, a Morte. Tomando-lhe a mão, disse-lhe:

Hipnos, que governas entre todos os seres da Terra, já atendeste aos meus apelos, portanto atende-me de novo e haverei de ser grata a ti por todos os meus dias. Faze com que os olhos de Zeus durmam, logo que eu esteja deitada ao seu lado no leito de Éros. Dar-te-ei presentes: um belo trono de ouro, indestrutível, que meu filho Hefaístos construirá, e com ele um escabelo, para que possas descansar teus pés.

O deus assustou-se, respondendo:

— Héra, por teu pai Cronos, qualquer outro dos deuses eu faria dormir facilmente, mesmo as correntes dos Rios e do Oceano, que é o pai de todos. Mas não posso aproximar-me de Zeus, nem posso fazê-lo dormir, a não ser que ele me invoque. Eis que uma ordem tua, em outra ocasião, me tornou sensato, o dia em que Héracles, filho de Zeus, partiu de Tróia, depois de havê-la destruído. Eu fiz dormir o senhor dos deuses, lançando a doçura sobre ele, e teu coração maquinou provações contra seu filho, provocando fortes ventanias no mar e lavando-o à bela Cós, distante de sua Pátria. Quando Zeus acordou, enraiveceu-se, chamando todos os Imortais, a fim de pegar-me acima de tudo, e teria me atirado ao mar, se eu não tivesse sido salvo pela minha mãe, Nix, que subjuga os deuses e os homens. Fugi para junto dela, protegido na escuridão, e Zeus cedeu, embora ainda irado, pois receava fazer algo que desagradasse à Noite. E agora, tu me pedes para executar outra ação impossível...

— Mas Hipnos, por que tais pensamentos? Achas mesmo que Zeus favorecerá os troianos ao ponto que o fez ficar enraivecido por causa de seu filho Héracles? Sê ajuizado, e faze-me esse favor. Se o fizeres, dar-te-ei por esposa a mais jovem e formosa das Cárites.

Hipnos, cego pelo Amor, regozijou-se:

— Jura-me, rainha, pelas invioláveis águas do Estige, com uma das mãos toca a dadivosa Terra e com a outra o brilhante Mar, a fim de que possamos ter o testemunho dos deuses inferiores que moram com os Titãs, que me darás Pasitéia, uma das adoráveis Cárites, a qual sempre desejei!...

E Héra fez a promessa. Jurou, como ele pedira, nomeando os deuses inferiores do Tártaros, os Titãs e os demônios das trevas. Depois disso, partiram juntos de Lemnos, passando por Ímbros, envolvidos na névoa. Chegaram ao Ida e ao Lectos, onde deixaram o mar, chegando até uma floresta no sopé do Ida. Hipnos subiu a um pinheiro muito alto, que se erguia no ar acima de todos os outros. Ali se sentou, coberto pelos galhos do pinheiro, como se fosse a Cálcis, uma ave da montanha de voz muito clara, que os homens conheciam pelo nome de noitibó.

Héra, porém, subiu o Gárgaros, um pico alcantilado do Ida, e Zeus viu-a aproximar-se. Éros, o deus do amor, lançou uma seta em Zeus, que encheu seu coração, como se a visse pela primeira vez. Ergueu-se diante dela e disse-lhe:

— Héra, minha esposa, aonde vais, vinda do Olimpo? Não trouxeste teus cavalos e teu carro...

— Vou visitar Océanos e Tétis, que moram nos confins da Terra, que me acolheram e me criaram em sua casa. Vou visitá-los e apaziguar suas infindáveis querelas, pois há muito dormem separados e a ira apossou-se do casal. Meus cavalos estão prontos, no sopé do Ida. E por tua causa vim do Olimpo até aqui, a fim de que não fiques zangado caso não me encontres no Olimpo e saibas que saí sem te avisar.

— Héra, podes ir lá mais tarde. Agora, vem, deitamo-nos aqui mesmo, pois jamais o Amor por uma deusa ou por uma mulher dominou a tal ponto meu coração, nem quando me apaixonei pela esposa de Íxion, que gerou Píritous; nem quando amei Dânae, a filha de Acrísios, da qual tive o filho Perseus, proeminente acima de todos os heróis; nem quando amei a filha de Agenor, Europa, que gerou Minos, Sarpédon e Radamantes; nem quando amei Sémele, que me deu Dionisos, a alegria dos mortais, ou então Alcmena, em Tebas, que gerou meu filho Héracles, o filho que mais amei; nem quando amei Deméter, ou quando amei Leto, nem tu mesma, como agora te amo e a doce Paixão me domina.

A deusa Héra não suportaria por muito tempo se Zeus continuasse a falar de seus casos clandestinos, mas manteve-se firme, pois o rei do Olimpo estava fascinado tomado de atração, nunca antes sentida, pela esposa Héra. Ardilosamente, a majestosa deusa disse-lhe:

— Zeus, meu esposo, temível filho de Cronos, que palavras são estas que dizes? Se desejas deitar-se para o amor nos picos do Ida, seremos descobertos. Que seria se um dos deuses nos visse dormindo juntos aqui e fosse contar aos outros?

— Ora, Héra...

— Eu não poderia levantar-me do leito e ir para a tua casa: seria vergonhoso. Se, porém, realmente desejas, tens uma câmara que nosso filho Hefaístos construiu para ti. Vamos para lá nos deitar...

E o deus, não querendo afastar-se do Ida, propôs-lhe, segurando-a pelos ombros:

— Héra, não receies que algum deus ou homem nos veja, eis que lançarei sobre nós uma nuvem dourada. Não nos poderá ver nem mesmo Hélios, cuja luz é a mais forte que existe.

Assim falou, e o filho de Cronos tomou-a nos braços. Por baixo deles, a divina Géa fez crescer a tenra erva e orvalhadas flores de lótus, açafrão e jacinto, que os sustentaram no alto, afastados do chão, como se flutuassem. Ali se deitaram e, sobre eles, se estendeu uma bela e espessa nuvem dourada, de onde gotejava um orvalho cintilante, envolvendo e ocultando beijos e abraços e tudo o que o Amor proporcionara aos amantes.

Com isso, aos cuidados de Hipnos e Éros, o deus do Olimpo e do Ida dormiu tranquilamente no pico do Gárgaros. Mas Hipnos, em seguida, aproveitando esse momento precioso, voou para os navios dos aqueus, para encontrar Poseidon, e a ele falou:

— Ajuda teus protegidos agora, Poseidon, e glorifica-os o quanto puderes, enquanto Zeus dorme. Eis que eu o envolvi em profundo sono, e Éros envolve Héra em seus braços.

Hipnos, então, cumprida a tarefa, estando visivelmente a favor dos gregos, apressou-se a retornar para a sua morada. Enquanto isso, Poseidon, decidido, tratou de ajudar os gregos. Correu para a linha de frente e ordenou:

— Argivos, iremos outra vez ceder a vitória a Heitor, para que ele possa tomar nossos navios e conquistar a glória? Assim ele diz, vangloriando-se, porque Aquiles continua com a ira no coração ao lado dos navios. Ele não se enganará muito, se nós convocarmos uns aos outros à defesa. Vamos, façamos o que digo. Armai-vos até os dentes e segui para frente do inimigo. Heitor não resistirá, apesar de todo o seu ímpeto.

Os reis Agamémnon, Diómedes e Ulisses, ouvindo aquelas palavras vindas de um guerreiro comum, pois não sabiam que era Poseidon, embora feridos, animaram-se e comandaram seus homens à reação. Poseidon os conduziu, empunhando uma espada semelhante ao raio.

Heitor, então, arremessou o dardo contra Ájax, e não errou, atingindo-o onde as duas correias cruzam no peito, uma do escudo, outra da espada: as correias o protegeram. Para evitar a reação do herói salamínio, Heitor teve que recuar. Mas Ájax apanhou enorme pedra, que servia como uma das escoras de um navio, e atirou-a contra Heitor, que o atingiu no peito, logo acima do escudo, que não o protegeu. Heitor girou várias vezes o corpo cambaleante, até cair no chão. Polídamas, Enéias, Agenor, Sarpédon e Glaucos correram para protegê-lo, pois os argivos ameaçavam matá-lo, atirando contra ele lanças e setas. Seus camaradas levantaram-no e levaram-no para fora da batalha. Seu áuriga levou-o às pressas para a cidade, acompanhado por um guerreiro. Chegando perto do rio Xantos (Escamandros), decidiram parar o carro, eis que Heitor gemia muito alto e, de repente, parou de gritar. Pararam, retiraram-no do carro e o deitaram no chão. Apanharam água do divino rio, criado por Zeus, e jogaram água em abundância sobre ele. Heitor recuperou os sentidos e abriu os olhos de novo e, ajoelhando-se, cuspiu sangue. Depois, deitou-se de costas, no chão, e a escura Noite velou seus olhos.

Quando os argivos viram Heitor sendo retirado, investiram com mais vigor sobre os troianos. Então, o primeiro deles, Ájax, filho de Oíleo, investiu contra Satnoi, filho de Énops e de uma náiade do rio Satnois, e feriu-o com sua lança no flanco. Ele caiu de costas e, em torno dele, troianos e gregos travaram encarniçado combate. Polídamas avançou para protegê-lo e feriu Protoenor, filho de Areílicos, no ombro direito, atravessando-o e fazendo o guerreiro cair aos pés de Ájax, o telamônio. Polídamas vangloriou-se:

— Acho que a lança não partiu em vão: um importante argivo a recebeu no corpo e creio que, apoiado nela, descerá à casa de Hades.

Isto aborreceu os argivos. Ájax, voltando-se ao insolente troiano e vendo Protoenor morto, arremessou a lança contra Polídamas, que se afastava. Este esquivou-se, mas a lança foi atingir Arquílocos, filho de Antenor; a lança pegou-o no ponto em que a cabeça e o pescoço se unem, na vértebra mais alta, cortando-lhe ambos os tendões. E caiu sobre a terra.

Ájax gritou:

— Reflete e responde-me, Polídamas: não é este homem digno de morrer como vingança pela morte de Protoenor? Parece-me que não é covarde nem é filho de covarde, pois assemelha-se ao sábio Antenor.

Polídamas e os troianos lamentaram-se demasiadamente. Então, Acamas, colocando-se por cima do cadáver do irmão, feriu o beócio Prômacos, com sua espada, quando este arrastava o cadáver pelos pés. Acamas, em altos gritos, vangloriou-se:

— Argivos barulhentos, insaciáveis de ameaças! Não apenas nós temos de enfrentar labores e provações, mas também vós sereis mortos assim. Vede como dorme Prômacos, abatido por minha espada, para que o resgate de sangue por meu irmão não demore a ser pago. Por isso os homens pedem aos deuses que um parente seja deixado em seus palácios, para ser o vingador da morte devida.

Peneleus, ouvindo essas palavras, investiu contra ele, atirando uma lança, que, passou zumbindo pelo ouvido de Acamas, não o atingindo. Mas a arma foi cravar-se abaixo da testa de Ilioneus, bem junto dos olhos. O lesbiano filho de Forbas e querido do deus Hermes caiu sentado, dando tempo ainda de levantar os braços ao Céu, talvez suplicando ajuda a Hermes. Peneleus desembainhou a espada e passou-a pelo pescoço, cortando-lhe a cabeça com a lança transpassada. O grego apanhou a cabeça com o esmo e a lança, e mostrou-a aos troianos:

— Troianos, levai aos pais de Ilioneus, em meu nome, a notícia de sua morte. E a viúva de Prômacos, filho de Agenor, não vai se regozijar com o regresso de seu esposo, quando tornarmos a atacar a cidade de Tróia.

Os troianos tremeram com aquele cena, e Ájax telamônio feriu Hírtios, filho de Gírcios, chefe dos míssios. Antílocos matou Falces, e Meríones matou Móris e Hipótion. Teucros, com suas setas infalíveis, matou Prótoon e Perífetes. Depois, Agamémnon feriu Hiperénor no flanco, e o bronze penetrou em suas entranhas, e a alma abandonou seu corpo. Ájax, filho de Oíleo, porém, foi quem matou maior número de inimigos, pois era muito veloz e habilíssimo no manejo da lança. Tudo isso acontecia, graças à ajuda dada pelo deus Poseidon, o Abalador da Terra, e os troianos começavam a recuar, eis que Heitor estava ferido, longe do campo de batalha.

HEITOR FORTALECIDO POR APOLO

Os troianos empreenderam uma fuga medonha e tiveram que atravessar de novo a paliçada e o fosso, para fora das muralhas. Os que ainda restaram chegaram junto aos carros e ali pararam, pálidos de medo e em desordem.

Neste momento, Zeus acordava ao lado de Héra, nos picos do Ida, e, levantando-se subitamente, olhou em direção de Tróade e viu os troianos perseguidos pelos dânaos, entre os quais estava seu irmão Poseidon. Viu Heitor estendido na planície e seus camaradas sentados junto dele, que arquejava, sem sentidos, vomitando sangue, pois um baluarte argivo lhe abatera. Ao vê-lo, apiedou-se dele. Acordou Héra e, carrancudo, disse-lhe:

— Héra...! ah, Héra...! Tuas negras maquinações fizeram com que Heitor deixasse a batalha e seus homens fossem derrotados. Nada mais sei, senão que poderás ser de novo a primeira a colher os frutos de tuas ações maléficas e que te castigarei. Lembras-te quando te pendurei nas alturas e prendi suas bigornas em teus pés e prendi em torno de teus braços uma indestrutível corrente? Tu te lembras? Ficaste pendurada no éter e nas nuvens, e os deuses do Olimpo indignaram-se, mas nada puderam fazer. Todo aquele que tentasse libertar-te eu o agarrava e o jogava para fora do Olimpo. No entanto, nem mesmo assim minha alma foi aliviada em tua infindável dor por causa de meu filho Héracles. Com a ajuda de Bóreas, tu mandaste os Ventos contra ele e o empurraste para a ilha de Cós. Salvei-o e levei-o para Árgos, embora ele muito tivesse sofrido. Faço-te relembrar tais coisas para que deixes de lado teus ardis e saibas se te valerá o leito de amor, onde tu juntaste comigo e me iludiste.

Héra, após um instante de silêncio, estremeceu e retrucou:

Pela Terra, pelo vasto Céu e pela corrente do Estige, que é o maior e mais terrível juramento entre os Bem-aventurados, por tua sagrada cabeça e por nosso leito nupcial, pelo qual eu jamais juraria em vão, afirmo-te que não é por minha vontade que nosso irmão Poseidon perturba Heitor e os troianos, enquanto ajuda os outros. Quando viu os aqueus acossados junto dos navios, apiedou-se deles. Se dependesse de mim, eu o teria aconselhado a submeter-se às tuas ordens.

Zeus sorriu e acabou por dizer-lhe:

— Se em verdade, Héra, ficares, no meio dos Imortais, em harmonia comigo, então Poseidon, ainda que muito deseje o contrário, mudará de opinião, sem demora, segundo meu coração e o teu. Assim, se o que dizes é verdade, vai para junto dos deuses e ordena Íris que venha aqui, e também Apolo, para que ela se dirija a Poseidon e diga que cesse a luta e volte para seu palácio, e que Apolo incite Heitor para a batalha, insufle de novo dentro dele o valor, para que possa repelir os aqueus, infligindo-lhes vergonhosa derrota, fazendo com que fujam e caiam junto dos navios de Aquiles, o filho de Peleus. Este incitará seu camarada Pátroclos, que cairá pelas mãos de Heitor e pelo golpe de sua lança, diante de Ílion. Mas Pátroclos não perecerá sem glória: antes disso, matará muitos guerreiros, entre eles meu filho Sarpédon. Furioso por causa do amigo, Aquiles perseguirá e matará Heitor, o baluarte dos teucros. A partir de então, provocarei uma constante debandada, até que os aqueus tomem a cidade, graças aos conselhos de Atena. Até então, não dominarei minha ira nem tolerarei que qualquer outro dos Imortais ajude os gregos, até que o desejo do pelida seja cumprido, pois lhe prometi e confirmei a promessa no dia em que a jovem Tétis pediu-me para honrá-lo.

Héra, então, compreendeu as intenções de Zeus, mesmo lamentando a morte de seus favoritos, os argivos, e o triunfo dos odiosos troianos. Mas, sem desobedecer, pelo menos por enquanto, foi das montanhas do Ida ao Olimpo. Lá chegando, encontrou os deuses reunidos na morada de Zeus. Ao vê-la, todos levantaram-se e brindaram-na com suas taças. Ela, ignorando os demais, aceitou a taça da bela Têmis, que se aproximou da rainha, dizendo-lhe:

— Héra, por que vieste? Pareces perturbada. Certamente, teu esposo te amedrontou.

— Não me perguntes, Têmis. Tu mesma sabes como o seu espírito é arrogante e violento. Estás preparando o festim dos deuses dentro dos salões. Saberás de tudo juntamente com os demais, acerca das sinistras ações que Zeus ameaça executar. Nem todos os corações ficarão deleitados, ouso dizer, sejam dos homens sejam dos deuses.

Assim falando, Héra assentou-se e os demais Imortais ficaram perturbados. Ela sorria, mas, ao mesmo tempo, não denotava alegria, franzindo a testa. E, com indignação, falou-lhes:

— Vós, que em vossa loucura ficais irados com Zeus! Ainda desejamos aproximar-mos dele e conquistá-lo por palavras ou pela força, mas ele não nos dá atenção nem se impressiona conosco. Diz ele que, entre os deuses, ele é supremo, acima de qualquer dúvida, pela força e pelo valor. Aceitai, portanto, seja o que for que ele impuser a cada um de vós. Agora mesmo, creio que Áres irá sofrer, pois seu filho Ascálafos pereceu na batalha, aquele que é para ele o mais caro, aquele que o poderoso Áres chama seu filho.

Houve um tumulto, e Áres, batendo com as mãos nas imponentes coxas, lamentou-se:

— Não me priveis, Olímpicos, do direito de eu ir entre os aqueus e vingar o assassinato de meu filho favorito, ainda que seja meu destino o de ser atingido pelo raio fulminante de meu pai Zeus e ser jogado nas profundezas do Tártaros.

Áres, às pressas, chamou Deimos e Foibos, seus servos, e ordenou-lhes por seus cavalos sob o jugo, enquanto começava a vestir a armadura. Mas Atena, temendo a ira de Zeus, correu até a porta, impedindo a passagem de Áres. Tirou de sua cabeça o elmo e de seus ombros o escudo, tomou de sua mão a lança e a escorou na parede.

— Louco, de espírito conturbado, estás perdido! Certamente não ouviste bem o que Héra nos disse. Não estás sendo sensato e provavelmente deves estar surdo. Tu desejas sofrer muitos males e voltar à força ao Olimpo, com todo o teu pesar, ao mesmo tempo que acarretarás problemas aos outros? Ele, por certo, deixará a contenda entre gregos e troianos e virá até aqui a fim de lançar sua ira sobre nós. Não distinguirá culpado de inocente. Peço-te que domines tua ira por causa de teu filho. Muitos guerreiros melhores do que ele têm sido mortos e ainda serão outros, provavelmente. É difícil salvar a linhagem e a prole da humanidade.

E Áres, olhando para fora e para dentro do palácio, em silêncio, pôs-se a caminhar, cabisbaixo, em direção da mesa e foi-se sentar. Héra, depois de ter tudo observado, chamou Apolo e Íris, dirigindo-lhes estas palavras:

— Zeus ordena-vos que vos dirijais ao Ida, a toda pressa. Quando lá chegardes, peço-vos que não retruqueis, fazei o que ele ordenar e determinar.

Héra, enquanto Apolo e Íris afastavam-se, recuou e sentou-se em seu trono. Os dois mensageiros abandonaram o Olimpo em direção do Ida, e lá encontraram Zeus sentado no pico do Gárgaros. Em torno dele, espalhava-se uma nuvem de fragrância. Os dois pararam diante de Zeus, que se sentiu satisfeito ao vê-los, eis que haviam obedecido sem demora à ordem de sua esposa Héra. Zeus, dirigindo-se a Íris, disse-lhe:

— Vai, veloz Íris, e leva esta mensagem a Poseidon, e não me desobedeças. Dize-lhe para afastar-se da batalha e se juntar aos deuses, ou então que se retire à sua morada no mar. Se ele não obedecer às minhas ordens, mas desafiá-las, que considere que, nem mesmo com seu vigor, conseguirá escapar ao meu castigo, eis que lhe sou seu superior, mais ainda na força, embora temerariamente pretenda igualar-se a mim em direitos, diante do qual os outros tremem.

Íris, com um aceno, obedeceu-lhe, desceu das montanhas do Ida e voou para a sagrada Ílion. Zeus e Apolo, do alto do Ida, puseram-se a observar os passos de Íris e Poseidon.

Íris, chegando ao campo de batalha, aproximou-se do Abalador da Terra e disse-lhe:

— Poseidon, venho trazer-te uma mensagem de Zeus, o portador da égide. Ele manda dizer para afastar-te da guerra e te juntares aos deuses no Olimpo, ou, se preferires, retirar-te à tua morada no Egeu. Se não obedeceres às suas ordens, segundo o Tronante, não conseguirás escapar ao seu castigo, eis que Zeus é superior a ti, mesmo que tu pretendas ter os mesmos direitos que ele, diante do qual os demais deuses tremem.

Poseidon, grandemente irado, disse à deusa mensageira: