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A Saga de Enéias

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A Saga de Enéias - Página 8 Empty Re: A Saga de Enéias

Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:10

A caçadora perguntou a Enéias:

— Forasteiro, acaso não encontraste uma das minhas irmãs? Está armada de arco e aljava, e vestida com uma pele de lince, sarapintada.

Deitando-lhe um olhar de espanto, o príncipe Enéias redarguiu, tentando reconhecê-la:

— Senhora, não vi a pessoa de que falas. Chamo-te de senhora, mas pelo teu aspecto e pela tua voz pareces mais do que uma simples mortal. Por certo és uma deusa... Reconheço as deusas, pois minha mãe é uma delas. Pareces a irmã de Apolo, a divina Ártemis, ou talvez uma de suas Ninfas. Mulher como tu só conheci Pentesiléia, a rainha das Amazonas... Seja como for, recebe-nos com amizade e auxilia-nos. Gostaríamos que nos pudesses dizes em que país nos encontramos, pois fomos impelidos por terrível tempestade. Que povo habita este país? Vestes uma roupa espartana... Estamos na Hélade? Quem és?

— Não sou nenhuma deusa, forasteiro. É costume das moças destas paragens carregarem arco e aljava e envergarem o traje de caçadora. Pode parecer roupa espartana, mas não é. Nasci em Tiro, muito longe daqui, além do mar, em direção do Oriente.

— Já ouvi falar. O grande Cíniras lá reinou por muitos anos.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:12

— Sim. Quanto a esta terra, pertence à Líbia, não muito longe de onde vivem os númidas, os mauris, os atlantes e os gétulos. Nossa rainha é Elissa, intitulada Dido, por ter-nos conduzido a esta terra abandonando o reino, na Fenícia. Ela era esposa de Siqueus, o mais rico dos fenícios, e os dois muito se amavam. Mas o invejoso Pigmálion, irmão de Siqueus, atual soberano de Tiro, preparou uma intriga, e, apanhando Siqueus desprevenido, apunhalou-o. Por muito tempo conseguiu ocultar a Elissa o nefando crime, alegando que Siqueus se ausentara para cuidar de importante negócio que lhe traria elevados lucros, e que em breve regressaria. Mas uma noite Elissa teve um sonho em que o marido lhe mostrou os ferimentos e lhe contou a verdade. Aconselhou-a a fugir depressa do país e revelou-lhe um esconderijo onde tinha enterrado um grande tesouro, em ouro, prata e pedras preciosas. Elissa, em segredo, empenhou-se nos preparativos para a fuga e encontrou sem dificuldade muitas pessoas desejosas de acompanhá-la, pois não eram poucos os que odiavam o jugo do ignominioso rei. Apossamo-nos de alguns navios, os carregamos de ouro e nos fizemos ao mar. Algum tempo depois chegamos a este lugar, onde adquirimos um pedaço de terra que se chamou Birsa, que na língua dos fenícios significa “pele de touro”, pois ela mesma pediu apenas a extensão de terra que pudesse ser coberta com uma vulgar pele de touro. Mas, antes cortou a pele em tiras tão finas que com elas logrou cercar todo o espaço contido hoje por Birsa, a fortaleza de Cartago. Em seguida, partindo dali, foi, com os seus haveres, adquirindo novas terras, e fundou o poderoso reino sobre o qual exerce atualmente o seu domínio. Estamos construindo a cidade destinada a chamar-se Kart-Hadasht, em honra de Cartago, a filha de Melkart, o deus chamado Héracles pelos helenos.

— Impressionante...

— E agora que já sabes onde te encontras, dize-me, forasteiro, de onde vens e para onde pretendes ir com teu amigo?
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:12

— Minha história é longa. Não seria possível contar-lhe tudo, ainda que me dispusesse a falar até o por-do-Sol. Eu e meus companheiros somos de Tróia destruída pelos gregos. Chamo-me Enéias e minha raça descende do próprio Zeus. Estava a caminho da Itália, quando a tempestade dispersou nossas vinte naus, de que só me restam sete.

Uma moça fenícia desconheceria Zeus e qualquer dos deuses troianos, pois teria, assim como todos os fenícios, deuses com outros nomes, apesar de que Afrodite, Poseidon, Tétis e outros Olímpicos eram igualmente adorados por ambos os povos, mas nomes diferentes. Contudo, a moça não se mostrou surpreendida pela presença dos estrangeiros, já que seu povo mesmo era estrangeiro naquele país.

— Enéias, assim te dizes chamar, não julgues que os deuses te abandonaram... Eles te protegem, pois do contrário não te teriam conduzido a estas praias. Procura a rainha Alashia e não te preocupes com os teus navios, nem com os teus companheiros, pois estão salvos.

— Como sabes que...

— Vê no céu aqueles vinte cisnes! Vê a águia que se lança sobre eles!

E os dois olharam para o céu, para onde apontava a caçadora cartaginense.

— O bando de cisnes é dispersado, mas logo adiante de novo se reúne. Observa... Agora os cisnes vêm descendo, alguns já pousam no chão, enquanto os demais estão prestes a imitá-los. Assim se sucederá com os teus navios.

Com essas palavras, após envolvê-los em densa névoa, afastou-se a estranha caçadora, de cujo colo parecia emanar uma luz rósea; e, ao passo que caminhava, enquanto um doce aroma se espalhava no local, nasciam flores sob seus pés e a sua túnica começou a se alongar até os tornozelos. Só então Enéias conseguiu reconhecê-la, vendo-a já distante, através da névoa:

— É minha mãe Afrodite!...

E quis chamá-la, mas em vão; Afrodite erguia-se nos ares e alçava voo para Páfos, sua morada favorita.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:13

Alegrando-se, então, Enéias tratou de obedecer às suas recomendações. Com seu amigo Acates, prosseguiram a caminhada e subiram uma colina, de onde puderam avistar uma magnífica cidade projetada para ser grande, ainda em construção. Admiraram as portas altas, as ruas largas e a multidão ocupada nas mais diversas atividades, erguendo os muros da cidadela, escavando o porto, lançando os fundamentos das casas e edifícios públicos, enquanto a maioria de seus habitantes se encontravam na praça do mercado, escolhendo os senadores e os juízes do povo e deliberando em torno das leis do novo Estado. Pareciam abelhas operosas, e Enéias pensou:

— Gente feliz, pois encontrou um bom lugar onde morar.

Enéias e Acates desceram à cidade. Ninguém reparou neles, pois Afrodite os envolvera em um manto de névoa, tornando-os invisíveis. Entrando num magnífico templo, onde os tírios tinham descoberto um presságio favorável enviado por Héra (uma cabeça de cavalo que lhes profetizava sorte na guerra e fácil sustento), cercado de denso arvoredo, onde havia muita gente, viram nas paredes reproduções das batalhas travadas entre gregos e troianos. A fama da guerra havia chegado a diversas partes do mundo. Numa dessas gravuras, a tropa troiana rechaçava o exército grego; em outra, um grupo de soldados era perseguido por Aquiles. Havia também pinturas representando as tendas de Resos, rei da Trácia, que acudira os troianos, e outras do combate entre Aquiles e Troilos, e da morte deste último. Em outra parede, uma gravura representava milhares de troianos, no Templo de Atena, oferecendo um manto sagrado à deusa, enquanto, ao lado desta, um desenho, Aquiles arrastava o corpo de Heitor em volta das muralhas de Tróia. Enéias descobriu também uma reprodução de sua própria imagem de guerreiro, ao lado de outros troianos, em combate, e viu a valente Pentesiléia com as suas Amazonas de escudos em forma de lua.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:13

Enquanto Enéias contemplava essas gravuras, chegava ao templo a rainha Dido, seguida de grande séquito armado. Era uma formosa mulher de pele escura. Enéias julgou-a mais bela que a própria Ártemis, no meio de suas Ninfas. Dido tomou assento num trono e preparou-se para ouvir o povo, pronunciar sentenças e resolver assuntos importantes.

Repentinamente, grande alarido fez-se ouvir. Alguns presos foram trazidos à presença da rainha e, com espanto e alegria, Enéias reconheceu os companheiros que a tempestade havia dispersado e que tinham desembarcado em uma praia próxima. Entre eles estavam seus amigos Sergestes, Cloantos e muitos outros teucros. Teve vontade de avançar e de lhes apertar as mãos, mas reprimiu esse desejo, resolvendo aguardar os acontecimentos.

Entre os presos escolhidos à terem uma audiência com a rainha daquele reino, encontrava-se Ilioneus, que assim falou:
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:13

— Bela soberana, nós, desventurados troianos, apelamos para teu coração e suplicamos-te piedade. Não permitas a destruição dos nossos navios e concede-nos hospitalidade, pois não viemos com intenções hostis. Estávamos a caminho da Hespéria, onde desejamos construir uma cidade que gostaríamos se assemelhasse a esta, quando uma tempestade nos desviou do rumo e separou os navios da nossa frota. Nenhum povo é tão cruel a ponto de recusar auxílio aos pobres ou maltratá-los sem motivo, pois se assim procedesse, os deuses certamente lhe dariam o merecido castigo. Nosso comandante é Enéias, grande guerreiro e homem de bom coração, capaz de ser piedoso ao seu maior inimigo, como fez quando salvou a vida de um guerreiro grego que encontrava-se perdido na ilha dos Cíclopes. Se ainda estiver vivo Enéias, nada teremos a temer, pois haverá de conduzir-nos ao nosso destino; caso esteja morto, não nos faltam amigos, como o rei Acestes, da Trinácria, os quais, tenho certeza, nos auxiliarão. Tudo o que te pedimos, ó senhora, é que nos permite abrigar nosso navios para os reparos necessários, e nos faremos ao mar, prosseguindo na viagem para a terra prometida, ou retornando à Trinácria.

A rainha a tudo ouvia pensativa. Depois de um momento de silêncio, disse:
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:14

— Não temais, troianos. A minha sorte é tão dura e o meu reino tão jovem que me vejo obrigada a assegurar com severa vigilância as fronteiras do país. Mas, quem não conhece a fama do valente e nobre Enéias e seus feitos ilustres? Quem ignora a bravura dos filhos de Tróia, que, de forma formidável, conseguiram prolongar e sustentar a guerra por dez anos? Tivemos notícia de tudo o que se passou. Quer escolhais por morada a Hespéria, quer a Trinácria, dos sícanos, em ambos os casos — e isto vos sirva de consolo — podeis confiar na nossa amizade e contar com a nossa ajuda. Se desejardes fixar-se permanentemente entre nós, sede bem-vindos. Mandarei vasculhar a costa à procura de vosso comandante, que é rei entre vós, que deverá estar a vossa procura, nobre que é, ou tenha naufragado não muito longe.

Os dois heróis, ainda ocultos pela névoa de Afrodite, ardiam do desejo de sair dela, ouvindo as palavras da rainha. E Acates, murmurando, disse ao amigo:

— Ouves? Os barcos, os amigos, tudo está salvo; falta um apenas, a quem vimos cair ao mar com os nossos próprios olhos. Quanto ao restante, tudo concorda com as promessas de tua mãe.

Mal proferira tais palavras, dissolveu-se a névoa desaparecendo no ar. Diante daquelas palavras, Enéias e Acates avançaram até o trono, saindo do meio do povo, causando espanto a Ilioneus e seus companheiros.

— Meu príncipe Enéias!

O filho de Afrodite, muito contente, abraçou-os a todos e, dirigindo-se à rainha, disse-lhe:

— Não é necessário, bondosa rainha desta magnífica cidade. Sou o homem que procuras, Enéias de Tróia, salvo da fúria do mar, e estou à disposição.

Enéias inclinou-se reverente diante de Elissa, e com tão airoso porte que logo granjeou a simpatia de todos, até mesmo a rainha olhando-o embevecida, mas sem paixão, já que era proverbial a sua fama de recato e puritanismo.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:14

Enéias continuou:

— Felizes os pais de quem és filha! Que os deuses te recompensem pela tua bondade. Enquanto os rios correrem para o mar e as sombras se projetarem nos vales, lembrar-me-ei sempre do teu nome e o exaltarei perante meu povo, na Itália ou aonde quer que os deuses nos conduzam!

Elissa, levantando-se do trono, perguntou-lhe:

— Filho da deusa do amor, que infortúnio te persegue? Então és Enéias, que nascido do troiano Anquises, foi pela deusa de teu povo dado à luz perto das ondas do Símoeis? Ouvi da boca de meu pai Belos acerca dos destinos da tua estirpe. Quando estava fazendo guerra em Cipros, apresentou-se-lhe Teucros, filho de Télamon, que ali fundara uma colônia depois da campanha de Tróia, e contou-lhe alguns dos vossos heroicos feitos. É certo que na guerra foi vosso inimigo, mas era, ao mesmo tempo, parente consanguíneo vosso, visto que se jactava de descender da velhíssima estirpe dos teucros; sua mãe Hesíone, que Télamon recebera de presente do amigo Héracles como prisioneira de guerra, era filha do rei troiano Laómedon. Mas dize-me: por que o Destino te trouxe a estas praias? Convido-vos a virdes comigo ao palácio para um merecido repouso, pois sofrestes demais e viajastes muito. Eu também conheci não poucos sofrimentos, pois sou uma desterrada, e aprendi a ajudar os que sofrem, pois também achei a paz neste país depois de sofrer inúmeras dores.

A rainha, com sua comitiva, dirigiu-se ao palácio, onde ofereceu aos convidados um lauto banquete. Para tal evento, Elissa mandou que libertassem os demais prisioneiros troianos. Os assentos foram cobertos de púrpura, os copos eram de ouro e prata e as mesas estavam enfeitadas de pedras preciosas.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:15

Enéias mandou Acates voltar ao acampamento para trazer o filho Ascânios, os navios com todas as tripulações e uma variedade de presentes para a rainha: um belíssimo manto com imagens bordadas de ouro, o véu de Helena, maravilhoso presente de sua mãe Leda, trazido por ela de Esparta; o cetro de Ilíone, filha mais velha de Príamos; um colar de pérolas e uma coroa de ouro e pedras. Acates assim o fez. Enquanto Enéias foi levado para a sala dos banhos, Acates tratou da missão.

Mas a mãe de Enéias não tinha sossego quanto ao Fado do filho, pois temia a dobrez tíria e a perfídia da casa real.

— Héra não descansará enquanto não destruir Enéias. Talvez venha mesmo a instilar no coração da rainha, que até agora tem se mostrado uma soberana cordata e amável, um ódio funesto e profundo, a fim de levar Enéias à mais negra ruína!

Preocupava-se, outrossim, e bastante, a circunstância de ser Héra, inimiga mortal de Enéias, a deusa protetora daquele país. Assim, excogitou novo ardil.

— Éros querido, preciso mais uma vez de teus préstimos.

— Sim, minha mãe?

— Quero que alvejes sem piedade o coração de Dido, para que ela se apaixone por meu filho Enéias, teu irmão.

Seu filho, deus do amor, haveria de tomar o aspecto do jovem Ascânios e se apresentaria no lugar deste, no real palácio de Cartago. Se Dido, no curso do maravilhoso banquete, pusesse a encantadora criança no colo e o acariciasse, o Amor lhe insuflaria no coração o seu fogo secreto e o enlouquecedor veneno da paixão amorosa. O deus obedeceu a ordem de sua mãe, e, sem perder tempo, livrando-se das asas, adotou o aspecto do pequeno Ascânios. Enquanto isso, o verdadeiro Ascânios era raptado por Afrodite, e, após mergulhá-lo em profundo sono, o levara para a sua casa, no bosque de Idálion, em Cipros, deixando-o em deliciosa e perfumada sombra.

Mais tarde, chegavam no porto de Cartago os navios restantes da frota troiana, trazendo o alegre Ascânios e todas os tripulantes e o povo troiano sobrevivente de Tróia incendiada.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:15

Na hora do banquete, enquanto todos os troianos acomodavam-se em torno das mesas, sobre almofadas de púrpura, criados traziam água e toalhas para as mãos e serviam o pão nos cestinhos, cinqüenta donzelas se alinhavam na cozinha em frente dos fogos acesos, diante das fumegantes iguarias, e outras cem e muitos criados colocavam os manjares nas mesas e ofereciam taças de ouro aos comensais. Também os tírios se apresentavam em nutridos grupos e, convidados pela sua rainha, se acomodavam às mesas. Os presentes de Enéias causaram geral assombro, e imediatamente todos os olhares se concentraram no suposto Ascânios que, com hipócritas abraços, se atirou ao pescoço do pai, cobrindo-lhe de beijos e proferindo palavras de maravilhosa discrição, tanto que Enéias estranhou. Principalmente a pobre Dido, já condenada à perdição por Éros, não se cansava de fitar ora o menino, ora os presentes, e os olhos lhe fugiam cada vez mais. Finalmente, o pequeno deus, arrancando-se a Enéias, correu para o colo da rainha, que o aceitou prontamente e, olhando-o com amor, lhe prodigou ternas carícias, não suspeitando que era um deus em aspecto humano. Éros, entretanto, obedecendo às ordens de sua mãe, aos poucos, tirando do coração de Dido a imagem do marido morto, Siqueus, e lhe despertava os sentimentos já quase mortos no peito, inflamando-a de nova paixão. Depois, o menino-deus pulou do colo de Dido e saiu, e logo estava de volta aos braços da mãe.

E Afrodite, entretendo seus macios e longilíneos dedos por entre os caracóis de seu eficiente rebento, disse:

— Agora precisamos quebrar sua última resistência.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:16

Chegava o banquete ao fim. Os pratos eram retirados das mesas, traziam-se enormes jarras de vinho e enchiam-se as taças. Pelas salas do palácio reinava alegre vozeria; a noite caíra de vez, e grandes candelabros acesos pendiam das vigas douradas do teto. Dido ordenou que lhe entregassem a mais linda das taças, toda de ouro e pedras preciosas. Fez encher a grande taça até a borda; durante muitos anos fora aquela a taça dos reis tírios. Em seguida, levantando-se do trono, ergueu-a com a mão direita, e num instante sumiu toda a bulha nos salões. Disse a rainha:

— Ó grande Baal-Moloc, protetor de Kart-Hadasht! Que esta data seja de júbilo para os homens de Tróia e de Kart-Hadasht, e possa ser para sempre lembrada pelos nossos filhos!

E, pensando homenagear os troianos, lembrou-se de alguns dos seus deuses:

— Também tu, Zeus, poderoso guardião da hospitalidade, e tu, Dionisos, deus benfazejo dos banquetes, e tu, graciosa Héra, que amas os fenícios, ponde-vos ao nosso lado.

Elissa, então, se dirigiu a Enéias:

— A propósito, Enéias, desejo ser chamada de Dido, nome que me foi dado a partir do momento que deixei a Fenícia. Alashia, hoje, é passado...

Em seguida, verteu uma libação sobre a mesa, encostou a taça aos lábios e passou-a ao príncipe troiano Bítias, que estava a seu lado, e a todos os chefes de Cartago e Tróia. O menestrel Topas, empunhando sua cítara dourada, entoou belíssimo canto sobre a criação do mundo, na versão dos fenícios, e Enéias, a pedido da rainha, fez um relato detalhado das suas aventuras.

Depois de se recolherem os troianos para os seus leitos, no palácio e nos navios, passava uma noite insone a rainha, confusa por estar esquecendo seu saudoso marido diante daquele príncipe estrangeiro, nobre e muito gentil. Não conseguindo pregar o olho, Dido levantou-se do leito e rumou para o aposento de sua irmã e amiga Ana e abriu-lhe inteiramente o coração:
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:17

— Minha irmã, torturam-me sonhos estranhos. Que maravilhoso hóspede acaba de cruzar o limiar de nossa casa! Que armas, que valo, que olhar! Bem se reconhece imediatamente que descende dos Imortais. Que destino o dele, nas guerras enfrentou, que viagens suportou! Minha irmã, na verdade, se, quando a Morte frustrou as minhas ilusões, levando-me o primeiro amor, eu não tivesse tomado a firme resolução de jamais tornar a unir-me a outro varão pelos laços do casamento, creio que essa seria a única fraqueza à qual cederia. Antes, porém, há de tragar-me a terra ou de ferir-me o raio. Meu marido levou para o túmulo o meu amor.

As lágrimas afogaram-lhe a voz, e ela não pôde continuar.

— Elissa, quero-te mais que a própria vida. Pretendes, acaso, gastar a mocidade na solidão e na perpétua tristeza? Julgas que as cinzas de teu marido exijam tais sacrifícios? Não te ocorre em que terra vives, rodeada, por um lado, de belicosos habitantes e inóspitos bancos de areia, e por outro de áridos desertos? Não pensas nas guerras com as quais de Tiros te ameaça teu irreconciliável irmão? E a corte que te faz Jarbas, o soberano dos gétulos? Acredita-me, é graças a grande deusa terem vindo os barcos troianos às nossas costas. Ah, que força não adquiriria a cidade e o reino com tal casamento! Como cresceria a fama dos fenícios com o auxílio das armas troianas! Sê razoável, minha querida irmã, faze sacrifícios aos deuses, oferece presentes, prende os heróis com elogios de toda espécie, enquanto a frota estiver imprestável e os Ventos forem contrários.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:17

Com essas palavras, inflamou Ana ainda mais a alma já exaltada de Dido e afogou-lhe no coração qualquer temor. Ambas rumaram para o templo, e ofereceram um sacrifício aos Baal e Baalat (deuses e deusas) de Cartago. Em seguida, Dido acompanhou o herói através da cidade, mostrando-lhe as riquezas trazidas de Tiros, e realizou outro banquete em honra do hóspede. Mais uma vez prodigalizou carícias a Ascânios, imagem viva do pai, e ouviu, arrebatada, a descrição dos sofrimentos de Tróia dos lábios de Enéias.

Nada disso passara despercebido da mãe dos deuses, Héra, a quem pareceu chegado o instante de enganar para sempre Enéias, no tocante à Itália, e fazer que o povo troiano se perdesse no meio de raças estrangeiras. Indo encontrar Afrodite, disse-lhe:

— Na verdade, conseguiste uma grande vitória, tu e teu filho! Mas, para que novas discussões? Vamos combinar um casamento e, com ele, a paz perpétua. Conseguiste o que tanto desejavas. Dido arde de amor a Enéias. Pois se é assim, que se unam os dois povos, que ela sirva um marido troiano e que os tírios constituam o seu dote.

Compreendeu Afrodite perfeitamente o móvel oculto daquelas palavras. No entanto, respondeu-lhe, com deferência:

— Quem seria tolo a ponto de negar os teus desejos? Como ousaria eu medir-me contigo numa luta sem fim? Mas duvido que Zeus permita a união dos dois povos. A ti, que és sua esposa, cabe conquistá-lo mediante rogos. Trata de alcançar o teu objetivo, que eu te ajudarei.

— Deixa isso por minha conta. Em primeiro lugar é preciso que se realize o casamento. Depois, Zeus não terá outro remédio senão sancionar o que está feito.

Afrodite fez um gesto de assentimento, rindo-se embora, no íntimo, daquele ardil.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:18

No dia seguinte de manhã, preparou a rainha uma grande caçada em honra aos hóspedes, e um grupo de jovens escolhidos abandonou as portas da cidade, munidos todos de laços, redes e dardos, e acompanhados de cavalos e cães. Estava diante do palácio a montaria da soberana, com arreio refulgente de ouro e manta de púrpura, mordendo impacientemente o freio, e espumado. Ao lado da porta, aguardavam os príncipes tírios. Finalmente, surgiu Dido, seguida do seu cortejo de caçadores, usando traje de caça do estilo de Sídon, bordado com múltiplas cores e coberto por um manto de púrpura fechado por um alfinete de ouro; cingia-lhe a testa um diadema de ouro, e de um dos ombros lhe pendia a aljava, também de ouro. No cortejo, incluíam-se quatro troianos, entre eles o alegre Ascânios, trazido de volta por Afrodite do seu profundo sono. Uniu-se, por fim, à comitiva o mais belo de todos, Enéias, com os seus mais fiéis companheiros.

Mal chegaram ao monte, disse Dido a Enéias:

— Aqui não faltará prazer a ti nem a qualquer dos teus.

E dispersaram-se pelas sendas ocultas. Do alto dos rochedos não tardaram em descobrir gamos que saltavam pelas colinas; noutros pontos, fugiam os cervos das suas montanhas, e, em densos bandos, disparavam através do campo. No centro do vale, Ascânios, cavalgando o seu brioso cavalo, umas vezes corria com alguns caçadores, outras com os demais. Desprezava aqueles tímidos animais e esperava defrontar-se, a qualquer momento, com um furioso javali ou ver aparecer na colina algum leão.

Achavam-se os caçadores tão absortos na diversão que não notaram que o céu começava a cobrir-se de nuvens, e só perceberam a tempestade quando o Bóreas começou a assobiar por entre as árvores, e a cair a chuva e o granizo. Tírios e troianos precipitaram-se para refúgios apropriados, desejosos de se protegerem.

Dido exclamou:

— Oh, não, e esta agora!
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:18

Correu, ávida por encontrar um abrigo; encontrou um abrigo no alto do morro, uma gruta oculta, entre rochas e galhos. Dido agarrou-se aos galhos das árvores para subir, mas, ao tentar alcançar a entrada da gruta, perdeu o equilíbrio e desceu rolando pelo barro encharcado.

E assim, na quarta tentativa, suas vestes já estavam em trapos e ela, toda encharcada e encoberta de lama. Nem bem ergueu-se, percebeu que a chuva colara suas vestes ao corpo, mostrando-a quase nua. E, nesse estado, teve forças para conseguir escalar e alcançar o topo, pois temia que a vissem assim. Então, descalça e com alguns ferimentos pelo corpo, entrou na gruta, e, num grande susto, deparou-se com alguém lá, que tratava de limpar do corpo a lama. Era Enéias, que ainda não dera pela presença da rainha.

Ela, imediatamente, cobriu suas partes quase nuas com as mãos, mas não conseguiu mover os seus pés para procurar outro abrigo, e assim permaneceu parada diante daquele belo homem que distraidamente ainda não a vira.

A chuva continuava a cair implacavelmente, e os ruídos dos trovões sacudiam a gruta inteira. Tudo começava a escurecer, tanto lá fora quanto ali dentro, e não foi sem uma pequena lástima que viu as formas de Enéias desaparecerem aos poucos, engolidas pela escuridão da gruta. Mas ainda havia um consolo: de vez em quando algum relâmpago, que não era tão raro que não iluminasse a gruta inteira por alguns segundos, fazia ver outra vez aquelas formas. Dido decidiu, então, naquele misto de proteção e desvelamento, simular uma chegada abrupta. Recuou silenciosamente um pouco e, posicionando-se na entrada, perguntou:

— Há alguém aí?

Um novo relâmpago iluminou o interior da gruta e ela viu o rosto de Enéias voltado para ela. Viu o espanto, ainda que por um brevíssimo momento, desenhado em seu rosto. Ele, por sua vez, também percebeu quem ela era. Dido, então, deixou que seus braços pendessem livremente, a fim de deixar que ele a visse tentadora.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:19

Tudo escureceu, e quando a luz brilhou novamente, Enéias estava diante dela. Ela já tinha as mãos postas em guarda, mas o homem que ela amava permanecia despreocupado com isso. E tão logo a escuridão se fez outra vez, sentiu que seus braços fortes envolviam seus ombros. E ela, com um tom de voz que autorizava o desejo dele e o seu próprio:

— Oh, Enéias, como te atreves a agarrar uma rainha?

O estrondo, o brilho dos raios e o ribombar do trovão despertaram a paixão da rainha, até aquele momento contida, e ela, esquecida de todo pudor, entregou-se ao ardente desejo que lhe devotava. Enéias, ofuscado, esqueceu-se de todas as divinas promessas, correspondeu à ternura da rainha e, com imprudente juramento, sigilou os arroubos do seu desejo. E, num piscar de olhos, antes que o relâmpago pudesse iluminar outra vez o interior da gruta, estavam ambos entregues aos adoráveis exercícios prescritos por Afrodite. E ali ficaram por várias horas.

Passada a tempestade, tornou a encontrar-se o grupo de caçadores, e Enéias voltou para a cidade e para o palácio, ao lado de Dido. Sucederam-se as festas, sem que ninguém lembrasse da partida. Os troianos permaneceram longo tempo em Cartago, chamada Kart-Hadasht pelos fenícios. Enéias chegou a esquecer o intento de fundar uma nova cidade na Itália. A rainha o amava e o cercava de luxo e prazeres.

Finalmente, chegou o inverno.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:19

A pequenina e bela Fama deixou então sua caverna, portando uma pequena trombeta, ergueu voo com suas asas repletas de pequenos olhos e percorreu as cidades da Líbia. Essa divindade, muitíssimo móvel por natureza, era filha da mãe Terra e irmã menor dos Gigantes. Mal saía do seu retiro, diminuta e tímida, adquiria logo força e volume, elevava-se nos ares, e, enquanto os pés lhe deslizavam pelo solo e pelos ares, sua cabeça se lhe ocultava nas nuvens. A sua figura, então, tornava-se horrível, o corpo coberto de penas, cada uma das quais escondia um olho cintilante, uma língua e uma boca que nunca se calavam, e orelhas sempre erguidas. Durante a noite, voava entre a Terra e o Céu, murmurava no meio das sombras, e as suas pálpebras jamais cediam ao Sono. Durante o dia, entretanto, ficava à escuta, escondida no beiral dos telhados das casas e nas ameias das torres, provocando o assombro na cidade e no campo com o seu grito horríssono, sem que fosse possível notar qualquer diferença, quando dizia a verdade ou quando anunciava a mentira.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:20

Esse ser, agora monstruoso, acompanhada da Calúnia, da Maledicência e de seu irmão mais novo, o Boato, encheu, então, todos os rincões da África de tudo quanto era boato, narrando, em maliciosa confusão, o verdadeiro e o falso: chegara um estrangeiro, um homem de raça troiana, chamado Enéias, e a formosa rainha Dido o escolhera por marido, esquecendo-se da sua posição e abandonando as rédeas do governo, e o par transcorria o inverno entre o fausto e a suntuosidade. A agora repugnante deusa fazia circular tais histórias pela boca do povo. De repente, ergueu voo para Getúlia, cidade do rei Jarbas, a quem Dido recusara a mão recentemente; o rei, muito ofendido, inflamou-se de selvagem ódio perante as novas propaladas pela Fama. Era ele filho de Zeus-Ámon e de uma ninfa libiana chamada Garamântis, da estirpe dos reis de Creta, e erigira ele ao pai cem esplêndidos templos em Getúlia, nos quais oficiavam constantemente os sacerdotes, estando as portas sempre ornadas de flores. O príncipe, enfurecido, prostrou-se diante do altar, ergueu as mãos ao Céu e orou:

— Meu poderoso pai Ámon, a quem servem todos os povos mauritanos, vês isto e não despejas o teu raio? Uma fugitiva que, à custa de dinheiro, construiu uma pequena cidade, e a quem eu concedi o direito de cultivar as terras costeiras do meu território e de governar o país, uma mulher assim, que desprezou insolentemente a minha mão, se entrega ao adulador troiano, e permite que o efeminado desfrute do que é meu? E nós, loucos que somos, não cessamos de colocar ofertas nos teus altares e de acreditar no teu poder infinito.

Assim orou, abraçando o altar do pai Zeus. Este, do alto do Olimpo, ouviu-o e olhou para Cartago. O ócio dos troianos desagradou a Zeus, que chamou o deus Hermes e, irritado, disse-lhe:
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:20

— Que anda procurando Enéias em país inimigo? Não foi para isso que, por duas vezes, o salvei das armas dos gregos e muitas outras da fúria das tempestades. Ele tem edificar um reino na Itália! Que parta, pois, imediatamente. É a minha vontade, e tu a ele dirás em meu nome.

Enquanto isso, em Cartago, Ana confidenciava com sua irmã:

— Minha querida. Alguns viajantes que retornaram da corte do rei Jarbas dão conta de que esse soberano tem o coração tomado pela ira contra ti, eis que rejeitaste a mão dele sob o pretexto da castidade, para agora estar com esse que ele chama “frígio errante e miserável”.

Dido, apesar de ofendida com os termos do soberano, baixou os olhos. Depois, erguendo-os novamente, confessou:

— Ana, minha irmã e confidente. Não posso mais esconder: meu coração é todo de Enéias. Embora tenha jurado um dia permanecer fiel à memória de meu querido esposo Sicarbas, não posso mais resistir a este sentimento que me avassala.

— É, eu sei, Alashia...

— Dido, minha querida irmã... Alashia é passado.

— Está bem, Dido. Realmente tu não podes mais ficar sem um rei ao teu lado, que dirija com mão forte os negócios do reino. Enéias é um homem forte, viril e corajoso, e tenho a certeza de que será um excelente soberano para o nosso povo.

Aos poucos todos foram se acostumando à ideia e achando perfeitamente natural que a rainha se consorciasse com aquele valente forasteiro. Mas nos céus se pensava diferente, e Zeus dava as suas ordens para o seu filho mensageiro.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:21

Como ave, sulcou Hermes os ares com os seus pés alados, e pouco depois atingiu Cartago; ali, deparou-se-lhe Enéias ocupado em vigiar a construção de novos palácios, satisfeito por sua decisão em brevemente desposar a rainha. A sua espada cintilava de pedras, e o manto feito pela próprio Dido, era uma chama purpurina. Dos pés à cabeça, era o seu aspecto o de um príncipe tírio, e não o de um troiano. Hermes, colocando-se-lhe ao lado, invisível aos outros, murmurou-lhe ao ouvido:

— Escravo das mulheres, eis-te aqui, esquecido do teu destino e do teu reino, construindo a cidade de uma estrangeira. Não te lembras de teu filho Ascânios e da soberania que ainda deves fundar? Fugiste aos gregos, temendo a sujeição, para agora te tornares escravo de uma mulher?

Hermes desapareceu antes que Enéias pudesse refazer-se do assombro. Então, voltando os olhos, viu ao longe seu filho, e o herói continuava a ouvir no íntimo o eco da divina voz, que lhe não permitia pensar em outra coisa senão em empreender uma rápida fuga. Depois de pensar no seu propósito, e de amadurecê-lo, analisando-o sob todos os aspectos, chamando os companheiros mais íntimos para um lugar afastado, ordenou-lhes que preparassem, secretamente, a frota, reunissem os homens na costa e preparassem as armas. No entanto, não lhes revelou o motivo de tal procedimento. Desejava, antes que Dido suspeitasse da causa da sua infidelidade decretada pelo Céu, aguardar a hora mais oportuna para comunicar-lhe, com a possível suavidade, o desígnio da sorte.

Mas quem seria capaz de esconder alguma coisa ao coração que ama? A rainha percebeu o engano, e sentiu-se vítima da Angústia, como se tudo estivesse seguro. A pérfida Fama anunciara-lhe que os troianos estavam preparando a frota e pretendiam partir. Percorrendo, então, como louca as ruas da cidade, até encontrar o amado Enéias, disse-lhe:
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:21

— Pérfido, esperavas que não notasse a tua traição e que conseguirias partir furtivamente? O meu amor, a minha mão, a minha morte não bastam para reter-te? Em pleno inverno te aprontas para zarpar. Cruel! Preferes atirar-te aos braços do Áquilon a repousar nos meus! Por que foges de mim, Enéias? Por estas lágrimas, pela mão que aperto, pelo nosso recente himeneu, suplico-te, se te fiz algum bem, se algo doce encontraste em mim, que mudes de propósito e de que te compadeças de minha casa ameaçada. Por tua causa sou odiada prelos povos da Líbia e pelos próprios tírios. Por ti, renunciei ao Pudor que me prestigiava. Meu amigo, já que não és meu esposo, a quem me abandonas agonizante? Terei de esperar que Pigmálion assalte as muralhas da minha cidade, e que Jarbas me conduza ao cativeiro?

Assim falou Dido, imersa no mais negro desespero. Enéias, no entanto, advertido por Zeus, não permitiu se lhe notasse a emoção no olhar, e pôde reprimir a dor que lhe devorava o coração. Finalmente, respondeu com brevidade:

— Enquanto tiver consciência de mim mesmo, enquanto o espírito se mover nos meus membros, não me esquecerei dos favores que recebi de Dido. Não creias que eu pretendia escapar como ladrão; não estamos casados; jamais prometi acender os archotes do himeneu, não vim a ti para contrair o laço do casamento. Se o Destino me permitisse dispor da vida, em primeiro lugar reconstruiria Tróia e a casa de Príamos. Mas Apolo manda que eu zarpe para a Itália. Lá está o meu amor, e lá está a minha Pátria. Poderei roubar a meu filho o reino prometido? O próprio Zeus me proíbe fazê-lo. Hermes, seu emissário, me apareceu. Dido, cessa, portanto, de agravar com os teus lamentos a nossa dor comum. Não é por vontade minha que parto para a Itália.

Voltada para um dos lados, olhou a rainha demoradamente para Enéias, e medindo-o dos pés à cabeça, prorrompeu em ardentes palavras de indignação:
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:22

— Tua mãe não foi uma deusa, nem tu provéns da linhagem de Dárdanos. Nasceste de uma rocha do Cáucasos e aleitou-te um tigre da Hircânia! Nem sequer suspiraste diante das minhas lágrimas! Voltaste os olhos para mim? Tiveste pena do meu amor? Atirado à praia, como simples mendigo, recolhi-te, devolvi-te os barcos, os companheiros arrancados às garras da Morte, elevei-te à dignidade do meu trono. E agora te apoias no Oráculo do teu deus Apolo, na vinda de um mensageiro dos vossos deuses, numa ordem desse tal Zeus, como se o perjúrio fosse a este coisa agradável. Está bem, não discutirei contigo, não te reterei, vai procurar a Itália por entre as tempestades. Se é que ainda existem deuses, aguardar-te-ás nos escolhos a minha vingança. A minha sombra te seguirá por toda parte, e quando pagares o teu crime, eu a tudo presenciarei do mais profundo Vale das Sombras.

Enéias, sem poder responder, deu as costas à rainha. Faltaram a voz e a respiração à infeliz, que tombou desmaiada nos braços das suas ancilas.

Enéias quase cedeu à tentação de consolar a dor de Dido com amorosas palavras; estremecia-o o seu grande amor a ela. Não obstante, soube resistir e, fiel à ordem dos deuses, rumou para a frota. Não tardou ela em estar pronta a zarpar, e Dido, das ameias do seu castelo, viu como pululavam na costa os que se aprestavam a partir.

E chamou sua irmã Ana:
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:22

— Ana, vês aquela agitação na praia? Não ouves o gemido das velas ao vento? Não vês os marinheiros na coberta dos barcos? Ah, se me tivesse sido possível prover tamanha dor, talvez houvesse sido capaz de suportá-la. Mas agora, rogo-te, minha irmã, que me prestes um favor, um grande favor. Enéias sempre te dedicou grande estima e te confiou os seus mais recônditos sentimentos. Vai procurá-lo, fala ao orgulhoso inimigo com palavra submissa. Não jurei em Áulis o extermínio dos troianos, nem tampouco enviei nenhuma frota contra Príamos e sua gente; não arranquei do sepulcro as cinzas de seu pai, Anquises, para que haja resolvido vingar-se tão cruelmente de mim. Dize-lhe, ao menos, que espere tempo melhor para fugir e Ventos mais favoráveis. Não lhe peço que renuncie à Itália; o que almejo é apenas um prazo para acalmar o meu delírio, apenas um tempo, o bastante para compreender e chorar o meu destino.

Assim se queixou a pobre rainha. Sua irmã correu a expor mais uma vez ao herói a desolação de Dido. Mas já eram incapazes as palavras humanas de enternecê-lo; um deus tapava os ouvidos daquele homem, tão sensível sempre a qualquer dor. Ana suplicou, mas Enéias permaneceu firme como um carvalho.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:22

Naquela noite escura, os troianos embarcavam como que furtivamente e preparavam-se para içar as velas. Quando a rainha Dido veio a saber que os navios estavam realmente deixando o ancoradouro. Reconheceu, então, Dido, a ordem do Destino e quis morrer, não se vendo com forças para continuar a contemplar o céu. Mais ainda afirmou na decisão um horrível presságio que um deus lhe enviava, durante a sua última oferenda: o vinho vertido da taça mudou-se em negro sangue. Dido não contou a ninguém o que sonhara, nem sequer à própria irmã, mas a partir daquele instante só cuidou do modo de enganar os seus e preparar-se para a Morte. Apresentando-se, risonha, à irmã, e tendo nos olhos um raio de esperança, disse-lhe:

— Alegra-te, minha querida Ana! Descobri a maneira de reaver Enéias, ou de libertar-me do Amor que a ele me prende. Uma etíope que cuida do templo das deusas Hespérides está aqui, e promete-me, com os seus cantos mágicos, conquistar-me o coração do amado ou destruir o meu amor. Para tanto, instruiu-me nas práticas necessárias. Se estudo as artes mágicas, não o faço por gosto. Assim, minha boa irmã, peço-te que, obedecendo às indicações da feiticeira, me ergas secretamente uma pira no pátio interior do palácio e sobre ela coloques as armas deixadas pelo infiel no seu aposento, assim como os seus trajes e a roupa do seu leito. Quero destruir todos os sinais do malvado, pois que assim o ordena a sacerdotisa.

Calou-se, e mortal palidez lhe cobriu o rosto. Sua irmã não desconfiou de que por trás daqueles novos e esquisitos processos expiatórios se ocultava a ideia do suicídio. Não desconfiou da exaltação que havia chegado o espírito de Dido, nem tampouco temeu que sucedesse algo pior que por ocasião da morte do primeiro marido, o tírio Siqueus. Assim, tratou de desincumbir-se.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 20:23

Quando a pira ficou pronta, feita de lenha resinosa e de carvalho, a rainha apresentou-se pessoalmente, a coroou de ramos de ciprestes e a rodeou de grinaldas de flores. Em seguida, colocou sobre ela a espada, a roupa e uma imagem de Enéias, e ordenou se erguessem altares em voz alta. A sacerdotisa de outras terras, com os cabelos flutuantes, invocou todas as divindades do Reino das Sombras e verteu uma libação infernal sobre a pira. Depois, atiraram-se a ela erva, à luz da Lua, e praticaram-se muitos outros conjuros. Finda a cerimônia, voltou a triste rainha para o palácio, a fim de se entregar ao derradeiro repouso noturno de que desfrutaria na Terra.

Entretanto, Enéias, decidida a partida, adormecera na popa do seu barco, quando, de súbito, tornou a lhe aparecer Hermes, em sonhos, e o admoestou:

— Filho de Afrodite, como podes dormir no meio de tantos perigos? Não ouves o rumor do favorável Zéfiros? É assim que pretendes erguer e conduzir uma nova pátria? A rainha abandonada está meditando, no coração, a tua ruína, crimes horríveis que lhe matem a sede de vingança. Não foges, enquanto é tempo?

Enéias, assustado, saltou do improvisado leito e ordenou aos seus homens que apressassem a partida. E, dando um último olhar para o palácio de sua amada Dido, lançou-lhe estas palavras:

— Dido, amada, perdoe a minha fuga, mas os deuses não quiseram que permanecêssemos juntos por muito tempo. Nos Campos Elísios, quem sabe, haveremos de estar juntos algum dia. Ali saciaremos, então, eternamente, todos os desejos que os Fados agora não nos permitiram.

Chegada a Aurora, e a rainha, subindo ao eirado do palácio, contemplou a praia deserta, e recebeu a primeira punhalada do dia: viu a frota, de velas desdobradas, navegando em alto-mar. Bateu o peito com as mãos, desalinhou as madeixas louras e, após grandes gemidos, chamou Barce, ama do defunto marido, e pediu-lhe que fosse chamar a irmã.
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