Mitologia Grega

Aproximava-se a noite na qual as Bassares, as mulheres Bacantes da Trácia, tomadas de um entusiasmo selvagem, costumavam celebrar as festas ao deus Dionísios. A rainha, pela primeira vez, também correu para a floresta, com o tirso na mão, coroada de videiras, junto com a multidão de mulheres. Com uma dor furiosa em seu íntimo, fingiu estar tomada pelo delírio costumeiro. E assim chegou à choupana solitária onde Filómele deveria estar aprisionada. Com um grito de alegria, após destrancar a porta, entrou correndo, guiada pelas interpretações da tela, e conseguiu libertar Filómele, e ocultou-a num canto do palácio. Juntas, meditaram clamorosa e breve vingança.

Exclamou Procne:

— Lágrimas não serão capazes de nos ajudar. Estou pronta para fazer qualquer coisa a fim de vingar esse crime hediondo.

Procne atraiu para si seu filho, Ítis, e, depois de observá-lo, se deu conta de como o menino se parecia com o pai:

— Ele é igual ao pai!

O pequeno então subiu ao seu colo, abraçou-a e lhe cobriu o rosto de beijos. Mas só por um momento o coração dela se deixou enternecer. Então, ela o arrastou consigo. Numa sede louca de vingança, pegou uma faca e enfiou-a no peito do próprio filho. Depois esquartejou-o e cozeu-lhe os membros que, de noite, após Tereus voltar de uma caçada e lhe receber com fingida alegria, ofereceu ao marido. E Tereus, após saborear deliciosa ceia, perguntou:

— Porque meu filho não está à mesa, ele que sempre me faz companhia?

E Procne respondeu com uma risada de desprezo:

— Ele não poderia estar mais perto de ti. Aí o tens, aí, nas tuas mãos.

E Filómele, saindo subitamente do esconderijo, lhe atirou a cabeça de Ítis, que foi rolando pela mesa, indo parar à frente do rei. Tereus havia comido a carne do próprio filho. Em seguida, atiraram-lhe ao prato as mãos do pequeno infeliz.

Tereus, não se contendo, levantou-se de um impulso, derrubou a mesa e com um grito feroz correu para estrangular as duas irmãs, mas conseguiram fugir. Tereus tomou de um machado e saiu no encalço das irmãs, que correram como loucas até Dáulis, na estrada para Tebas. Ali as encontrou e poderia ter acrescentado dois assassinatos às suas malfeitorias, mas os deuses, desejosos de pôr cobro a tão horrível família, transformaram Procne numa andorinha, Filómele num rouxinol — que ainda hoje traz as marcas vermelhas no peito. Quanto a Tereus, este, refugiando-se em terras longínquas, de pesar, pôs fim à própria vida e, quase à beira da morte, ganhou cristas com forma de casco e sua boca em forma de lança; os deuses transformaram-no numa poupa, ave de rapina que passa a vida perseguindo a andorinha e o rouxinol. Já Ítis, com seus pedaços recolhidos, foi transformado em pintassilgo.

Em Mégara, apesar de suas atitudes pouco louváveis, Tereus foi ali sepultado, no meio dos gregos, e entre eles correu o rumor de que ele não havia se transmudado numa poupa, mas num falcão. Mas sabiam ao certo de que a poupa era uma ave estranha, e fora vista primeiro nessa região.

Enquanto isso, Íon, o filho de Apolo, tornava-se um jovem esplêndido. Os moradores de Delfos, que já o conheciam como pequeno guardião do Templo, fizeram dele o tesoureiro, encarregado de zelar por todas as oferendas que o deus recebesse. E assim ia ele passando a vida no templo paterno.

Creúsa não tivera mais notícia do deus e achava que ele os tivesse esquecido, a ela e ao seu filho.

Nessa época, os atenienses, que mal haviam saído vitoriosos da guerra contra Lábdacos, o rei de Tebas,
agora entravam em guerra com os habitantes de Eubéia, uma ilha vizinha, luta essa que terminou com uma nova vitória ateniense. Durante a batalha, um estrangeiro da Acaia ajudara os atenienses com extraordinária coragem. Era Xutos, filho de Hélenos e neto do famoso Deucálion. Como recompensa por sua ajuda, ele pediu — e recebeu — a mão da filha de Erictônios e irmã do rei Pandíon, Creúsa, a quem cobiçava. Mas o deus Apolo, enciumado, não abençoou a união entre os dois, e não permitiu que tivessem filhos, por isso foi desprezado pelos atenienses.

Depois de um bom tempo, Creúsa teve a ideia de dirigir-se ao Oráculo de Delfos a fim de lhe pedir a bênção de ter filhos. Isso vinha ao encontro dos desejos de Apolo, que não se esquecera de seu filho. E assim a princesa, com seu marido e um pequeno séquito, partiu em peregrinação ao santuário de Delfos. Quando chegaram diante da casa do deus, o jovem filho de Apolo apareceu no limiar da porta para enfeitar as colunas com ramos de loureiro. Avistou então a nobre mulher, que ao ver o Templo começou a chorar. O jovem, ao vê-la tão triste, quis confortá-la.

— Não quero ser importuno, mas dize-me quem tu és e de onde vens.

— Sou Creúsa. Meu pai é Erictônios, o rei de Atenas.

Com inocente alegria, o jovem exclamou:

— De que terra famosa tu vens, de que família nobre tu descendes! Atenas é grandiosa e muita fama tem pelas suas conquistas! Mas dize-me: é verdade o que vemos retratado nos relevos aqui, que o o teu pai brotou da terra? E que a deusa Atena prendeu a criança que nasceu da Terra numa caixa, colocou-a junto a dois dragões e entregou-a aos cuidados das filhas de Cécrops? E que elas então, por curiosidade, abriram a caixa e enlouqueceram ao avistar o menino, atirando-se do penhasco diante da fortaleza de Cecrópia?

Creúsa meneou cabeça em silêncio, pois o destino de seu pai lembrou-lhe a história de seu filho perdido. Mas ele continuou diante dela e fazia mais e mais perguntas, entristecendo ainda mais o coração da princesa, pois lembrava-se do momento de infidelidade que passara com o Deus do Arco de Prata e o grande pecado que havia cometido.

— A julgar pela tua nobreza, és protegida pelos deuses.

Creúsa, com um sorriso amargo, disse:

— Protegida pelos deuses? Melhor diria “perseguida pelos deuses”.

— Tuas palavras beiram a impiedade; não devias permitir que elas escapassem com tanta facilidade da tua boca e de teu coração. Pareces uma mulher de bondade.

A princesa ficou em silêncio por mais alguns instantes, recompôs-se. Contudo, ao ver nos olhos do jovem o espanto provocado pela sua reação, perguntou-lhe:

— E tu, quem és? Possuis tão rara beleza que pareces mesmo o filho de um deus. Como podes, tão jovem, já estar a serviço de um dos santuários mais sagrados de toda a Hélade?

— Chamo-me Íon, mas de minha origem pouco sei. Mas sei que o trabalho aqui muito me orgulha e me satisfaz. É mais gratificante servir aos deuses do que aos homens.

— Servir nunca é gratificante. Gratificante é termos nossa vontade entregue ao nosso exclusivo arbítrio.

Sua voz ainda denotava claramente a amargura que lhe pesava na alma. E disse-lhe Íon, sorrindo bondosamente:

— Estás blasfemando outra vez. Por que teus olhos, tão divinamente belos, mostram-se tão amargurados? Não é nesse estado que os peregrinos costumam chegar a Delfos; pelo contrário, chegam todos alegres e cheios de ânimo por poderem estar diante do santuário de Apolo, o deus da verdade.

— Apolo! Jamais me aproximarei deste lugar com alegria!

— Mas a que vieste?

— Meu marido, o príncipe Xutos, me trouxe aqui com um único objetivo: saber, por meio do Oráculo, se ainda poderemos ter ou não um filho.

— Como?

— O deus Apolo sabe por que não tenho filhos. Só ele pode ajudar-me.

— Tu não tens filhos?

— Há muito tempo, e invejo a tua mãe, que pôde ter um filho tão bonito.

Íon baixou a cabeça e lhe respondeu:

— Nada sei de minha mãe nem de meu pai. Também não sei como cheguei aqui. Só sei que minha madrasta, a sacerdotisa deste lugar, se apiedou de mim e me criou. A casa do deus, desde então, é minha morada e sou o seu servidor.

Ouvindo estas palavras, a princesa ficou muito intrigada, mas calou seus pensamentos e disse, muito triste, inventando uma história:

— Conheço uma mulher a quem aconteceu o mesmo que à tua mãe, e é também em nome dela que vim até aqui. Vou-te confiar o segredo dela antes que o seu marido, que também veio nesta peregrinação, mas se desviou no caminho para consultar o Oráculo de Trofônios, entre no Templo. Essa mulher afirma que antes de seu matrimônio atual foi casada com o grande deus Apolo e que deu à luz um filho, sem que o pai dela soubesse de nada. A infeliz mãe o abandonou e desde então não teve mais notícias dele nem teve um instante sequer de paz. Para saber se a criança está viva ou morta é que vim interrogar o deus, em nome dessa mulher.

— Que palavras terríveis tu disseste agora! Estas acusações, perdoa-me, são por demais levianas para que as leve a sério. Deve ter sido um homem qualquer que seduziu a tua amiga, e ela, envergonhada, lança agora a culpa sobre os ombros de uma divindade. É uma mulher infeliz.

— É tudo verdade! Foi um deus, sim, o autor da negra perfídia, e nenhum outro mortal.

Íon calou-se; depois, abanando a cabeça tristemente, disse:

— Ainda que fosse verdade, o que pretendes fazer é uma grande loucura: ninguém pode se aproximar do altar de um deus para ofendê-lo com injúrias.

Creúsa baixou a cabeça. Nem mesmo tendo sido tratada daquela maneira tinha ela o direito de pretender afrontar um deus. E, finalmente, olhando para o jovem com uma ternura que jamais sentira por ninguém, disse:

— Talvez tu estejas certo. Estou ficando louca. Louca de ódio e desespero. É melhor eu ir embora.

E virou-se para ir, e o jovem, ainda curioso, perguntou:

— Há quanto tempo o menino morreu?

Ela voltou-se e respondeu:

— Se ele ainda vivesse, teria mais ou menos a tua idade.

— Como se assemelham o destino de sua amiga e o meu! Ela está à procura de seu filho, e eu à procura de minha mãe. Mas tudo isso aconteceu longe daqui, e infelizmente não nos conhecemos um ao outro. Não esperes que o deus te dê a resposta que procuras. Tu vieste para queixar-te de uma traição em nome de tua amiga, e ele decerto não vai querer ser juiz de si mesmo!

E Creúsa pôs o dedo nos lábios do garoto.

— Silêncio!... Aí vem o marido dela. Não deixes que ele perceba nada do que confiei a ti!

Xutos vinha chegando alegremente e aproximou-se de sua mulher Creúsa.

— Trofônios pronunciou um oráculo favorável. Disse que não sairei daqui sem filhos! Não sei bem o que ele quis dizer, mas em todo o caso... Quem é este jovem profeta?

O jovem aproximou-se do príncipe com humildade e disse:

— Sou apenas um servidor do Templo de Apolo, meu senhor. Na verdade, os mais nobres dentre os habitantes de Delfos, escolhidos por sorteio, rodeiam a trípode de onde a Pitonisa pronuncia seus oráculos.

— Então vamos, Creúsa, não percamos tempo. Enfeita-te com ramos, como fazem os consulentes, a fim de orar a Apolo em seu altar ao ar livre, que se encontra rodeado de loureiros, e nos dê um oráculo favorável. Temos muito o que fazer.

Creúsa levantou-se e correu para o santuário do Templo, enquanto o jovem tesoureiro do deus continuava sua vigília na entrada.

Pouco tempo depois, o jovem ouviu as portas do recinto sagrado abrirem-se e fecharem-se novamente, com um estrondo. E então viu Xutos sair a toda pressa e alegremente surpreso. Com ímpeto ele abraçou o jovem, chamando-o repetidamente de filho e insistindo em que o beijasse.

— Beija teu pai, meu filho! beija teu pai!

Mas o jovem, que nada estava entendendo, achou que aquele homem estava enlouquecendo e afastou-o com indiferença. Xutos, porém, não se deixou afastar.

— És meu filho! O próprio deus Apolo revelou a mim! Seu oráculo afirmou, nestas palavras: “A primeira pessoa que encontrares fora do Templo, é teu filho e constitui um presente dos deuses”. Na verdade, eu não sabia como isto seria possível, pois antes minha esposa nunca teve filhos. Mas confiei no deus; talvez ele me tivesse revelado o seu segredo.

— Teu filho? E quem é a minha mãe?

— Não sei, filho! Não sei! A única coisa que me foi dita é que tu és meu filho!

Então o jovem também foi acometido de alegria, talvez metade do que Xutos sentia. E, em meio aos beijos e abraços de seu pai, suspirou:

— Onde está minha mãe? Quem é ela? Quando vou vê-la?

E encheu-se de dúvidas, perguntando-se se a mulher de Xutos, que não tinha filhos e a quem não conhecia, haveria de recebê-lo como filho inesperado e como herdeiro, pois não o era segundo as leis, e imaginando como seria recebido em Atenas. Seu pai, a fim de tranquilizá-lo, prometeu apresentá-lo aos atenienses e à sua esposa como um estrangeiro, e não como seu filho.

Enquanto isso, Creúsa continuava diante do altar de Apolo. Suas preces íntimas foram interrompidas por suas criadas, que se aproximaram lamentando-se.

— Infeliz senhora, teu marido teve uma grande alegria, mas tu jamais poderás abrigar no peito teu próprio filho. Apolo te deu um filho, um filho já crescido, que nasceu há tempos de alguma mulher desconhecida. Quando ele saiu do Templo, encontrou-se com esse filho e agora se rejubila por tê-lo achado.

A pobre princesa, cujo espírito fora cegado pelo deus, de maneira que um mistério que lhe era próximo não se revelou, continuou a lamentar o seu destino. Por fim, perguntou às criadas qual era o nome do filho adotivo que ele recebera de maneira tão inesperada.

— É o jovem guardião do Templo, que tu já conheces. Seu nome é Íon. Não sabemos quem é a mãe dele. Teu marido dirigiu-se ao altar de Dionisos para levar-lhe uma oferenda secreta, em sinal de agradecimento pelo filho, e depois celebrar com ele o banquete de reconhecimento. Ele nos proibiu terminantemente, senhora, de informar-te a esse respeito, mas nós te amamos e por isso não obedecemos à proibição. Por favor, não reveles o que te dissemos, pois morreremos!

Chegou então um velho criado, fiel à família dos Erectíadas, que muito amava a sua senhora, e disse-lhe:

— Xutos é um traidor infiel ao seu casamento. Por isso, encarrego-me de eliminar o bastardo, que haverá de se apossar da herança dos Erectíadas.

Creúsa ouviu as censuras sobre o seu marido, e sentiu-se traída e abandonada por ele e também por seu antigo amante, o deus Apolo, e dominada pela tristeza, deu ouvidos aos planos assassinos do velho e confiou-lhe o segredo de sua antiga relação com o deus.

Xutos, saindo do Templo do deus com Íon, dirigiu-se com ele ao pico do monte Párnassos, onde o deus Dionisos era reverenciado. Depois de fazer uma libação ao ar livre, Íon, com a ajuda dos criados, ergueu uma tenda espaçosa e enfeitou-a com o belíssimo tapete bordado do Templo de Apolo. Na tenda foram colocadas mesas longas, travessas de prata repletas de iguarias e cálices de ouro cheios de excelente vinho. Xutos então enviou seu mensageiro a Delfos e convidou algumas famílias de moradores para participarem da festa. Logo a tenda encheu-se de comensais coroados. Na hora da sobremesa, um velho, cujos gestos engraçados divertiam os convivas, dirigiu-se ao meio da tenda e pôs-se a servir o vinho. Xutos reconheceu nele o velho criado de sua esposa Creúsa, elogiou-lhe a fidelidade e dedicação diante dos convivas e deixou-o agir livremente. O velho postou-se diante da mesa e começou a servir os convivas. Quando as flautas soaram, ao final do banquete, mandou que os criados retirassem da mesa os cálices pequenos e colocassem diante dos convivas grandes copas de ouro e de prata. Ele mesmo apanhou a mais esplêndida das copas e, como se quisesse honrar seu novo e jovem senhor, aproximou-se da mesa onde este se encontrava e encheu-a com vinho até a borda. Ao mesmo tempo, sem que ninguém percebesse, acrescentou ao vinho um veneno mortal. Quando ele se aproximou de Íon com a copa, derramando no chão algumas gotas de vinho como oferenda, um dos criados, que por acaso ali estava, pronunciou uma maldição. Íon, que passara toda a sua vida em meio aos costumes sagrados do Templo, reconheceu naquilo um mau agouro. Despejou no chão o conteúdo da copa, pediu outra e fez a oferenda do vinho, sendo seguido pelos demais convivas.

Nesse instante um bando de pombas sagradas, que eram alimentadas no Templo de Apolo, entrou na tenda. Quando viram o vinho, que todos derramavam no chão, pousaram ao lado das poças e puseram-se a bebericar. Nenhuma delas foi prejudicada, a não ser a que se colocara no lugar onde Íon derramara o seu vinho. Balançou as asas, deu gritos de dor e morreu entre convulsões.

Íon, então, levantou-se de seu assento e, cerrando o punho, gritou:

— Onde está o homem que queria me matar? Fala, velho! Foste tu que preparaste a bebida para mim!

E, dizendo isso, agarrou o velho pelos ombros. Surpreso e assustado, o velho confessou o seu crime e disse ter sido Creúsa a mandante. Íon, então, deixou a tenda, e os convivas o seguiram alvoroçados. Uma vez lá fora, ergueu os braços, rodeado pelos nobres habitantes de Delfos, e exclamou:

— Terra sagrada, serás testemunha de que essa mulher quis me envenenar!

— Vamos apedrejá-la! Vamos apedrejá-la!

E junto com Íon partiram em busca da criminosa. Xutos foi arrastado pela multidão, sem saber o que estava acontecendo.

Creúsa, junto ao altar de Apolo, aguardava o resultado de seu gesto desesperado.

Mas tudo acontecera de maneira diferente da esperada. Um alarido distante despertou-a de seu torpor. Antes que se aproximasse, um cavaleiro de seu marido que lhe era o mais fiel de todos, adiantara-se da multidão para lhe revelar a descoberta do crime e anunciar-lhe a decisão do povo de Delfos. Suas criadas a rodearam.

— Permanece dentro do altar, senhora, pois se o recinto sagrado não te proteger dos assassinos, sobre eles recairá uma culpa de sangue inexpiável!

Enquanto isso a multidão enfurecida, liderada pelo jovem Íon, aproximava-se cada vez mais. E as palavras dele, levadas pelo Vento, eram facilmente compreensíveis:

— Os deuses me defenderão, se assim eu me libertar de uma madrasta que me odeia. Onde está ela? Atirai a assassina do mais alto dos penhascos!

Tinham chegado ao altar. Íon agarrou a mulher, a quem ele considerava sua inimiga mortal, a fim de arrastá-la para fora, pois a santidade do altar oferecia-lhe um refúgio inviolável. Mas Apolo não queria que seu próprio filho fosse o assassino de sua mãe. Iluminou a sacerdotisa que pronunciara a profecia, de maneira que ela compreendeu toda a situação e ficou sabendo que Íon não era filho de Xutos, e sim de Apolo e Creúsa. Deixou a trípode, apanhou a cesta na qual o recém-nascido fora abandonado diante do Templo e correu com ela para o altar, onde Creúsa lutava com Íon por sua vida.

Vendo que a sacerdotisa se aproximava, Íon correu em sua direção e exclamou:

— Bem vinda, querida mãe, pois é assim que eu te chamo, embora não tenhas sido tu quem deste à luz. Soubeste de que cilada escapei? Mal encontrei meu pai, e já a sua mulher está tramando a minha morte!

E a sacerdotisa advertiu-o:

— Íon, vai para Atenas sem manchares tua mão!

Íon refletiu um momento antes de responder.

— Mas não é justo matar os nossos inimigos?

— Não fazes nada antes de me ouvires. Estás vendo esta velha cestinha? Foi aqui que tu foste abandonado.

— E de que me adianta essa cesta?

— Ela contém as fraldas que tu usavas.

— Minhas fraldas?! Mas isso é uma pista que me pode levar a encontrar minha mãe!

A sacerdotisa entregou-lhe a cestinha aberta, e Íon, ansioso, enfiou a mão dentro dela e puxou os panos cuidadosamente dobrados. Enquanto ele observava aquelas provas com os olhos rasos de lágrimas, Creúsa acalmou-se. Um olhar sobre a cestinha revelou-lhe toda a verdade. De um salto ela deixou o altar e, com um grito de alegria, exclamou:

— Meu filho!

E abraçou o atônito Íon. Mas ele olhou para ela desconfiado e tentou desvencilhar-se. Creúsa recuou e disse:

— Essas fraldas são a prova, filho! Desdobra-as e verás o sinal que eu vou te descrever. No meio do pano está desenhada a cabeça de uma Górgona, cercada de serpentes.

Incrédulo, Íon desdobrou a fraldas. Mas então, enchendo-se de alegria, gritou:

— Grande Zeus! Aqui está a Górgona, e aqui estão as serpentes!

— Na cesta deve haver também pequenos dragões de ouro para lembrar os dragões da caixa de Erictônios, e um colarzinho para o recém-nascido.

Íon continuou a revolver a cesta e, com um sorriso de contentamento, logo tirou dali as imagens dos dragões.

— E o último sinal, meu filho, será um ramo de uma oliveira que jamais murcha, colhido da oliveira sagrada de Atena. Foi com essa coroa que coroei a cabeça de meu filho recém-nascido.

E, enquanto ele procurava pelos sinais que indicava a mulher que se dizia sua mãe, ela concluía:

— Não, não estou louca, meu filho! Esse véu e essa capa pertenceram a mim! Com eles cobri teu corpo, quando tu nasceste. A amiga de quem falei não era outra senão eu mesma... Ouve, meu querido, sou a tua mãe, não tenhas dúvida alguma... O deus Apolo é o teu pai!

Íon revolveu o fundo do cesto e tirou de lá um belo ramo de oliveira. E exclamou, em soluços:

— Mãe, mãe!

E, abraçando Creúsa, cobriu-lhe o rosto de beijos. Por fim soltou-a: queria ir para junto de seu pai, Xutos. Creúsa então revelou o segredo de seu nascimento e disse-lhe que ele era filho do deus em cujo Templo servira por tantos anos.

Então, de repente, mãe e filho viram surgir do alto uma maravilhosa visão: envolta num halo de intensa luz, uma deusa de celestial beleza descia dos céus, diante de seus olhos.

— Sou Palas-Atena, filha de Zeus. Apolo pediu-me que aqui viesse para confirmar que Íon é filho de Creúsa e dele próprio. Foi ele, através de Hermes, quem o tirou da caverna quando foi abandonado. Mulher, leva-o contigo para Atenas, pois ele é digno de governar meu país e minha cidade.

A deusa desapareceu em seguida. Mãe e filho trocaram um olhar cheio de amor e alegria.

— E quanto àquele deus que te referias? Ainda guardas no coração algum resquício de ódio pelo que ele fez?

Creúsa sentia-se justiçada, apenas isto. Sabia ela o que era bem e o que era mal, em se tratando dos deuses? Tudo isto agora pouco importava. Seus olhos estavam voltados para o futuro, de onde via sempre a lhe sorrir o rosto jovem e feliz de Íon, seu filho.

Xutos aceitou Íon como preciosa dádiva divina, e os três voltaram ao Templo para agradecer ao deus. Do alto de sua trípode, a sacerdotisa augurou que Íon seria o fundador de uma grande dinastia, a dos jônios. Regozijando por tudo ter terminado tão bem, e cheios de esperança no futuro, o régio casal ateniense partiu de volta para seu lar com o filho reencontrado e os moradores de Delfos os acompanharam.

OS SUCESSORES DE PANDÍON

Erecteus, o neto de Erictônios e filho de Pandíon e Zêuxipe, fez guerra contra Eumolpos, filho de Poseidon. Assassinou-o, e por isso foi fulminado por Zeus. No entanto, os atenienses renderam-lhe culto divino e ergueram-lhe um templo famoso chamado Erechtheion, santuário de Atena-Polias, mas foi preciso colocar estátuas de moças em lugar de pilares para sustentar o teto acima do túmulo de Cécrops. E a estátua de madeira de Atena foi posta no interior do templo.

Íon, o filho de Apolo e Creúsa, filha de Erictônios e Praxitéia, ao tornar-se adulto, passou a reinar, primeiramente, na Egiálea (futura Acaia) e fundou a cidade de Hélice. Mais tarde, com a morte do rei Erecteus, subiu ao poder, chamou o reino de Jônia e dividiu seu povo, os jônios, em quatro tribos: Aigicoreis, Argadeis, Geleontes e Opletes.

Cécrops, filho de Erecteus, sucedeu ao seu pai e ao soberano Íon. Ajudou os Curetes a vingarem-se de Sócos, que os expulsara de Eubéia, e os ajudou a voltarem para seu país. Mudou o nome do país de Jônia para Ática.

Pandíon, filho de Cécrops e Metiadusa, ocupou o lugar de seu pai. Foi expulso do trono por seus parentes, filhos de Metíon, e refugiou-se em Nisa (futura Mégara), onde sucedeu ao rei Pilas.

Metíon, filho de Erecteus e irmão de Cécrops, tomou o trono e assumiu as rédeas do país.

Egeus, filho de Pandíon e Pélia. Casou-se com Aetra, que se uniu com o deus Poseidon e teve um filho, Teseus. Egeus aceitou-o como filho e fê-lo seu descendente. Saindo de Mégara, junto com seus irmãos, Palas e Licos, obtiveram juntos a Ática (a antiga Jônia). Egeus apoderou-se do trono e ocupou sozinho o poder de Atenas. Foi atacado por Minos, o rei de Creta, no tempo que seu filho preparava-se para tornar-se o novo rei.

Teseus, filho de Poseidon e Aetra, foi adotado por Egeus. Depois de ter vencido um sem-número de bandidos da Ática e de derrotar o Minotauro de Creta, Teseus, com a morte de Egeus, ocupou o trono de Atenas. Mas, na tentativa de ajudar o amigo Píritous a raptar Perséfone, nos Infernos, de lá não conseguiu voltar, e Atenas ficou fragilizada.

Menesteus, filho de Peteus e neto de Erecteus, por parte de mãe, foi posto no trono de Atenas por Cástor e Pólux, na ausência de Teseus, que havia ficado preso nos Infernos. E aproveitou a expulsar do reino os filhos de Teseus. No entanto, depois que Teseus retornou, com a ajuda de Héracles, foi obrigado a retirar-se para Ciros, onde obteve a amizade do rei Licômedes.

Teseus retornou para Atenas, depois de ter sido libertado por Héracles, voltando a reinar. Mas, por ter assassinado seu filho Hipólitos, teve que se exilar; foi para Ciros, onde o rei Licômedes, amigo de Menesteus, o matou.

Menesteus voltou a reinar em Atenas. Combateu em Tróia e participou do saque e do incêndio da mesma. Após a guerra, parou em Melos, onde passou a reinar por morte do rei Políanax.

Acamas, filho de Teseus e Fedra, filha do rei Minos, lutou em Tróia, sempre mantendo distância de Menesteus, seu inimigo. Em Tróia, procurou sua avó Aetra, escrava de Helena, e teve um filho com a troiana Laódice, e o chamou de Múnitos. De volta da guerra, tornou-se rei de Atenas no lugar de Menesteus, transformando-se no herói-epônimo dos Acamântidas.

Timoetes, descendente de Teseus, sucedeu a Acamas, no tempo da revolta dos Heráclidas. Disputou com os beócios a supremacia sobre a cidade de Énoe. Com medo de duelar com Xantos, o rei inimigo, ofereceu o trono a quem o vencesse. Melantos, filho de Andropompos, apresentou-se, combateu, venceu e tornou-se o novo rei.

Melantos, filho de Andropompos e neto de Nestor, rei de Pilos, havia sido expulso de sua cidade pelos Heráclidas e, aconselhado pelo Oráculo, foi estabelecer-se na Ática, onde aceitou o desafio de combater com Xantos, e o venceu. Assim, tornou-se o novo rei de Atenas.

Codros, filho de Melantos, sucedeu ao pai no trono de Atenas. Durante o seu reinado, atacado pelo heráclida Aletes e seus exércitos, para contrariar a ordem do Oráculo, salvou Atenas dando sua própria vida. Morreu com setenta anos de idade.

Múnitos, filho de Acamas e Laódice, nasceu durante o cerco de Tróia. Foi protegido por Aetra e levado para Atenas. Em idade adulta, tornou-se rei da Ática. Acolheu os mínios, um povo da Tessália, quando foram banidos pelos trácios. Ofereceu-lhes asilo nas proximidades do porto a que eles, anos mais tarde, dariam o nome de Muníquia. Um tempo depois, Múnitos morreu numa caçada, na Tessália, picado por uma serpente.

Ândroclos, filho de Codros, em luta contra seus irmãos pelo trono de Atenas, foi consultar o Oráculo de Delfos, cuja Pitonisa, em êxtase, lhe deixou sua profecia: um javali e um peixe. Então, iniciou as migrações gregas para a Ásia, comandou uma colônia de jônios e levou-os para a Anatólia; lá, os jônios afugentaram os léleges e os cários que moravam na região central da costa. Em seguida, conquistou a ilha de Sámos. E Ândroclos decidiu erguer uma cidade no mesmo lugar onde viviam os léleges. Lembrou-se do Oráculo, que o local onde deveria ser erguida seria indicado por um javali e um peixe. Um dia, ao cozinhar peixes, um deles pulou da panela e levou consigo um carvão em brasa que pegou fogo dizimando todo o bosque. Do bosque saiu um javali, que Ândroclos matou. Convencido pela estranha ocorrência, fundou ali mesmo uma cidade, e deu a ela o nome de Éfesos, vizinha do país das Amazonas. Segundo a lenda que se tornou oficial, foi ele quem fundou Éfesos, no século X a.C., não as Amazonas em outros tempos.

FIM

Dionisos, o deus do vinho

Amigos e membros do fórum "Mestres do Conhecimento".

Há versões diferentes a respeito do mito de Dionisos (Baco), especialmente referente à sua ordem cronólica. Segue um mix de pesquisas feitas por mim, tirado tanto de materiais didáticos, literários, romanceados, como de enciclopédias, dicionários e ''sites''.

Só peço, por favor, evitem maiores comentários e comparações de Dionisos com Jesus Cristo, pois é assunto polêmico e desagradável especialmente àqueles que distinguem perfeitamente os dois personagens e merecem respeito à sua crença. Podemos sim comparar e assimilar fatos históricos com mitológicos e religiosos, ou dar sentido aos mitos, citar passagens bíblicas para tentar desvendar certos mistérios dos mitos, mas mexer com a fé de cada um é inegavelmente censurado, justamente para evitar confrontos e motivos para exclusão.

Boa leitura, desculpe os erros ortográficos, e um grande abraço.

OS FILHOS DE CADMOS
Cadmos e Harmônia viveram e reinaram com alegria e ternura durante muitos anos, constituindo para toda a Hélade um modelo de casamento perfeito. Adotaram uma jovem ninfa, Místis, destinada a ser ama de seus futuros filhos. Mais tarde, nasceu-lhe um filho, Polidoros, “o de muitos dons”, também chamado de Pínacos, “o que escreve em lâminas”, porque seu pai Cadmos trouxera de Sídon as letras que foram aperfeiçoadas, fazendo surgir o alfabeto grego. E teve também quatro filhas, Autónoe, Ino, Sémele e Agave (Agaúê), “a augusta”.

ÁTAMAS E NÉFELE
Átamas, filho de Éolos, decidiu tomar por esposa uma ninfa que surpreendera na montanha, e por ela foi aceito. Seu nome era Néfele, a “donzela da nuvem”.

Havia um carneiro alado, de pelo de ouro e dotado de palavra, que percorria à vontade as terras e os mares. O deus Hermes deu-o de presente a Néfele, a esposa de Átamas, filho de Éolos e rei dos mínios de Orcômenos, na Beócia.

Quanto a origem desse prodigioso e belíssimo animal, tudo começou no tempo de Bisaltes, rei de uma parte da Trácia. Ele tinha uma filha chamada Teófane, também conhecida por Bisáltis, que era muito bela. Ela adorava deitar ao Sol e de nadar nas águas claras de uma baía perto do palácio. Imaginava muitas vezes que era uma das Nereidas que viviam nas grutas em volta da praia e fingia que brincava com elas no fundo do mar.

Poseidon, deus do mar, viu-a certo dia dentro da água, ficou tão apaixonado por ela que a levou no seu carro para a ilha de Crumissa. Mas Teófane tinha muitos admiradores jovens, que, resolvidos a ir buscá-la, navegaram até a ilha. Poseidon ficou aborrecido com isso, e transformou Teófane numa ovelha, e quando os pretendentes chegaram não conseguiram encontrá-la. Naturalmente nunca pensariam procurá-la entre as ovelhas da ilha; e se o fizessem, seria impossível que a reconheceriam.

Aconteceu que uns quantos pretendentes resolveram ficar em Crumissa, porque gostaram da vida que ali se fazia. Assim, Poseidon não podia dar outra vez à rapariga a sua forma primitiva, pois tornaram-se pastores e apascentavam seguidamente com muito zelo. Entretanto, unindo-se a ela na forma de um belo carneiro, a ovelha teve um cordeirinho com a lã toda de ouro puro, e Zeus, para mantê-lo longe da cobiça alheia, libertou-o e lhe deu a faculdade de voar e falar a linguagem dos deuses e dos homens.

Da união entre Átamas e Néfele, nasceram um menino, que foi chamado de Frixos, o “crespo”, e uma menina, Héle, nome que se dava igualmente à corça ou cerva nova. E felizes viveram nos primeiros anos de vida de seus filhos.

ARISTEUS E AUTÓNOE
Uma ninfa, Círene, por haver um dia domado sozinha os leões selvagens que atacavam o rebanho de seu pai, Hipseus, rei dos lápitas, ganhara o amor do deus Apolo, que a levara para bem longe, na Líbia. Desta união nasceu um menino, Aristeus, “o melhor”. Naquele país, criaram-no as Ninfas, e nutriram-no de ambrosia e néctar, tornando-o um semideus. A mãe ensinou-lhe todas as artes úteis, a criação de abelhas e a cultura das oliveiras. Depois de ser levado da Líbia para a região entre o Olimpo e o Ossa, onde havia sido educado pelo bom centauro Quíron, de aprender música e Astronomia com as Musas e ser educado também pelas deusas Horas, Aristeus passou a cuidar e apascentar os rebanhos de carneiros das Ninfas, na planície tessaliana de Ftia.

E numa de suas andanças, foi para Cadméia (Tebas), onde reinava o grande Cadmos e, auxiliado por seu pai Apolo, caiu nas graças do rei e casou-se com uma de suas filhas, Autónoe. Nesse país, suas abelhas o tornaram rico e famoso.

Da união entre Aristeus, filho de Apolo, e Autónoe, nasceu um menino, destinado a ser um excelente caçador, e o chamaram Actéon (Aktaíôn). Logo que transpôs os dias de infância, foi educado pelo sábio centauro Quíron, na fresca montanha do Pélion, coberta de florestas. E ali aprendeu a ser destro caçador. Seu maior prazer era ocupar-se da caça por vales e serras.

ÁTAMAS E INO
O rei tessaliano, Átamas, ao tornar-se rei também da cidade de Orcômenos, na Beócia, conheceu em Cadméia uma bela princesa, filha do célebre soberano Cadmos; seu nome era Ino, e por ela se apaixonou, e desejou fazê-la sua rainha.

Então, em Cadméia, onde reinava o velho e famoso herói da longínqua Sídon chamado Cadmos, Átamas, de Orcômenos, para se aproximar de Ino, desejou fazer aliança com o soberano, já que as duas cidades eram vizinhas. Cadmos, em troca da aliança, deu a Átamas, a seu pedido, sua quarta filha, Ino, por esposa. Para tanto, Átamas, o rei de Orcômenos teve que repudiar e abandonar Néfele, alegando que com freqüência tinha ataques de loucura, que agora tinha de vê-lo sob a influência nefasta da princesa Ino, a nova e perversa rainha. Néfele, então, desapareceu e nunca mais foi vista. Triste, havia pedido aos deuses que lhe poupassem de tanto sofrimento e lhe permitissem zelar por seus dois filhos. Apiedados, os deuses permitiram-na permanecer na forma de nuvem, passando a acompanhar seus filhos de perto. E ainda permitiu que Átamas inserisse no seu rebanho o carneiro Crisómalos, pois pressentia que um dia seus filhos dele precisassem.

Após o desaparecimento de Néfele, seus dois filhos, Frixos e Héle, viram-se vítimas do ciúme e das perseguições da madrasta Ino. A rainha, que odiava as crianças, especialmente Frixos, imaginava um plano para matá-los. Afinal, não queria saber de herdeiros que não tivessem o seu sangue.

— Quero esses dois mortos o mais breve possível.

E assim pensava diariamente, desde que começou a partilhar o leito com o rei, seu esposo, ainda na noite de núpcias.

Na manhã seguinte, a rainha Ino chamou à sua presença os serviçais e mandou que fizessem a mesa e deixassem as crianças comer o que quisessem, mas ordenou que fartassem a mesa somente com cereais, não permitindo qualquer outro tipo de alimento. E mandou que banhassem todas as sementes com mel para agradar ao paladar dos enteados.

As crianças, assim que acordaram, foram para a sala do banquete, e não puderam resistir. Ino flagrou-os e disse-lhes:

— Comei tudo, minhas crianças.

Fez isso para desfalcar as reservas da casa. E, no período de algumas horas, com os dedos e as faces lambuzadas, ambos haviam dado conta de tudo.

— Tem mais?

— Oh, não, queridos... infelizmente acabou. Comestes tudo. Espero que vosso pai não se aborreça... Mas prometo nada dizer. Agora, ide brincar.

E as crianças, fartas de tanto comer, evitaram procurar o pai e foram logo se retirando. E Ino, maleficamente satisfeita, começou a ter idéias e planejar um atentado contra as crianças. Só precisava de uma oportunidade.

Mais tarde, da união de Átamas com Ino nasceu Melicertes.

O NASCIMENTO DE DIONISOS
A princesa Sémele, filha de Cadmos e Hermíone, estava deitada em seu leito. Estava só, mas ao seu lado ainda havia a marca profunda de um corpo — o corpo de um deus. De fato, Zeus, mais uma vez traindo Héra, sua esposa e irmã, amou Sémele, que competia com as deusas em beleza e graça. Estivera até há pouco gozando dos prazeres que lhe proporcionara sua mortal amante. Como outras noites, amou-a intensamente. E, numa dessas noites, Zeus convenceu Sémele, no seu ímpeto voraz, a absorver o coração ancestral de Zagreus, que há muito havia sido despedaçado pelos Titãs rebeldes e seus restos foram enterrados junto à trípode de Delfos. E, como prova de afeto pela amante, jurou-lhe realizar qualquer um de seus desejos.

— Béroe!

Sémele espreguiçou-se, enquanto um raio cálido de Sol que entrava pela janela de cortinas acariciava seu ventre.

Alguns instantes de silêncio, e...

— Béroe, surda!

Sémele apoiou-se aos cotovelos, e uma velha criada entrou às pressas.

— Pois não, minha ama...

Disse-lhe a princesa com sorriso estampado:

— Béroe, esta noite foi verdadeiramente divina...

E Héra, disfarçada na ama de Sémele, pensou:

— “Então é tudo verdade!”

— Vamos, ajuda-me a me vestir.

A nova paixão do senhor do Olimpo não podia ficar por muito tempo oculta a Héra, que resolveu vingar-se antes do nascimento da criança trazida por Sémele no seio. A implacável deusa, resolvida a perder a rival, revestiu-se do aspecto de Béroe, a velha nutriz de Sémele, e indo visitar a jovem, fez habilmente com que a conversação recaísse sobre Zeus.

— Prouvera ao Céu que este homem fosse o próprio Zeus quem te amou!

— Que dizes, Béroe? Um homem? Sua tonta, nenhum mortal poderia amar uma mulher como este divino ser! Homem algum teria o seu toque misterioso, nem beijo algum teria a volúpia que ele, Zeus, põe em seus divinos lábios...

E Héra pensou:

— “Mas as carícias que ele te dá nunca serão mais do que o mero produto de um instante, estando sempre conspurcadas pelo susto e pelo medo de um terrível castigo.”

Entretanto, desconfiava em seu íntimo, mesmo sem dar-se conta claramente disto, de que justamente ali poderia estar uma parcela do encanto e das delícias que ela, esposa legítima, jamais poderia desfrutar.

— Mas existem tantos homens, bem, digamos... tão hábeis, minha ama, que às vezes nós mulheres, frágeis e tolas que somos, deixamos nos enganar com humilhante facilidade...

E Sémele, entregando as vestes à velha e lhe dando as costas nuas, disse:

— Não digas tolices, Béroe. Vamos, veste-me.

Héra prosseguiu, sem dar atenção às reprimendas:

— Mas eu tomo por ti, princesa: quantas moças não foram iludidas por simples mortais que se diziam um deus qualquer! Eu mesma, minha ama, quantas vezes fui ludibriada por homens que me pareceram deuses.

— Quê?? Béroe, amada por um deus? Ah, estás delirando...

Sémele, contorcendo-se de riso, impedia que a ama lhe vestisse, e embora Héra soubesse que o deboche não fora feito a ela, ainda assim sentiu-se tomada pelo rancor — tal o poder que uma afronta, mesmo feita por engano, teve sobre a vaidade feminina de Héra. Enquanto escutava o riso, sem poder concluir sua tarefa, Héra percebeu nas costas da jovem as marcas inequívocas que o amor deixara em sua nudez, que admitia ser perfeita. Héra tinha diante de si o mapa exato da traição: cada mancha arroxeada que Héra encontrava sobre aquela alva pele simbolizava o prazer que Zeus, auxiliado pelos desvelos da amante, havia descoberto e marcado em seguida com a mesma ganância do explorador que descobria um lugar paradisíaco e instalava com fúria o seu marco a fim de deixar bem clara a sua posse exclusiva.

Sémele fez menção de virar-se, mas a falsa Béroe não lhe permitiu; temia ver em que outros lugares infames poderiam estar depositadas aquelas manchas.

— Vamos, minha ama, deixa-me vestir-te.

Héra tentou introduzir a veste pela cabeça, como se fosse ensacar algo que desejasse ver logo ocultado.

— Calma, Béroe, não te zangues...

E Héra disse, com voz insinuante:

— Pede-lhe uma prova...

— O quê?

— Pede a ele uma prova definitiva de que é mesmo quem afirma ser.

— Mas que prova melhor poderia Zeus me dar, além das que já tenho? É mais belo que qualquer homem deste mundo.

— Isto nada prova...

Sémele, já vestida, abraçou-se com braços fingidamente alheios. Parecia não entender tal insinuação...

— Se aquele de quem me falas for verdadeiramente Zeus, ele saberá dar-te provas certas, vindo visitar-te com a majestade que o acompanha, quando se aproxima de Héra. E verás como ele irá recusar-te esse favor, princesa.

— Ele já me fez a promessa de que atenderia qualquer coisa que eu pedisse.

— E então?

Sémele ficou alguns instantes pensativa, enquanto Béroe penteava, fio a fio, os seus longos cabelos.

— Está bem, lhe pedirei essa prova!

E disse-lhe a velha, com um sorriso pérfido no escondido rosto:

— Apenas não esqueças de uma coisa: deves fazer antes com que ele jure pelo Estige que não te negará qualquer pedido.

— Por que pelo Estige?

— Porque este é um juramento irrevogável, ao qual os próprios deuses estão submetidos. Todo aquele que jura pelas águas sagradas do Estige deve cumprir rigorosamente com a sua palavra, e nem mesmo Zeus tem poder para transgredi-la.

Dito isto, a falsa Béroe afastou-se, e Sémele ficou entregue aos seus próprios pensamentos.

Quando a Noite chegou, Zeus reapareceu, como de costume. E Sémele, enganada pelas artificiosas palavras de sua ama, correu abraçá-lo.

— Zeus, meu amado! Desde que tu começaste a vir até mim, no regaço de Nix, que nunca mais soube dizer, com certeza, quando é dia ou quando é noite.

— Por que estas palavras?

— Porque me parece que a Noite quando chega, trazendo-te consigo, me traz um dia ainda mais claro e brilhante do que aquele que está partindo, apenas isto.

Os dois amantes abraçaram-se, após um longo beijo, Sémele, tornando-se séria, tomou o rosto de Zeus em suas mãos.

— Meu querido, preciso que me dês uma prova de teu amor. Preciso muito.

Zeus ficou surpreso.

— Prova de amor? Mas pra quê?

— Não importa; apenas promete. Promete pelo Estige que me darás uma prova. Só assim poderei ter sossego em minha alma e confiar plenamente em ti.

Zeus relutou durante um longo tempo. Jurar pelo Estige, o mais irrevogável dos juramentos, apenas por um capricho.

— Está bem, eu prometo.

— Pelo Estige... Por favor...

Zeus acedeu, contrariado, e fez o juramento. E Sémele, aliviada, foi até o fundo do quarto e parou, com um ar misterioso estampado no rosto.

— Quero agora uma prova definitiva de que tu és mesmo o Zeus que tanto amo.

— Do que estás falando, criatura?

— Que tu nunca apareceste para mim como um deus, sempre como um homem. Belo e nobre, é verdade, mas homem. Quero ver-te, pelo menos uma vez, em todo teu esplendor divino, em tua forma real, como o senhor do céu e da terra, senhor de toda força e glória.

— Oh, insensata. Nenhum mortal pode enfrentar essa visão. Pede-me qualquer outra coisa, não isso, que te destruirá.

A resposta de Zeus transformou em certeza as dúvidas de Sémele, segundo as palavras de Béroe, que era nada mais nada menos que a própria deusa Héra. Mas, com a coragem do desespero, falou-lhe Sémele em prantos:

— Quero isso ou nada! Se me amas, faze o que me prometeste! Juraste com falsidade?

Zeus ficou paralisado, pois sabia que de nada adiantava dar a ela todas as explicações necessárias para evitar a sua morte, porque percebeu que o destino de Sémele já estava selado, pois ele havia feito o juramento fatal. Nada poderia fazer com que ele voltasse atrás — mesmo que ela mudasse de opinião ou tentasse anular sua vontade.

E a jovem filha de Cadmos pensava:

— “Finalmente verei o que mortal algum antes viu.”

Zeus, pesaroso, afastou-se um pouco, embora soubesse que era um ato inútil. Depois, concentrou-se e fez com que suas formas humanas fossem lentamente se apagando. Ao mesmo tempo uma luz, a princípio muito tênue, foi brotando do seu corpo, em dourados feixes, como se o Sol estivesse saindo de dentro de si.

Sémele deu-se conta, subitamente, do que estava para acontecer, quando viu a vaporosa cortina atrás do deus desaparecer como num sopro, e uma nuvem de fagulhas ser expulsa pela janela, impelida pelo Vento.