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A Saga de Enéias

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A Saga de Enéias - Página 3 Empty Re: A Saga de Enéias

Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:14

— Alegra-te, minha querida Ana! Descobri a maneira de reaver Enéias, ou de libertar-me do Amor que a ele me prende. Uma etíope que cuida do templo das deusas Hespérides está aqui, e promete-me, com os seus cantos mágicos, conquistar-me o coração do amado ou destruir o meu amor. Para tanto, instruiu-me nas práticas necessárias. Se estudo as artes mágicas, não o faço por gosto. Assim, minha boa irmã, peço-te que, obedecendo às indicações da feiticeira, me ergas secretamente uma pira no pátio interior do palácio e sobre ela coloques as armas deixadas pelo infiel no seu aposento, assim como os seus trajes e a roupa do seu leito. Quero destruir todos os sinais do malvado, pois que assim o ordena a sacerdotisa.

Calou-se, e mortal palidez lhe cobriu o rosto. Sua irmã não desconfiou de que por trás daqueles novos e esquisitos processos expiatórios se ocultava a ideia do suicídio. Não desconfiou da exaltação que havia chegado o espírito de Dido, nem tampouco temeu que sucedesse algo pior que por ocasião da morte do primeiro marido, o tírio Siqueus. Assim, tratou de desincumbir-se.

Quando a pira ficou pronta, feita de lenha resinosa e de carvalho, a rainha apresentou-se pessoalmente, a coroou de ramos de ciprestes e a rodeou de grinaldas de flores. Em seguida, colocou sobre ela a espada, a roupa e uma imagem de Enéias, e ordenou se erguessem altares em voz alta. A sacerdotisa de outras terras, com os cabelos flutuantes, invocou todas as divindades do Reino das Sombras e verteu uma libação infernal sobre a pira. Depois, atiraram-se a ela erva, à luz da Lua, e praticaram-se muitos outros conjuros. Finda a cerimônia, voltou a triste rainha para o palácio, a fim de se entregar ao derradeiro repouso noturno de que desfrutaria na Terra.

Entretanto, Enéias, decidida a partida, adormecera na popa do seu barco, quando, de súbito, tornou a lhe aparecer Hermes, em sonhos, e o admoestou:
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:15

— Filho de Afrodite, como podes dormir no meio de tantos perigos? Não ouves o rumor do favorável Zéfiros? É assim que pretendes erguer e conduzir uma nova pátria? A rainha abandonada está meditando, no coração, a tua ruína, crimes horríveis que lhe matem a sede de vingança. Não foges, enquanto é tempo?

Enéias, assustado, saltou do improvisado leito e ordenou aos seus homens que apressassem a partida. E, dando um último olhar para o palácio de sua amada Dido, lançou-lhe estas palavras:

— Dido, amada, perdoe a minha fuga, mas os deuses não quiseram que permanecêssemos juntos por muito tempo. Nos Campos Elísios, quem sabe, haveremos de estar juntos algum dia. Ali saciaremos, então, eternamente, todos os desejos que os Fados agora não nos permitiram.

Chegada a Aurora, e a rainha, subindo ao eirado do palácio, contemplou a praia deserta, e recebeu a primeira punhalada do dia: viu a frota, de velas desdobradas, navegando em alto-mar. Bateu o peito com as mãos, desalinhou as madeixas louras e, após grandes gemidos, chamou Barce, ama do defunto marido, e pediu-lhe que fosse chamar a irmã.

Vendo-se sozinha, correu ao pátio interior do castelo, impelida pela exaltação da Loucura, galgou o topo da elevada pira, onde estava a espada do pérfido amante, desembainhou-a, e, deitando-se no leito do herói, do alto daquele monte de lenha, confiou ao ar as suas últimas palavras de despedida:

— Ó doces prendas de dias mais felizes, recebei esta alma, redimi-me de tão grande dor! Dido morre. Dido cumpriu a missão que lhe fora assinalada pelo Destino. Não descerá ao Vale das Sombras insignificantemente. Fundou esplêndida cidade, que não sabia ser capaz, castigou seu perverso irmão. A sua felicidade houvera sido completa se, com sua frota, o troiano sem palavra e coração endurecido não tivesse tocado jamais as costas da Líbia, e agora foge para sempre!

A dor impediu-a de continuar e ela, mergulhando o rosto no travesseiro, cravou a espada no peito.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:16

Aos seus gemidos, acudiram imediatamente as donzelas do palácio. Encontraram-na desfeita, a espada vermelha de sangue, as mãos ensanguentadas. Por todas as dependências se levantou enorme grito de dor, que não tardou em se espalhar pela cidade inteira. Ana, rumando para o palácio, soube da terrível novidade; fora chamada pela velha nutriz Barce. Batendo o peito com os punhos cerrados, e arranhando o rosto com as unhas, precipitou-se para o pátio do castelo real, através da multidão que se aglomerava diante do palácio, entre eles Barca, o irmão de Dido e Ana, e, vendo-a de longe, sendo retirada da pira, gritou:

— Minha irmã, minha irmã! Que fizeste? Por que me enganaste? Mataste a mim, a teu irmão, mataste o teu povo, teus pais, mataste toda a cidade!

Sem cessar os lamentos, atirou-se aos braços de Dido que ainda respirava e que, com grande esforço, abriu os olhos, enquanto do ferimento lhe jorravam borbotões de sangue. Por três vezes tentou inutilmente soerguer-se; por fim, tombando desfalecida nos braços da irmã, entregou a pobre alma.

Naquele mesmo instante, longe, em alto-mar, Enéias sentia uma dor terrível que lhe feria o coração, e quase caiu ao chão, não fossem seus amigos que o acudiram.

JOGOS EM HONRA DE ANQUISES

Embora os próprios deuses tivessem disposto que Enéias abandonasse Dido, teve o herói de pagar o lamentável fim da rainha, com inúmeras desventuras. As naus troianas e lícias encontravam-se já distantes do litoral africano, quando o céu escureceu, pressagiando nova borrasca.

Palinuros, o primeiro piloto da frota, mostrando-se preocupado, mandou arriar as velas.

— Não podemos manter o rumo enquanto o vento sopra do Ocidente. Devemos por os homens nos remos e zarpar para a Trinácria, que fica bem próxima.

— Agrada-me voltar à Trinácria, onde está sepultado meu pai. Aproveitemos o vento do Oeste, logo manda os remadores ocupar suas posições.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:16

A um sinal da nau principal, mudaram de rumo, impelidos pelo vento, rumo à Trinácria. Logo que o tempo começou a fechar, arriaram as velas e os remadores puseram mãos à obra. Em pouco tempo alcançavam o Drépanos.

Acestes, rei do país, informado de que velas teucras se aproximavam da costa, foi à praia e foi dar as boas-vindas aos navegantes, que retornavam. E, imediatamente, arrastaram os navios para a praia.

A noite foi tomada por Ventos fortes e muita chuva. Mas, no dia seguinte, o tempo acalmou-se. À hora de nascer o Sol, Enéias reuniu seus companheiros.

— Precisamente há um ano enterramos meu pai nesta terra. Honraremos sua memória, agora, como no futuro, sempre na mesma data, onde quer que estejamos.

Assim falando, cingiu a fronte com um ramo de murta, no que foi imitado pelo rei Acestes, pelo filho Ascânios e por todos os troianos. Em seguida, junto ao túmulo do pai Anquises, encheu duas taças de vinho e duas taças de leite e espalhou flores sobre a sepultura.

Uma grande serpente irisada saiu do túmulo, deslizou para o altar e bebeu o vinho e o leite. Não sabendo como interpretar o fato, Enéias fez nova oferenda, desta vez de duas ovelhas, dois leitões e dois novilhos. Outros troianos também trouxeram cordeiros e novilhos e os sacrificaram sobre o altar.

Dias depois, quando o tempo melhorou, após muita chuva, os troianos promoveram uma série de jogos. Muitos habitantes da ilha afluíram de lugares distantes para assistir às competições esportivas, cujos prêmios eram lanças e espadas, vestes tingidas de púrpura e talentos de ouro e prata.

Uma trombeta deu o sinal para o começo dos jogos.

A competição iniciou-se com uma regata disputada por quatro barcos: “Hipocampos”, sob o comando de Mnesteus, “Quimera”, sob o comando de Gias, “Cila”, sob o comando de Cloantos e “Centauro”, sob o comando de Sergestes.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:17

A algumas milhas do litoral erguia-se um rochedo que era coberto pelas vagas quando o mar se escapelava, mas que em dias de calmaria sobressaía das águas. As aves marinhas gostavam de ali pousar para aquecerem-se ao Sol. Nesse dia, por exigência do torneio, cabia a cada navio ir até o rochedo, rodeá-lo e voltar à praia.

Sorteadas as raias, os capitães foram colocar-se na popa de seus navios, envergando túnica de púrpura adereçada de fios de ouro, e os remadores tomaram seus lugares, as frontes coroadas de folhas de álamo e os corpos untados de óleo. Ao soar a trombeta, começaram a remar com toda a força. Acompanhados do alarido da multidão, os barcos avançaram mar adentro, com “Quimera”à frente, seguido de “Cila”, que, embora possuísse homens fortes na equipagem, era mais pesado que os outros navios. Logo atrás vinham “Hipocampos” e “Centauro”, emparelhados.

Quando “Quimera” chegou perto do rochedo, Gias reprovou seu piloto:

— Por que derivas tanto para a direita? Aproxima-te mais do rochedo! Deixa que os outros sigam a rota que quiserem; prefiro o caminho mais curto!

Contudo, o piloto manteve o curso, temendo os abrolhos submersos, invisíveis aos olhos. De repente, a nau “Cila” passou entre “Quimera” e o rochedo e tomou a dianteira. Gias ficou furioso, agarrou o piloto pela cintura e jogou-o no mar, assumindo depois o leme e voltando a proa do barco para o rochedo.

O povo na praia explodiu em risos quando o piloto foi jogado na água. Mas ele conseguiu nadar até a rocha, que escalou com dificuldade, resvalando a todo momento e cuspindo água salgada.

Mnesteus, no “Hipocampos”, vendo o navio “Centauro” à sua frente, correu para a proa e disse à tripulação:

— Amigos! Espero o máximo esforço de todos, como sempre aconteceu, nas batalhas e nos temporais. Não cobiço o primeiro lugar, mas poupai-me a vergonha de chegar em último.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:17

Os homens, a essas palavras, rumaram mais decididos, e em poucos instantes o “Hipocampos” ultrapassava o “Centauro”, que se aproximara tanto do rochedo que ficou alguns instantes encalhado. Logo depois passou também à frente do “Quimera”, que tinha perdido o piloto; quando se acercou do “Cila”, a multidão, entusiasmada, prorrompeu em gritos e aplausos.

Cloantos, comandante do “Cila”, vendo perigar a vitória, levantou uma prece aos deuses do mar e seu barco logo ganhou maior velocidade, atingindo a praia à frente dos demais.

Enéias proclamou Cloantos vencedor, com sua nau “Cila”, e cingiu-lhe a fronte com uma coroa de louros, entregando à tripulação três novilhos, vários jarros de vinho e um talento de prata. Distribuiu também prêmios aos comandantes e às tripulações dos outros barcos e, quando o “Centauro” chegou à praia, com metade dos remos quebrados, Sergestes foi também recompensado.

Em seguida, alinharam-se os troianos e os sícanos, assim denominavam-se os que habitavam aquela região da Trinácria, para a corrida de velocidade, entre os quais figuravam Nisos, Euríalos, Sálios, Pátron, Hélinos, Pânops e o jovem Díores, pertencente à real estirpe de Príamos.

Enéias anunciou aos competidores:

— Todos os que terminarem a corrida farão jus a prêmios. O primeiro a chegar receberá um cavalo completamente arreado; o segundo, uma aljava com setas, e o terceiro, um elmo grego.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:18

Dado o sinal de partida, todos se lançaram à frente e durante algum tempo formaram um grupo compacto; depois Nisos assumiu a ponta, seguido de Sálios e Euríalos. Em quarto lugar vinha o sícano Hélinos, acompanhado de perto por Díores. Já no fim da corrida, Nisos escorregou no sangue dos novilhos sacrificados naquele trecho da pista e caiu. Ainda deitado, esticou a perna, derrubando Sálios e possibilitando com isso a vitória do seu grande amigo Euríalos, que, respirando aos arquejos, alcançou a meta entre aplausos e aclamações. Em segundo lugar colocou-se Hélinos e, em terceiro lugar, Díores. Todavia, Sálios reclamou em alta voz, dizendo-se vítima de trapaça.

— Eu teria conquistado o primeiro prêmio, se Nisos não me tivesse derrubado!

O povo gostava de Euríalos e não deu importância às queixas de Sálios. Enéias não alterou a ordem de chegada, alegando um acidente, e conferiu o primeiro prêmio a Euríalos, o segundo a Hélinos e o terceiro a Díores, mas também se lembrou de Sálios, a quem entregou a pele de um leão com as garras folheadas a ouro.

Chegou a vez de Nisos reclamar:

— Todos eles ganharam belos prêmios, vencedores e vencidos. Espero que não te esqueças de mim, pois eu corria na ponta e só perdi porque tive a infelicidade de escorregar.

Enéias riu e ofereceu ao jovem corredor um belo escudo.

Um dos momentos culminantes dos jogos foi a luta corpo-a-corpo. O troféu destinado ao vencedor era um touro com os chifres encastoados em ouro, e o do vencido em elmo e uma espada.

Dares, alto e robusto, foi o primeiro a apresentar-se. Era muito valente e já tinha conquistado inúmeras e brilhantes vitórias, nos jogos em Tróia. Desfrutava de tão grande fama que não apareceu ninguém para lutar com ele.

— Se ninguém ousa enfrentar-me, o prêmio é meu.

O rei Acestes, voltando-se para o amigo Éntelos, sentado a seu lado sobre a relva, procurou estimulá-lo.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:19

— Éntelos, vais mesmo permitir que o prêmio seja ganho dessa maneira, tu, a que o próprio Érix ensinou a arte de lutar, que foste consagrado vencedor em tantos combates memoráveis, em todas as cidades do país, e que tão brilhantes troféus ostentas em tua casa?

— Não me julgues um covarde, Majestade, é que estou velho e já não tenho mais a força de um jovem. Se fosse tão novo como aquele vaidoso troiano, nem seria preciso prêmio para enfrentá-lo! Mas vou.

Éntelos levantou-se e calçou as luvas que o formidável Érix usara outrora em suas lutas, inclusive naquela em que perdeu a vida desafiando Héracles. Ficaram todos assombrados, pois eram enormes e pesavam muito, devido ao enchimento de chumbo e ferro que continham.

Dares recusou-se a lutar nessas condições, de maneira que Éntelos teve de se desfazer das luvas e aceitar as que Enéias lhe arranjou e que eram iguais às usadas por Dares.

Começaram a trocar violentos socos. Éntelos não se descuidava; olhos cravados no adversário, quase não se mexia do lugar. Dares, ao contrário, saltitava à volta do adversário, procurando uma brecha para desferir contra ele um golpe fatal. Em dado momento, Éntelos largou um soco rápido, pensando apanhar Dares desprevenido, mas este esquivou-se a tempo e Éntelos estatelou-se no chão.

Alguns espectadores quiseram ajudá-lo a erguer-se, mas ele, envergonhado, levantou-se sozinho e, de rosto afogueado e peito arfando, investiu com tanta fúria contra Dares, que este teve de recuar. Éntelos perseguiu-o, desfechando-lhe a cada instante terríveis golpes, ora com a direita, ora coma esquerda, de maneira que Enéias achou melhor suspender a luta. Dares, de dentes quebrados e cuspindo sangue, foi retirado por amigos, enquanto Éntelos recebia das mãos de Enéias o touro prometido ao vencedor. O lutador sícano gritou:

— E agora, troianos, vede o que eu era capaz de fazer quando jovem. Héracles teve sorte de não topar comigo.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:19

Ergueu o punho e descarregou tremendo murro no meio da testa do touro. O animal caiu ao chão, fulminado, e Éntelos acrescentou:

— Ofereço a Érix a vida deste touro, mais valiosa que a do arrogante troiano.

Seguiu-se uma competição de arco e flecha. Enéias prendeu uma pomba num barbante que amarrou na ponta de uma estaca fincada na areia. A pomba adejava, procurando erguer voo. A seta do primeiro concorrente cravou-se na estaca; o segundo concorrente, mirando cuidadosamente o alvo, não conseguiu acertar a pomba, mas sua flecha partiu o barbante e a ave rapidamente levantou vôo. Nisso foi atingida por outro competidor e despencou ao solo, atravessada pela seta. O rei Acestes, não havendo para ele mais alvo a atingir, disparou uma seta no ar, para demonstrar sua grande força, com o fito de encerrar as competições. Porém, aconteceu um prodígio: a flecha, subindo cada vez mais, subitamente pegou fogo, deixando à retaguarda um risco flamejante, até desfazer-se em fumaça. Ao testemunhar a ocorrência, Enéias pensou:

— É um sinal divino.

Enéias lembrara-se da chama que cingira a fronte do filho Ascânios e da estrela cadente que cruzara o céu quando fugia de Tróia. E o que fora um bom sinal ao começo da viagem, talvez fosse agora um indício de que o término da longa peregrinação se aproximava.

Dando expansão à sua alegria, abraçou Acestes e exclamou:

— Que os deuses abençoem Vossa Majestade, pois é uma mensagem que Zeus me envia por intermédio teu!

Deu ao rei um grande vaso de prata, que pertencera a seu pai Anquises, e valiosos presentes aos demais arqueiros, conforme a destreza que tinham demonstrado.

No fim da tarde apareceram Ascânios e outros jovens montados em cavalos ricamente ajaezados, encerrando-se os jogos com um soberbo espetáculo de equitação.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:20

A SEPARAÇÃO DA FROTA

Alguns troianos, cansados da interminável jornada em busca de uma pátria, nutriam o desejo de permanecer para sempre na terra hospitaleira da Trinácria. Tal ideia agradava sobretudo às mulheres. Héra, a deusa que sempre tramava contra o povo troiano, aproveitou-se logo da oportunidade. Fez sua mensageira Íris vestir roupas teucras e mandou-a, assim disfarçada, misturar-se entre as mulheres troianas e induzi-las à rebelião. A deusa Íris, já entre elas, protestou:

— Faz sete anos que partimos da nossa terra natal! Desde então, somos arrastados por mares e países desconhecidos, numa interminável peregrinação. Por que não ficamos aqui, onde encontramos gente tão amiga? Vinde todas, vamos queimar as naus; somente assim nossa viagem e nossos sofrimentos terão fim.

Inflamadas por essas palavras, e na ausência dos homens, entretidos nos seus jogos e porfias, as mulheres correram à praia, brandindo tochas, e puseram fogo aos navios.

Notando uma coluna de fumaça se erguer sobre o ancoradouro, o jovem Ascânios montou a cavalo, como era o costume dos povos da Trinácria, e galopou para a praia, onde presenciou o terrível espetáculo das naves incendiadas.

O jovem príncipe indagou:

— Que estais fazendo? Loucas! Não compreendeis que estais queimando todas as nossas esperanças?

Logo depois chegaram Enéias e outros troianos. Quando as mulheres compreenderam o que haviam feito, ficaram envergonhadas e procuraram esconder-se; mas o fogo continuava a alastrar-se e resultaram infrutíferas todos os esforços para apagá-lo.

Enéias rasgou suas vestes e exclamou, em desespero:

— Poderoso Zeus, se merecemos teu apreço, salva os nossos navios! Se, porém, devido aos nossos erros, incorremos em tua cólera, lança sobre mim o teu raio, mas poupa meu povo!

Nesse mesmo momento, desabou violento temporal, com relâmpagos e trovões, apagando por completo o fogo. Quatro navios, todavia, tinham sido inteiramente destruídos.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:21

Enéias ficou muito abalado com o incidente. Hesitando entre permanecer na Trinácria ou prosseguir para a Itália, terminou por consultar um sacerdote troiano chamado Nantes, famoso pela sabedoria e que, após madura reflexão, declarou:

— Nosso grupo está dividido. Alguns, sobretudo os mais idosos, estão cansados da demorada peregrinação. A maioria, porém, anseia por fazer-se ao mar o quanto antes. Como perdemos alguns navios, não seria possível, ainda que quiséssemos, acomodar todos nas naves que restam. Consiste, pois, que aqueles que o desejarem aqui se estabeleçam e possam construir uma cidade a que chamarão Acesta, em homenagem ao rei deste país.

Enéias passou o dia a meditar sobre o conselho e, à noite. viu me sonho o pai, que lhe disse:

— Aceita o conselho de Nantes, meu filho, pois é inspirado pelos próprios deuses. Somente os jovens e fortes devem doravante acompanhar-te; tu em breve alcançarás a prometida costa da Itália e ali encontrarás um povo aguerrido e belicoso, com o qual terás de defrontar-te. Antes, porém, quando chegares a Cumas, pede à profetisa, a sibila, que te ensine o caminho para a minha morada, nas profundezas da Terra, onde te será revelado tudo o que o futuro te reserva.

E, com um gesto de adeus, a visão desvaneceu-se.

Ao levantar-se, no dia seguinte, Enéias foi à presença do rei Acestes, e este, depois de ouvir as razões do chefe troiano, não se opôs a que pequeno grupo de seus comandados se estabelecesse na Trinácria. Enéias procedeu à separação dos fortes e jovens, e dos velhos e pusilânimes, conforme lhe havia sido aconselhado e, em seguida, dedicou-se à reparação dos navios, mandando retirar as tábuas danificadas pelo fogo e substituí-las por novas.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:21

Dias depois, as naves voltaram ao mar, tripuladas por Enéias e pelos homens e mulheres escolhidos para levarem a bom termo a viagem à Itália. Na ilha, permaneceram os que por bem decidiram estabelecer-se e fundar uma cidade, que passaria a chamar-se Acesta. E a Trinácria, habitada por sícanos, sículos e helimeus, haveria de se chamar Sicília.

Voltando os olhares para Cartago, um tempo depois da morte de Dido, e com o surgimento de Jarbas e seu exército de gétulos, Ana, desde então governadora daquela terra sem rei, resolveu ceder a cidade de Cartago a Jarbas e se retirou para Mélita (hoje Malta), pequena ilha perdida no meio do mar.

A MORTE DE PALINUROS

Propiciados por Poseidon, a pedido de Afrodite, navegavam pelo mar tranqüilo, rumo ao norte. O vento propício e o céu puro e limpo chegaram a dar-lhes tal confiança, que uma noite os remadores, abandonando os remos, se estenderam sob os bancos e se entregaram a profundíssimo sono. O tentador Hipnos, baixando das estrelas, que cintilavam no céu da límpida Noite, assumindo o aspecto do herói Forbas, aproximou-se do vigilante timoneiro Palinuros e disse-lhe:

— Rebento de Jásos, não vês como o próprio Mar conduz os barcos e a doce Brisa te convida ao repouso? Deixa tombar a cabeça, deixa que os teus olhos fatigados repousem do constante trabalho. Anda, que eu te substituirei no leme.

Palinuros, que mal tinha forças para erguer os sonolentos olhos para o rosto do interlocutor, respondeu:

— Como? Julgas que não conheço o pérfido mar, quando aparenta extrema calma? Julgas que confio nele? Eu, a quem tantas vezes enganou o aspecto do céu sereno? Não, nada disso, é meu dever ocupar esta posição. Não delegarei a outro um dever que é apenas meu.

Assim falando, agarrou-se ao timão fazendo força para erguer o olhar para as estrelas. Mas o deus, com um ramo, derramou-lhe nas pálpebras algumas gotas das águas do Létes e, imediatamente, se lhe fecharam os olhos. Curvando-se, então, sobre o nauta adormecido, disse:

— Vai, foste tu o escolhido.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:22

Deu-lhe um empurrão que o atirou de cabeça para o mar. Em seguida, o Sono alçou voo como ave, enquanto o desventurado timoneiro, despertando no meio das ondas, mergulhava chamando em vão os companheiros adormecidos. Mas Enéias, notando que o seu navio estava fora de controle, percebeu que o corpo sem vida de Palinuros estava ao longe, ao sabor das ondas.

E disse Enéias:

— Por teres confiado em demasia na serenidade do céu e do mar, Palinuros, teus ossos nus e solitários jazerão para sempre numa praia erma e desconhecida.

E a frota, sempre debaixo da proteção do deus do mar, continuava o seu rumo.

A SIBILA DE CUMAS

A frota de Enéias não tardou a chegar em Cumas, morada da sibila, onde fundearam. Era uma região vulcânica, em cujas rochas cortavam inúmeras fendas das quais se levantavam chamas sulfúreas, enquanto o solo era sacudido pelo desprendimento de vapores, e ruídos misteriosos saíam das entranhas da Terra. Num dos vulcões extintos, dava lugar a um lago, o Aornos (futuro Averno), que tinha a forma de um círculo com meia milha de largura, com suas águas demasiadamente profundas, e suas margens muito elevadas e cheias de árvores. Vapores mefíticos levantavam-se de suas águas de modo que não havia vida em suas margens e nenhuma ave as sobrevoava. Ali encontrava-se uma gruta que, diziam, dava acesso às regiões infernais. Enéias, na companhia de Acates, dirigiu-se a um templo, que dava acesso às cem entradas do sombrio covil, e empalideceu assim que viu a sibila, que lhe dizia:

— Vamos, o deus está presente! Interroga-o agora!

Ela tresvariava feito louca, mudando a cor das faces seguidamente, descabelando-se com furor, ofegando o peito opresso e dando à voz uma entonação que não era humana.

Então, pela sua boca, disse:

— E aí? Não fazes a tua oferta? Estas portas não se abrirão antes que tu cumpras com a tua obrigação!
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:23

Enéias, com os ossos congelados pelo medo, fez então um grande e soberbo pedido, invocando a proteção de Apolo. Mas a profetisa, como se nada tivesse ouvido, prosseguia a cabriolar, como uma mênade alucinada, tentando arrancar do coração o jugo do poderoso deus. E lhe foram revelados pela profetisa alguns acontecimentos que lhe sobreviriam na Itália. Anunciou que ele chegaria à terra de seus antepassados e conheceria uma princesa, e com ela se casaria. Mas disse-lhe também que, para isto, teria de enfrentar uma pavorosa guerra que deixaria o Tíberis espumante da cor púrpura do sangue. E Enéias nem por isto deveria ceder ao infortúnio, mas antes avançar com coragem ainda maior.

Ouvidas as profecias, terminado o transe, pediu à sibila que o conduzisse à morada do pai, na Terra dos Mortos.

Ela olhou-o longamente e advertiu-o:

— Filho de Anquises, é fácil descer aos Infernos, mas são poucos os que conseguem regressar. Só poderei levar-te se for a vontade dos Fados. Na ramagem de uma árvore, aqui na floresta ao lado, cresce um pequeno galho de ouro consagrado à Rainha de Hádes. Se conseguires encontrar a árvore e arrancares o galho com as próprias mãos, sem cortá-lo, teremos a prova de que os deuses não se opõem à tua ida ao Reino dos Mortos.

Enéias e Acates dirigiram-se à floresta e, no instante em que nela penetravam, duas pombas desceram do céu e voaram à sua frente, guiando-o. Assim favorecidos, não demoraram a encontrar a árvore, com o galho de ouro, que cintilava no verde-escuro da floresta, e Enéias arrancou-o do tronco com facilidade.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:24

Tornaram a procurar a profetisa, Enéias mostrou-lhe o ramo de ouro, e, imediatamente, deveriam proceder aos ritos fúnebres de um amigo morto, sem eles compreenderem o que realmente se passava; Enéias não sabia, ao certo, quem era o amigo morto. E a sibila revelou: tratava-se de Misenos, filho de Éolos, de fato seu amigo, que havia desaparecido em pleno mar, com uma morte ainda mais estúpida que a de Palinuros. Por ter ele tocado sua tuba de guerra enquanto cruzavam o alto-mar, Tríton, deus marinho e mal-humorado, agarrara-o e o sepultara em suas águas. Por isso, Enéias e Acates foram floresta adentro a fim de cortar troncos de freixos e carvalhos para a realização dos ritos fúnebres. Depois, ergueram e ascenderam uma pira no sopé de um monte, que desde então passou a levar o nome de Misenos.

Em seguida, sacrificaram cordeiros pretos à sombria Hécate, e o chão, sob os pés de Enéias e Acates, começou a retumbar como se um deus irado fizesse vibrar o teto do subterrâneo. De súbito, cães começaram a latir desabrida e desordenadamente.

E ordenou a sibila:

— Que os profanos se afastem, eis que a deusa chega!

E deu uma ordem a Enéias:

— Agora saca da bainha a tua espada e guarda firmeza em teu coração!
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:24

Puseram-se a caminho dos Infernos, abandonando o local, mas Acates saiu do templo e foi-se acomodar em algum lugar lá fora, pois não poderia prosseguir. Enéias e a sibila, escolhendo uma das cem portas, desceram ao reino de Hádes e divisaram o negro Luto, mais escuro que a própria escuridão; as Enfermidades, mais pálidas que o manto invernal; o Remorso, cuja cabeça, torcida várias vezes, olhava sempre para trás; a Velhice, encarquilhada a ponto de seus lábios roçarem os joelhos; o Medo, de olhos costurados e todo enrodilhado sobre si; a Fome, a comer os próprios membros; a Miséria, agitando os trapos misturados aos fios de sua própria carne; a Fadiga, a arfar em longos haustos um alento que jamais lhe bastava; a Gula, estufada, com sua pele lustrosa a rachar e verter uma gosma podre; a Guerra, coberta de dardos e com uma tiara ensanguentada posta sobre os olhos; e finalmente o Sono, aprisionado nos Infernos por ser o irmão da Morte.

Logo adiante estavam as estrebarias dos Centauros mortos, estes a escavarem furiosamente a palha. E, um pouco mais adiante, encontraram os desaforos da Criação, tais como Briareus, gigante perdulário de cem braços e cinqüenta cabeças; a Hidra de Lerna, a silvar horrendamente; a horrível Quimera, a pôr flamas pelas ventas; as Górgonas de tranças de serpentes; as terríveis Hárpias, a babarem uma gosma fétida sobre os próprios alimentos.

Assim que deparou-se com esta horrenda estirpe infernal, Enéias segurou firme de sua espada e preparou-se para o embate, mesmo tendo os pelos todos de seu braço arrepiados pelo medo.

— Guarda a espada, nobre herói, eis que são espectros sem substância a esvoaçarem em vão. Não te farão mal algum.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:25

Chegaram às margens do Aqueronte, onde as sombras dos mortos se aglomeravam para serem transportadas à outra margem por Caronte, o bateleiro do além-túmulo. Então, surgiu o velho, com sua barba absurdamente branca, que descia até o umbigo enorme, nada menos que um infame depósito de larvas; de seus olhos saíam chispas, e da boca, impropérios; tinha preso ao ombro apenas um manto pútrido, úmido e fedorento como a pele apodrecida dos afogados. Ele, ao parar a sua imunda barca tomada pelo lodo, começou a afastar com o remo as almas que se precipitavam para embarcar sem autorização. E admitia apenas a algumas.

Enéias, aturdido, voltou-se para a sibila e lhe perguntou:

— Que significa todo este atropelo, e por que somente a alguns é dado embarcar na sua barca?

— Vês aqueles que ali ficam lançados sobre o chão a esmurrar a negra areia? São espectros daqueles cujos ossos não tiveram o favor de uma sepultura, e ali ficarão durante cem anos, a vagar e a gemer sem socorro de deus algum nesta infernal solidão, e somente após cumprido o prazo determinado é que serão finalmente admitidos à barca do horrendo Caronte.

E Enéias, firmando melhor a vista, começou a reconhecer velhos companheiros do malfadado sítio em Tróia, que caíram retumbando sobre o solo com as suas armas, sem terem o descanso de uma sepultura. Então, reconheceu Palinuros, que havia caído ao mar recentemente, e lhe perguntou:

— Que deus funesto houve por bem lançar-te às ondas antes que tu pudesses chegar conosco à terra da promissão?
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:26

Palinuros, envergonhado, confessou que não havia sido deus algum, mas somente a sua imprevidência que o fizera adormecer sobre o leme, perdendo o equilíbrio e arrastando-o consigo para o mar. Fora carregado pelas ondas durante três longos dias e três longas noites até ser lançado aos arrecifes das praias italianas, e estava vivo ainda, tentando salvar-se nos rochedos, quando homens pérfidos o mataram com seus punhais. E, ajoelhando-se diante de Enéias, suplicou que o levasse consigo na barca de Caronte, para que pudesse a sua alma ter sossego.

E foi a sibila quem respondeu:

— Acalma o teu desejo, Palinuros, e antes te acomodes com o desejo dos deuses, eis que foi pela vontade deles que tu chegaste a este estado; nem com preces poderias agora mudar os decretos que as próprias Moiras já lavraram em definitivo.

Mas deu-lhe um belo consolo, afirmando que seu nome seria venerado pelas populações com sacrifícios, tendo estabelecido um culto só para si, como um deus. E a alma de Palinuros, tendo ouvido estas palavras, cobrou novo ânimo, tirando forças daí para suportar o prazo de seu amargo exílio.

Então, prepararam-se para embarcar, quando Caronte, volvendo um olhar raiado de sangue a Enéias, lhe disse:

— Hei, esta é terra de sombras e de mortos, e não é lícito a um vivo pôr os pés em minha barca! De novo, não!

Enéias não entendeu, mas outros antes dele já haviam conseguido, como Héracles, Teseus, Píritous e Orfeus.

A sibila de Cumas acalmou-o:

— Descansa, Caronte, que estas armas que este mortal traz consigo não representam a violência, eis que com elas pretende apenas avistar seu velho pai, nas profundezas do Érebos, para uma importante revelação; e se mesmo esta razão não te move à piedade, aqui está a passagem que dará o salvo-conduto ao meu acompanhante.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:26

A profetiza estendeu, então, o ramo dourado ao barqueiro, que o tomou com grata satisfação. Então, virando-se, abrindo uma exceção aos novos passageiros, esvaziou a barca das almas, que já estavam assentadas, devolveu-lhes os óbulos e admitiu nela exclusivamente Enéias e a sibila.

Enéias, depois de cruzar o Aqueronte, no barco de Caronte, tiveram que aplacar a fúria do horrível Cérberos, que estava deitado à entrada da eterna habitação dos mortos, a ladrar ameaçadoramente, já que havia percebido a presença mortal de Enéias. A Sibila, então, lançou-lhe três bolinhos de mel e grãos, que suas três cabeças disputaram, e fê-lo dormir.

Seguindo adiante, escutaram o choro e o lamento de crianças que um dia foram arrancadas dos braços de suas mães para a acerba da Morte, e só então avistaram Minos, a agitar a urna do sorteio, a fim de proceder ao julgamento das almas réprobas, que formavam uma fila enorme. Não distante dali avistava-se o Campo das Lágrimas, bosque umbroso onde buscavam refúgio aqueles que o Amor fez perecer em um langor cruel, onde entre outros se divisavam claramente Fedra, a infeliz amante, e Prócris, a ninfa vitimada por seu próprio ciúme. E, para surpresa sua, encontrou Dido, a amante que ele abandonara por uma ordem divina, desgraçando-a. Trazia ainda no peito a ferida aberta.

Enéias, molhando de lágrimas o rosto, disse-lhe:

— Desventurada Dido, é verdade então que tomaste uma resolução fatal depois de minha partida?

E jurou à infeliz amante, que permanecia inerte, ter sido obrigado a partir, embora sua vontade lhe dissesse mil vezes para ficar. No entanto, ela continuava inerte, com os olhos pendidos sobre o pó do chão. E, perdendo a paciência, foi buscar refúgio no sombrio bosque, onde seu marido, Sicarbas, a esperava, sem dirigir ao amante um único olhar ou lhe dizer uma única palavra.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:27

Enéias, pesaroso, afastou-se dali, e logo encontrou os antigos companheiros da funesta campanha de Tróia, e não pôde conter um suspiro ao vê-los desfilar diante de si em uma longa fila. Ao passar por ele, as almas se emocionavam, lembrando-se de seu amigo e comandante; no entanto, assim que as falanges das almas de Agamémnon viram-no, abandonaram a fila e fugiram apavorados, quebrando o protocolo.

Entre seus amigos, avistou Deífobos, o filho de Príamos, que ocultava com as mãos as negras feridas. Foi lhe perguntando:

— Por que, Deífobos, não te encontrei para trazer-te comigo à terra que me foi prometida?

— Helena, a pérfida Helena foi a causa do meu negro fim, pois estando casado com ela após a morte de Páris fui traído; pôs para dentro das suas portas o marido ultrajado, retirando da cabeceira de sua cama o seu punhal, única defesa que poderia opor diante de Menelaus.

Mas a Sibila, temendo problemas para uma permanência tão longa naquele reino sombrio, apressou-o:

— Enéias, eis que a Noite se aproxima, e já perdemos muitas horas a chorar. Saibas que daqui por diante o caminho se divide: o da direita conduz aos amenos Campos Elíseos, enquanto que o da esquerda leva ao tenebroso Tártaros. Não podemos esperar mais.

Pela porta da esquerda, Enéias haveria de conhecer grandes edifícios circundados por uma sólida e tríplice muralha rodeada pelas águas em chamas do Flégeton. No centro da cidadela erguia-se nos ares uma imensa torre de ferro, morada de Tisífone, a erínis vingadora, que do alto, de túnica sangrenta e arregaçada, vigiava os seus tétricos domínios. Dentro da torre de ferro ecoava o ruído de ásperas chibatadas, e o grito estertorado dos flagelados, e o retinir das ásperas correntes, e o roncar maldito do castigo.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:28

Enéias, aproximando-se um pouco para ver ou ouvir, foi impedido pela Sibila, que lhe disse:

— Deixa estar a tua curiosidade, que a nenhum inocente é permitido transpor o limiar do crime; apenas te digo que ali está o horripilante poço do julgamento de Radamantes, onde são interrogados e torturados os autores dos crimes mais hediondos. Se usares esta entrada, jamais voltarás.

E continuou:

— Consegues ouvir o silvo que supera mesmo ao do açoite da Erínis? É o bafo monstruoso que se escapa das cinqüenta goelas negras e escancaradas da pavorosa Hidra, que ali reside sempiterna. Acredita... não vais querer entrar aí.

E ainda complementou:

— Mais para dentro, muito mais para dentro, o Tártaros se estende num espaço duas vezes maior que o que leva do Olimpo até o céu, e lá embaixo, rolando nos fundos deste medonho abismo, estão aprisionados os Titãs, derrubados pelo raio de Zeus.

E descreveu a Enéias, ainda, com muito mais detalhes, a situação dos supliciados mais famosos, que haviam desafiado especialmente os deuses:
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:28

— Lá também se encontra o gigante Títios, cujo corpo é tão imenso que, estendido, ocupa mais de nove acres. Ele ousou perseguir Leto, a mãe de Apolo, e por isso foi condenado ao castigo eterno, enquanto um abutre lhe come o fígado, que, mal é devorado cresce de novo, tal qual o que outrora se sucedeu ao titã Prometeus. Nesse mesmo lugar sentam-se à mesa um grupo de pecadores, que têm por perto a erínis que lhes arranca o alimento dos lábios, mal se preparam para saboreá-lo. Outros ostentam sobre suas cabeças um rochedo prestes a cair, mantendo-os sobre um constante estado de alerta. Esses eram os que haviam odiado seus irmãos e ultrajado seus pais, iludindo os amigos que neles confiavam ou que, tendo-se enriquecido, guardavam o dinheiro apenas para si, sem permitir que os outros dele compartilhassem; esses últimos consistem num grupo mais numeroso. Ali também estão os que violaram o voto matrimonial, lutaram por uma causa má ou se mostraram infiéis com seus patrões. Houve um que vendera seu pai a troco de ouro, outro que pervertera as leis, fazendo-as dizer uma coisa hoje e outra amanhã. Ou seja, todo o tipo de perversão excessiva aos olhos e ouvidos dos deuses.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:29

E continuou:

— Ali jaz Erisícton, um dos mais odiosos mortais, que ultrajou Deméter e deixou-se levar pelo poder da ganância. Íxion também ali está, preso por uma roda que gira incessantemente, e Sísifos, cuja tarefa consiste em rolar um enorme rochedo até o alto do morro, mas quando se encontra bem avançado, a pedra, impelida por vontade própria, rola de novo para baixo. Seu suplício só irá acabar no dia em que ele conseguir depositar o rochedo no cume da colina. E ainda, Tântalos, de pé dentro de uma lagoa, com o queixo ao nível da água, sente uma sede que lhe devora, e não encontra meios de saciá-la, pois, toda vez que baixa a cabeça para beber, a água desce e some sob seus pés. Frondosas árvores carregadas de suculentas uvas baixam seus galhos até seus boca faminta, mas, quando levanta-se para comê-las, o vento empurra os galhos de volta para cima, longe de seu alcance. Aqui sofre por seus pecados um rei da tua pátria, Laómedon, que ousou enganar aos deuses e se aproveitar injustamente de seus préstimos. Finalmente, é punido com impiedade o perverso Flégias, que ousou opor-se ao divino Apolo e tentou incendiar o seu santuário de Delfos.

Assim, disse:

— Já é tempo de deixarmos este lugar melancólico, e procuremos a cidade dos eleitos, pela porta da direita onde deves depor tua oferenda.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:29

Enéias lavou o corpo na fonte e retirou toda a sujidade infernal, depois penetrou, sozinho, o pórtico e pendurou na soleira o ramo dourado e a espada; em seguida, entrou nos sítios amenos e idílicos dos bosques afortunados. Caía de um éter mais amplo uma luz purpúrea que banhava os campos. Os habitantes daquele lugar tinham um Sol, único para eles, e variados astros que eram somente deles. E todos, guerreiros, sacerdotes, poetas, pastores, tendo as frontes cingidas por ramos, passavam o tempo todo em descanso ou em festejos, exercitando as armas pacíficas ou as liras, conforme a sua vontade. Entre eles, estava Orfeus, que feria delicadamente as cordas de sua lira, produzindo sons arrebatadores, enquanto Eurídice dançava alegremente. Aquele grupo, com fitas brancas em torno da testa, se encontrava num bosque de loureiros, onde o grande rio Erídanos tinha sua origem.

Então, encontrou um poeta, de nome Museus, que, na Terra, tinha fama de curar com sua arte musical, e lhe perguntou onde morava o seu pai Anquises. Ele lhe respondeu:

— Engana-te, mortal, aqui ninguém possui morada, e todo lugar, bosque, arroio, vereda ou prado é morada bastante para nós.

E, apontando o dedo, indicou-lhe o lugar aonde encontrava-se a alma de Anquises, num bosque verdejante. Ali viu Enéias os seus ancestrais, os grandes heróis do passado, como Dárdanos, Erictônios, Trós, Dimas, Ilos, Príamos e ainda o seu pai Anquises. E este, com lágrimas de felicidade nos olhos, viu-o e estendeu-lhe os braços. Enéias, ao vê-lo, quis abraçá-lo, esquecendo-se de que ele já era somente uma sombra ou espírito, porém por três vezes não apertou entre os braços senão o próprio ar... O velho chorava de alegria. E trocaram palavras afetuosas.

— Ó meu pai! Tua imagem esteve sempre diante de mim para guiar-me e proteger-me.
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Mensagem por Hermes Trismegistus 26/3/2021, 14:30

Em seguida, olhando para um lado, Enéias avistou um pouco mais adiante uma mata de caniços sonoros a margearem as águas silenciosas do Létes, o rio do Esquecimento. Espantou-se com a imensidão de sombras que enxameavam ao redor daquelas águas de coloração escura, e perguntou:

— Dize-me, pai, por que tantas almas revoluteiam ao redor daquele curso incessante, como abelhas frenéticas ao redor de um oloroso favo?

— Sempre te falei sobre isto, e só agora compreenderás. São as almas purificadas, que depois de haverem expiado suas antigas faltas nas moradas ínferas e terem tido o descanso das suas penas nos aprazíveis Elíseos, agora preparam, cumpridos mil anos de exílio, a sua volta para a morada dos vivos; antes, porém, devem beber daquelas águas para que, esquecidas de toda mácula ou réstia de passado, possam retornar ao convívio da carne, com todos seus tormentos, suas dúvidas, suas tristezas, seus sofrimentos, seus trabalhos, suas penas e suas maravilhosas tentações.

— Mas, meu pai, é possível que alguém tenha tanto amor à vida a ponto de querer deixar estas tranquilas regiões pelo mundo superior?

Anquises respondeu explicando o plano da Criação:
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