Mitologia vs Mídia

E ponderava:

— Certamente foi Atena quem me mandou para cá, e não é tempo ainda de regressar à minha Pátria. Naturalmente tenho que realizar outra nobre façanha antes de retornar às ensolaradas colinas da Hélade.

E rumou para o leste, através de aprazíveis oásis, nascentes, tamareiras e tabuleiros de relva, até defrontar uma enorme muralha, tinta de vermelho pelo Sol poente.

Tal qual uma águia, elevava-se no ar; durante a noite inteira sobrevoou a montanha e, quando o dia começou a despontar e os dedos róseos de Éos matizaram o céu, ele avistou aos seus pés, o longo e verdejante jardim do sul do Egito, cortado pela luminosa corrente do Nilos.

Logo viu cidades muradas até os céus, templos, obeliscos, grandes deuses de pedra foram-se desdobrando aos seus olhos, mas ainda não sentia a hora de parar. Então, desceu no meio dos campos de cevada e linho, milho e cereais, e viu o povo que saía das portas de uma grande cidade e se punha a trabalhar por entre os cursos de água, cada um no seu lugar; e, com os pés, de acordo com a sabedoria egípcia, repartiam a água entre as plantas.

Porém, ao avistar Perseus, todos pararam de trabalhar e cercaram-no, dizendo:

— Quem és tu, jovem forasteiro? Cavalgas um corcel alado, trajas roupas ocidentais, tens o porte de herói, e teus cabelos são iguais aos fios de ouro, e o nosso é preto e encaracolado; a tua tez é branca como o marfim, e a nossa é vermelha como a argila. Não pareces um mortal, sem dúvida és um deus em teu país.

E teriam-no adorado, se Perseus não replicasse:

— Não sou um dos Imortais e sim um dos heróis dos helenos. Matei a Górgona, num país longínquo, e trago sua cabeça comigo. Dai-me de comer, fim de que eu possa continuar a minha viagem e concluir a minha tarefa.

A maior parte daquela gente jamais tinha ouvido falar da Górgona, e poucos sabiam onde moravam os helenos. Então lhe ofereceram alimentos, frutos e vinho; mas não consentiram que partisse. Queriam que lhes contasse sua história e lhes mostrasse o troféu que trazia consigo, o que Perseus não os atendeu, certamente.

Foi quando surgiu um grupo de sacerdotes, vindos da cidade, que, logo que souberam da morte da Górgona, foram-lhe ao encontro, e também as donzelas, com danças e canções, címbalos e harpas; e queriam levá-lo ao templo e perante o seu rei. Perseus foi pego de surpresa, e precisava tomar uma decisão; por isso, pôs a coifa de Hádes na cabeça e desapareceu, e ninguém mais o viu.

Debalde, durante muito tempo, os habitantes do sul do Egito, então sob o domínio da Etiópia, aguardaram a sua volta; então o adoraram como herói e fizeram-lhe uma estátua, em Quemis, que durou várias centenas de anos. E passaram a acreditar que, no ano em que aparecia entre eles, a estação era de abundância e as águas do Nilos subiam muito alto.

ANDRÔMEDA

Perseus dirigiu-se para o Oriente, beirando o mar dos egípcios (ou mar Arábico, hoje mar Vermelho); e, temendo internar-se nos desertos arábicos, tornou a voltar-se para o norte e dessa vez nenhuma tempestade o impediu que assim procedesse.

Transpôs a terra de Gessém e o Istmo, o monte Cásios, o vasto pântano Serboniano e as praias dos cananeus (a Palestina), que naquela época sofriam com as invasões da Etiópia.

Sobrevoou aprazíveis vales e colinas, assim como Árgos, a Lacedêmonia e o belo vale do Tempe. Mas as terras baixas tinham sido alagadas por inundações e as terras altas tinham sido crestadas pelo fogo, e as colinas pareciam caldeirões em ebulição, pois a cólera de Poseidon deveria ter caído sobre aquela gente.

Evitando internar-se nessas regiões, Perseus voou sobre o pélago dos filisteus, bordejando a praia, e viajou o dia inteiro, no lombo de Pégasos, sob o céu avermelhado pelo fogo.

Na madrugada seguinte, ele olhou na direção dos rochedos e avistou, à beira da água, sob um penhasco negro, um vulto claro.

— Deve ser a estátua de alguma divindade do mar. Vamos lá, Pégasos, vamos verificar que espécie de deuses esses povos bárbaros adoram.

E assim dizendo, aproximou-se do penhasco; mas ao fazê-lo, viu que não se tratava de estátua, mas de uma donzela, cujas tranças flutuavam à brisa; aproximando-se ainda mais, viu que ela se encolhia e tremia sob os borrifos frios e salgados, com que as ondas a aspergiam. Tinha os braços erguidos para o alto e presos ao rochedo por correntes de bronze; e a cabeça pendia-lhe sobre o peito, e parecia fatigada. Era uma linda moça, que, angustiada, chamava por sua mãe.

Contudo, não avistou Perseus, pois ele conservava na cabeça a Coifa da Escuridão. Perseus disse consigo mesmo:

— Ainda não vi donzela mais linda do que esta; não, nem mesmo em nossas ilhas, na Hélade. Sem dúvida, é filha de algum rei. Será esse o tratamento que os bárbaros são às filhas de seus reis? Ela é bela demais para ter praticado alguma ação indigna. Vou falar com ela.

Surpreendido por sua formosura e por tão angustioso pranto, o jovem herói desceu no lugar onde ela estava, retirou o capacete, pousou Pégasos sob o rochedo e perguntou-lhe:

— O que se passa? Quem te acorrentou a este rochedo? É muito cruel!

A moça levou um susto e tentou esconder o rosto, virando-se para o lado oposto, pois que parecia ter visto o próprio deus da Morte. E Perseus disse-lhe:

— Não temas, moça; sou um heleno e não um bárbaro. Vou restituir-te a liberdade.

Tentou quebrar as cadeias, mas estas eram muito sólidas. E a donzela exclamou:

— Não me toques, sou amaldiçoada, destinada a servir de vítima aos deuses do mar. Salva-te, antes que seja tarde...!

— Permite-me tentá-lo.

— Não...! Olha, meus pais estão-nos vigiando no alto dos recifes. Deixa-me em paz. Vai, antes que seja tarde.

Mas Perseus, como se estivesse surdo, tirando o herpé da cintura, cortou o bronze como se fosse feito de cera.

— Agora estás a salvo, e os deuses do mar não te farão mal algum, sejam lá quem forem!

E ela continuou a chamar por sua mãe, que de longe pouco entendia o que se passava.

— Por que chamas tua mãe? Ela não pode ser tua mãe, pois te abandonou aqui. Se um pássaro cai do ninho, pertence ao homem que o apanha. Se uma joia é atirada ao caminho, fica para quem a conquista e usa, tal como eu te conquistei e hei de proteger-te. Agora compreendo porque Atena me mandou para cá. Foi para que eu obtivesse um prêmio digno dos meus trabalhos.

E apertou-a nos braços, dizendo:

— Onde estão os deuses do mar, injustos e cruéis, que condenam à Morte lindas jovens como tu? Trago comigo as armas dos Imortais. Que os deuses do mar venham medir forças comigo. Conta-me, porém, quem és, e por que triste sina vieste para aqui.

E respondeu chorando:

— Eu me chamo Andrômeda e sou filha de Cefeus, rei dos filisteus de Íope. Um terrível monstro sai do mar todas as noites, mata a quantos homens encontra e extermina rebanhos. O povo anda aterrorizado e o Oráculo, a que meu pai consultou, revelou que o único meio de aplacar a ira de Ceto é entregar-me a ele para que me devore. Eis aí a razão de me haverem acorrentado a este penedo e porque choro, lamentando o fim que me aguarda, que está chegando e vai ser tão trágico!

— É alguma maldição?

— É que minha mãe Cassiopéia insultou os deuses, dizendo que eu era mais bela que as Ninfas. Isso enfureceu a Atargátis, a rainha dos mares, de tal maneira que ela mandou inundações, e seu irmão, o Rei-Fogo, mandou terremotos, devastando completamente a Terra. Depois das inundações, nasceu do limo um monstro, e Atargátis exigiu que eu fosse sacrificada à criatura, ou todo o reino seria devastado, embora eu seja inocente, eu que nunca fiz mal a nenhum ser vivo, e que nunca vi um peixe na praia sem restituí-lo à vida, atirando-o ao mar; pois aqui em Íope não comemos peixe, e o sacerdote declarou que somente meu sangue poderá expiar um pecado que nunca cometi.

Perseus riu-se e exclamou:

— Um monstro do mar! Lutei contra outros piores do que ele. Enfrentaria os Imortais para salvar-te: quanto mais um monstro do mar! Não chores, princesa. Esta noite eu estarei a teu lado e matarei o monstro ou morrerei contigo!

Andrômeda fitou-o e uma nova esperança brotou-lhe no peito, tão altivo e belo que pareceu aos seus olhos, cingindo-a com uma das mãos, enquanto pousava a outra no punho da cintilante espada. Porém, apenas suspirou e recomeçou a chorar, dizendo:

— Por que queres morrer, jovem como és? Já não chega de morte e de tristeza no mundo? Morrer representará para mim praticar um ato nobre, pois salvarei meu povo; mas, tu, melhor do que todos os meus súditos juntos, por que também te faria morrer? Segue teu caminho: preciso seguir o meu.

— Não; os deuses do Olimpo, a quem sirvo, são amigos dos heróis e ajudam-nos a realizar grandes feitos. Orientado por eles, matei a Górgona; e por vontade deles aqui vim parar, a fim de matar essa fera com a própria cabeça de Górgona. Esconde os olhos quando a hora chegar, e não os abre em hipótese alguma, se não quiseres ser transformada em pedra.

Mas a donzela nada respondeu, pois não podia crer nas palavras do herói. E, de repente, apontando o mar, ela gritou:

— Aí vem ele, do nascente, como foi prometido! Vou morrer... Como me comportarei? Vai-te! Já não me basta ser reduzida a pedaços, ainda é preciso que assistas à minha morte?

E tentou repeli-lo.

Perseus disse:

— Está bem, vou deixar-te. Antes, porém, promete-me uma coisa: se eu matar a fera, serás minha esposa e me acompanharás ao meu reino, em Árgos, pois sou herdeiro de um rei. Promete-me e sela a promessa com um beijo.

— Vai, por favor!

— Promete.

E Andrômeda, ao ver que o monstro se aproximava, deu um grito e pretendeu livrar-se de vez do teimoso jovem que se dizia herói. Ergueu o rosto e beijou-o; Perseus, radiante de alegria, elevou-se nos ares, sob o lombo de Pégasos, deixando-a encolhida sob o rochedo, trêmula, à espera dos acontecimentos. Efetivamente, Perseus ocultou-se sob a Coifa de Hádes e esperou. A superfície do mar começou a agitar-se e, de suas vagas enfurecidas, saiu um monstro, de terrível aspecto, mandado por Poseidon, a pedido da titânida Tétis (a Atárgatis dos filisteus), que se aproximou do penedo, com a goela escancarada, com olhares de fogo disposto a tragar a meiga e inditosa donzela. Chamava-se Ceto.

O monstro foi chegando, boiando ao longo da costa, enorme massa negra, languidamente enfrentando as ondas e detendo-se, às vezes, numa enseada ou num promontório para observar a multidão de filisteus que se aproximavam para presenciar a horrível cena. Seus enormes flancos franjavam-se de conchas, em cachos, e a água gorgolejava nas suas colossais mandíbulas, enquanto ele avançava, gotejando e rebrilhando aos raios do Sol matutino.

Afinal, avistou Andrômeda e apressou-se a fim de tomar posse de sua presa. As ondas desfaziam-se em espumas, à sua retaguarda, e os peixes fugiam aos saltos à sua frente.

Perseus, rápido como um raio, saltou do esconderijo, brandindo a coruscante espada, mergulhou na direção da serpente-marinha e cravou-lhe, várias vezes, a lâmina, mas não logrou fazer-lhe mal algum. A fera começou a debater-se, até que brotou uma corrente escura de sangue de sua goela.

Mas as asas de Pégasos estavam molhadas, e viu-se obrigado a pousar. E Perseus subiu no rochedo, cuja ponta superior erguia-se sobre a superfície do mar. Com a mão esquerda, apoiou-se no rochedo e cravou o ferro três ou quatro vezes, perfurando os intestinos do monstro, que resistia. Então, ameaçado pela bocarra de Ceto, Perseus gritou:

— Andrômeda! Fecha os olhos!

E o herói mostrou-lhe a terrível cabeça da Górgona, e transformou-o em pedra. E o silêncio reinou durante alguns instantes, só podendo ouvir as sonoras batidas das asas de Pégasos.

Finalmente ela ousou olhar, trêmula, e viu Perseus que descia do corcel alado e ir-lhe ao encontro; e, no lugar do monstro, havia um grande rochedo negro, em cujos flancos o mar ondulava tranquilamente.

E um grito de júbilo se ouviu por toda a praia; era o povo que gritava de alegria, ao verem-se livres daquela maldição. E ficaram mais impressionados ainda quando viram aproximar-se Pégasos conduzindo Perseus e Andrômeda para terra firme.

Nisso, um mensageiro chegava no palácio de Íope a fim de avisar Cefeus e Cassiopéia, que, sentados no chão no mais recôndito quarto , vestidos de sacos e cobertos de cinza, aguardavam a morte de sua filha. Ao dar a notícia do que havia acontecido, com espanto viram, pela janela, a filha sendo conduzida em cortejo no lombo de uma belíssimo cavalo alado, acompanhada de um jovem forasteiro. O povo de Íope, que não havia presenciado a morte de Ceto e viu aquele herói chegando no lombo de um corcel alado, com a princesa, ainda viva, ficou assustado e pensou estar vendo um deus.

Perseus explicou ao rei o que havia ocorrido e como havia derrotado o monstro. Ante a estupefação do soberano, Perseus pediu permissão para desposá-la. O rei Cefeus respondeu:

— Mas que atrevimento! Ela já está prometida ao filho do rei de Tiro, meu irmão Fineus! Ele será meu genro e ocupará metade de meu reino...!

— Não quero teu reino, pois suspiro pela minha Pátria, a Hélade, e minha mãe espera-me em casa. Apenas desejo desposar Andrômeda.

— Perdoa-me, forasteiro, mas Andrômeda já está prometida. Não posso faltar com minha promessa.

— Então por que o rei de Tiro ou o seu filho não apareceu para salvá-la?

— Porque teve medo de ofender o grande Dágon.

— Dágon? Quem é Dágon?

Cefeus preferiu não responder. Dágon era o Poseidon dos filisteus, enquanto que Tétis, a mãe imortal de Cálibos, era chamada de Atargátis. Perseus ignorava os deuses estrangeiros; ao invés, seria capaz de desafiá-los, era firme e decidido. Quanto a Cálibos, o filho de Fineus e da imortal Tétis, jovem destinado a casar-se com Andrômeda, cometera diversos crimes aos olhos de Zeus, e, para pagar por seus pecados, teve que abandonar temporariamente a vida na corte para tornar-se o guardião dos poços da Lua. Mas ele, desafiando ao senhor dos deuses, matara cada criatura viva que se aproximasse do poço. Como punição de sua crueldade, Zeus transformou-o num ente diabólico, com chifres, cauda e patas de bode — uma espécie de sátiro, obrigando-o a esconder-se de todos nos pântanos vizinhos de Íope, o que não mudou o pensamento e o sentimento de Fineus, seu pai, de torná-lo noivo de Andrômeda e herdeiro do trono da Fenícia. Inclusive Tétis, que sentia desgosto pela atitude inesperada de Zeus, fez votos que, se Cálibos não pudesse casar-se com Andrômeda, então nenhum homem poderia.

Mas Perseus desconhecia a vontade de Tétis e suas maldições, por isso, insistiu:

— Pois bem, eu não tive medo de ninguém. Matei Ceto e, assim, Andrômeda é minha.

Andrômeda sorriu. Cefeus propôs:

— Por favor, nobre herói, que muito desejo que te tornes meu genro, não leves a minha filha, assim tão depressa, pois para nós foi como se ela tivesse ressuscitado de entre os mortos. Fica conosco por um ano e depois regressa honrosamente, levando-a como esposa. Quanto ao outro pretendente, com tempo resolveremos.

Perseus consentiu; porém, antes de acolher-se ao palácio, ordenou ao povo que trouxesse pedras e madeira e ergueu três altares: um para Atena, outro para Hermes, um terceiro para Zeus, e imolou-lhes touros e carneiros.

E alguém observou:

— É um homem piedoso.

Mas os sacerdotes murmuraram:

— A rainha do mar ainda mais se irritará contra todos nós por causa da morte do monstro.

Porém, como tinham medo da cabeça da Górgona, não se expressaram em voz alta. E todos se encaminharam para o palácio; ao chegarem, encontraram Fineus, irmão de Cefeus — ambos filhos de Fênix e netos do rei Agenor. Ele se encontrava no vestíbulo, enraivecido como um urso, acompanhado por seus filhos, servos e muitos homens armados. E interpelou Cefeus:

— Não podes dar tua filha em casamento a este estrangeiro, quem nem ao menos sabemos o nome. Pois Andrômeda não estava prometida ao meu filho? E, agora, que está salva, não terá ele o direito de reclamá-la?

Perseus riu-se e respondeu:

— Se o teu filho quer mesmo uma noiva, que ele salve uma donzela. Porém, ele me parece um noivo bem incapaz. Como é mesmo o seu nome?

— Cálibos.

— Pois é, ele consentiu que Andrômeda fosse exposta à Morte e morta ela está para ele. Eu lhe preservei a vida e viva está para mim e para ninguém mais. Tu és um ingrato! Não salvei teu país e a vida de teus filhos e filhas e assim me retribuis?

E Fineus ameaçou-o:

— Vai embora, forasteiro, senão eu te cortarei em pedacinhos! Já fizeste teu trabalho, é o suficiente. Vai embora!

E arremessou sua lança contra Perseus com toda a força, mas errou o alvo e a arma ficou presa numa almofada. Perseus ergueu-se, atirou sua lança em direção à porta por onde Fineus entrara e a arma teria perfurado o peito de seu inimigo se este não se tivesse esquivado, com um salto, e se escondido atrás do altar. A lança fendeu em duas partes o crânio de um de seus acompanhantes. Aquilo foi a senha de uma luta selvagem entre os homens do intruso e os convidados do casal. Os soldados, que eram uns duzentos, pelo menos, puxaram as espadas e lanças e começaram uma chacina aos que apoiavam Perseus. E Perseus, vendo que todos os seus convidados sucumbiam, voando flechas em sua direção, voltou-se para Andrômeda, Cefeus e Cassiopéia, e aos amigos que ainda permaneciam vivos, e disse-lhes:

— Amigos, fechai os olhos... Peço-vos obediência, pelo vosso bem.

Talvez, em outra ocasião, esperasse um beijo de Perseus, mas Andrômeda obedeceu, e os outros fizeram o mesmo, já que caíam por terra os súditos de seu pai. Tesceleus, um dos servos de Fineus, desafiou-o:

— Não tentes amedrontar-nos com tuas imposturas!

Tesceleus apontou a lança para desferir o seu golpe, mas Perseus, então, protegendo suas costas numa coluna, retirando a cabeça de Medusa de sua sacola, mantendo o rei e seus súditos atrás de si, disse-lhes:

— Isto livrou minha noiva de uma fera; também livrará de outras. Que meu antigo inimigo me ajude!

Tesceleus, antes de conseguir lançar o dardo, foi transformado em pedra, ao mesmo tempo em que Âmpix ia cravar a espada no corpo de um inimigo prostrado, e também endureceu como pedra, enquanto que Aconteus, um aliado de Perseus, tendo avistado a Górgona, ficou igualmente imobilizado. E a espada de Astíages não conseguiu feri-lo, porque estava duro feito mármore.

Naquele mesmo instante, Fineus, temendo que Perseus estivesse sacando uma arma, apontou a lança e estava para atirá-la, quando Perseus mostrou a cabeça da Górgona. Fineus teve tempo de fechar os olhos e desviar-se.

Ao abrir os olhos, Fineus, ao som murmurante que tomava o salão, arrependeu-se amargamente do que havia feito, ao perceber que seus filhos e todo o exército de duzentos homens em pedra e mármore, nas mais diferentes posições. Chamou-os pelos nomes, tocou-lhes, incrédulo, e seus corpos estavam rijos e frios. Tomado de terror, sua arrogância transformou-se em súplica desesperada. De cabeça voltada para o chão, ajoelhou-se e abraçou os joelhos de Perseus.

— Poupa minha vida, que o reino e a noiva sejam teus!

Mas Perseus estava amargurado com o assassínio de seus novos amigos e não teve misericórdia.

— Traidor! Tu serás para sempre um monumento na casa de meu sogro!

E, agarrando o elmo de Fineus, obrigou-o a olhar para cima e fitar a horripilante imagem da Górgona. Tentou escapar, mas o seu impiedoso olhar o alcançou, e Fineus foi ali mesmo petrificado, com o rosto aterrorizado, as mãos abaixadas, numa postura submissa, e assim permaneceria para sempre, desencorajando qualquer homem a conspirar no palácio de Cefeus.

Logo, Perseus mandou que o povo trouxesse alavancas e transportasse as pedras para fora. Em seguida, para assegurar a sua preferência pelos deuses do Olimpo, Perseus foi à caça de Cálibos nos pântanos próximos de Íope e, matando-o com o Herpé, voltou triunfante. E a titânida Tétis, com a perda do filho Cálibos, abandonou de vez o povo fenício.

Então, foi celebrada magnífica festa nupcial, que duraram, coincidentemente, sete dias. Porém, na oitava noite, Perseus teve um sonho: viu Palas-Atena de pé, a seu lado, tal como a vira em Sérifos, sete anos antes; e ela chamou-lhe pelo nome e disse-lhe:

— Perseus, procedeste como um homem e, como viste, tiveste a tua recompensa. Já verificaste que os deuses são justos e ajudam a quem se ajuda. Agora, dá-me o Herpé do deus Hermes, as sandálias aladas e a Coifa da Escuridão, a fim de que eu possa restituí-los aos seus donos; porém, podes conservar a cabeça da Górgona durante algum tempo, pois dela precisarás na Hélade, tua Pátria. Depois terás de colocá-la no meu Templo, em Sérifos, a fim de que eu possa usá-la e encher de terror os Titãs e os monstros, e os inimigos dos deuses e dos homens. Quanto a este país, não sofrerá mais inundações e terremotos, pois pacifiquei o mar e o fogo. Porém, faze com que o povo erga altares para Zeus e para mim, e adore os Imortais, senhores do Céu e da Terra.

Perseus levantou-se para entregar-lhe a espada, o capacete e as sandálias; porém, tendo acordado nesse momento, viu que sonhara. E, ao mesmo tempo, não sonhara, pois a pele de cabra com a cabeça de Medusa continuava no lugar; mas a espada, a coifa e as sandálias tinham desaparecido e ele nunca mais as viu.

Perseus foi preso de grande terror, e, na manhã seguinte, se dirigiu ao povo e narrou-lhes seu sonho, ordenando-lhe que construísse altares para Zeus e Atena, deuses de seu país, que tornava sábios os heróis; e disse-lhe que não mais receasse terremotos e inundações, mas semeasse e construísse em paz.

Assim fizeram eles durante algum tempo e prosperaram: porém, depois que Perseus partiu, esqueceram Zeus e Atena e novamente adoraram a Atargátis,a rainha, e os peixes imortais do lago sagrado, no qual o dilúvio de Deucálion fora reabsorvido, e queimaram seus filhos diante de Dágon, o Rei-Fogo. Assim sendo, Zeus acabou irritando-se com tanta leviandade e fez com que viesse do Egito um estranho povo, que invadiu o país e o derrotou, ocupando suas cidades durante muitos séculos.

PERSEUS DE VOLTA A SÉRIFOS

Perseus e Andrômeda, saindo de Íope, dos filisteus, cruzaram o mar, e Perseus, depois de sete anos, voltava a Sérifos, montados em Pégasos. E se já não era grande amigo do rei Polidectos, era agora o herói seu inimigo. Porque, na sua ausência, certo de que Dânae já não tinha ninguém para defendê-la, tentou seduzi-la e armou-lhe as maiores perseguições. Chegou ao ponto de querer matá-la, e Dânae teve de fugir. Conseguiu abrigar-se no templo, onde velhos sacerdotes de bom coração trataram-na com o maior zelo e carinho. Aliás, com risco de vida, porque gente boa não era bem vista naquela terra. Apenas Díctis e algumas poucas pessoas davam-se ao luxo de praticar o bem e ajudar os perseguidos. Os demais eram cruéis, vingativos, mentirosos, ladrões e, acima de tudo, vadios, já que viviam às custas de Díctis e os demais pescadores.

Não tendo encontrado sua mãe, o pescador Díctis informou-lhe o paradeiro, e Perseus foi direto ao palácio. Andrômeda permaneceu com os pescadores. Perseus encontrou o rei sentado à cabeceira da mesa, ladeado pelos nobres e pelos proprietários, colocados segundo a sua posição na corte, banqueteando-se com peixe e carne de cabra, e bebendo vinho. Os tocadores de harpa tangiam seus instrumentos, os convidados gritavam e as taças de vinho ressoavam alegremente, ao passar de mão em mão, e imenso era o rumor que enchia o salão de Polidectos. O eranos continuava, ainda no seu retorno.

Perseus estacou no limiar e chamou o rei pelo nome. Nenhum dos convidados o reconhecera, pois ele mudara muito no decorrer da sua longa viagem. Era um rapaz quando partiu, e agora até barba tinha.

Ao vê-lo entrar, Polidectos empalideceu. Já o tinha por morto. Seria um fantasma? Logo viu que não. Ele estava ali, vivo e muito vivo! Não parecia uma estátua de pedra, donde o rei se convenceu de que Perseus, apavorado, desistira de enfrentar a famosa Górgona. E, com mal-disfarçada ironia, fingiu-se muito alegre e disse-lhe:

— Ora, quem eu vejo?! Cumpriste a promessa? Trouxeste-me a cabeça de Medusa, com sua cabeleira de serpentes?

Mais interessado em perguntar-lhe sobre sua mãe, Perseus hesitou um segundo em responder. Polidectos entendeu mal a hesitação e esboçou um riso feroz:

— Se não trouxeste, meu jovem, sinto muito... É tua desgraça! Eu não perdoo os que me fazem falsas promessas e não perdoaria, nunca, quem me levou a fazer uma promessa falsa à princesa Hipodâmia, que continua como alvo de pretendentes insanos, que não têm amor à vida. Ela não vem, mas as festividades continuam, e não faltam belas pretendentes em Sérifos.

Perseus manteve-se calmo.

— Compreendo, Majestade. Aqueles a quem os deuses ajudam cumprem as suas promessas; e aqueles que os desprezam, colhem o que semearam. Podes ficar tranqüilo. Eu trouxe... a horrenda cabeça... as serpentes horrendas...

— Eu gostaria de ver. Deve ser um espetáculo curioso, se é que falam a verdade todos os viajantes que contam histórias fantásticas.

—Tens razão, Majestade. É um espetáculo digno de um rei. Mais ainda: digno de um rei ilustre e de todo o seu povo. E se Vossa Majestade me permite uma sugestão, eu tomo a liberdade de solicitar que o dia de amanhã seja declarado feriado em todo o país, para a apresentação a todos desta curiosidade maravilhosa, diante da corte e de todo o povo de Sérifos.

Julgando que Perseus estava apenas procurando ganhar tempo e querendo dar-lhe uma lição definitiva diante de todos, tendo um bom pretexto para eliminá-lo, Polidectos aceitou.

Os arautos saíram pela ilha a anunciar o feriado para o dia seguinte, convidando todo o povo para apresentação do troféu oferecido por Perseus. E, enquanto exerciam seu ofício, riam prevendo o fim de Perseus. O povo, tão cruel quanto o rei, recebeu com alegria o feriado, pois não gostava mesmo de trabalhar, e começou a se encaminhar para a grande praça fronteiriça ao palácio, aonde Perseus seria desmascarado e castigado. Homens, mulheres e crianças abandonaram tudo, ansiosos pelo espetáculo. Somente Díctis, os sacerdotes e sacerdotisas do templo e os pescadores não compareceram. Não queriam ver a morte do pobre rapaz, nem podiam deixar as suas obrigações, das quais dependiam.

Na manhã seguinte, a praça estava atulhada de gente. Em frente ao palácio, estavam os cortesãos. No meio deles, Polidectos e algumas mulheres pretendentes à nova rainha esperavam Perseus. Como ele demorasse, pensaram que houvesse fugido, já muitos gritavam, protestando:

— Está na hora! Queremos Perseus!

Nisso, Perseus entrou na sala do trono, muito calmo. E, surpreso, Polidectos observou:

— Pensei que não viesses. Julguei que tivesses perdido a cabeça de Medusa...

Olhando a multidão, francamente compadecido, falou calmamente:

— Eu estive pensando, Majestade, que era melhor não mostrar. É muito feia... Eu preferia não mostrar e ir embora com minha mãe para a Hélade.

— Ah! Sim?

E o rei, ironicamente, ergueu a voz para a multidão:

— Povo de Sérifos! Povo da minha terra! Perseus, que aqui se encontra, diz que prefere não mostrar a cabeça de Medusa. Diz ele que não ireis gostar... Diz que é muito feia...

Riu de novo e com ele as princesas, os cortesãos e o povo. E, após uma ligeira pausa, perguntou:

— Que é que prefere o nobre e valente povo de Sérifos: ver apenas a beleza do jovem e bravo Perseus, ou a horrível feiura da medonha Medusa, com sua cabeleira de serpentes?

Num fragor de tempestade, milhares de vozes começaram a anunciar, certas de que chegara a hora de desmascarar Perseus e assistir a sua morte:

— Medusa! Medusa! Medusa! Medusa!

Quando o povo calou, o rei fez um gesto para Perseus, como quem dizia: “Come é? Vais mostrar ou não?” E fez-lhe um gesto de quem pretendia mandar cortar sua cabeça.

Perseus ainda quis recuar.

— Mas, Majestade...

— Não podemos decepcionar essa boa gente...

E continuava o povo:

— Medusa!

— Nós queremos ver Medusa!

— Medusa!

O rei Polidectos, certo de que chegara a sua hora de eliminar Perseus, endureceu o olhar, franziu a testa e falou:

— Ou a cabeça de Medusa, ou a tua! Vamos, covarde! Chega de comédia!

— Medusa! Nós queremos ver Medusa!

— Vais mostrar ou não vais?

— Medusa! Medusa!

Então Perseus não esperou mais, pois mostrava nitidamente que não havia cumprido sua missão e que passava de um covarde perante todos. Até os guardas do palácio, muito curiosos pela pressão que faziam a Perseus, não resistiram e foram acompanhar o desfecho.

— Atenção! Atenção! Ouve, rei Polidectos! Prestai atenção, cortesãs! Atenção, nobres e valentes de Sérifos! Olhai bem! Vou mostrar-vos a cabeça de Medusa...

— ...ou cortamos a tua!

Foi a definitiva afirmação do rei, e sua última, porque, no mesmo instante, Polidectos, os príncipes, os generais, as pretendentes à rainha e todo o povo, sob espanto e terror, se transformavam numa dura, estranha, silenciosa e imóvel multidão de estátuas de mármore ou pedra.

Tendo o cuidado de não olhar a terrível arma que tinha nas mãos, Perseus recolheu-a no saco mágico e se dispôs a sair a procurar Dânae sua mãe. Já ia partir, quando ainda ouviu a voz de Hermes, que tinha um fraco pelo comércio.

— Tu podias ganhar uma fortuna, vendendo esse mármore todo... Não? Está bem. Eu dou um jeito nisso.

Perseus não se interessou e, o que queria mesmo, era encontrar sua mãe e sua esposa, que deviam estar preocupadas com sua ausência. Por isso, virou as costas, retirou-se e foi depositar a cabeça de Medusa, dentro do saco, no interior do Templo de Atena.

Polidectos e seus convidados quedaram-se imóveis, com os copos de vinho pousados sobre a mesa. Tinham o aspecto de quem, assustado, tentava fugir. Mas não havia dado tempo. De repente, as vigas do teto desmoronaram sobre suas cabeças, as paredes ruíram sobre suas costas, e a mesa desabou no meio deles, e a relva brotou em torno de seus pés; mas Polidectos e seus convidados permaneceram na colina, como uma fila de pedras cinzentas.

Em seguida a tudo isso, transformou Díctis (ou Dettos) no novo rei de Sérifos, que passou a reorganizar o país.

MICENAS

Perseus e Andrômeda voaram montados em Pégasos até a Hélade, enquanto Dânae era conduzida por um barco de Sérifos. E, sobrevoando uma pequena aldeia do interior da Hélade, Andrômeda segurava com curiosidade o herpé do deus Hermes, que se encontrava na bainha, e, ao retirar a espada, deixou a bainha cair e se perder em algum lugar que não mais conseguiram encontrar. O próprio deus-mensageiro aquietou o coração aflito de Perseus, devido a irresponsabilidade, e demonstrou que havia um propósito do Destino para ter-se perdido a bainha do Herpé. Então, mais conformado, Perseus e Andrômeda, continuaram o seu caminho no lombo de Pégasos.

Fazendo isso, Perseus demonstrou ter muito bom senso e devolveu a liberdade ao fabuloso corcel Pégasos, que, muito satisfeito com a decisão de seu dono, voou direto para o Olimpo.

Havia um homem daquelas paragens, chamado Gorgófonos, que reinava em Epidauros. Banido de seu reino, ele havia recebido de um oráculo a ordem de fundar uma cidade no lugar em que encontrasse uma bainha de espada, e, casualmente, encontrou a mesma que caiu das mais de Andrômeda quando acompanhava Perseus no lombo de Pégasos. E então, para cumprir as ordens proféticas do Oráculo, iniciou, ali mesmo, próxima da aldeia, a construção de uma grande cidade, e resolveu dar-lhe o nome de Micenas, nome relacionado a mykes, a “bainha” que encontrara. Por coincidência, essa era a mesma aldeia que há muitos e muitos anos foi erguida por um neto de Foroneus, um homem chamado Miceneus, filho do rei Ínacos, e a nova cidade foi fundada em sua honra.

A MORTE DE ACRÍSIOS

Perseus e sua mulher seguiram rumo a Árgos, com o objetivo de rever seu avô, Acrísios, tornar-se rei de Tirinto e construir uma nova cidade. E ouviu dizer que Acrísios não se encontrava em Árgos, pois Proetos, o irmão perverso, de novo o atacara, depois de tantos anos; e, depois de atravessar o rio Ínacos, vindo de Tirinto, conquistara Árgos. Acrísios fugira para Lárissa, na Tessália, onde habitavam os pelasgos.

Perseus reuniu os argivos oprimidos e contou-lhes quem era e os gloriosos feitos que realizara. E os nobres e proprietários aclamaram-no rei, pois viram que tinha um coração real; e combateram ao seu lado contra Árgos, retomaram-na, expulsaram Proetos, que teve que se ocultar, e obrigaram os Cíclopes a servirem-nos, construindo muralhas em redor de Árgos, semelhantes às que tinham construído em Tirinto; e houve grande júbilo no vale de Árgos, pois Zeus enviara um rei ao povo.

Mas o coração de Perseus anelava por seu avô e ele disse:

— Sou sua carne e seu sangue, e ele me amará agora que regresso coberto de honra; irei ao seu encontro, o trarei de volta, e juntos reinaremos em paz.

Pretendia encontrá-lo e tranquilizá-lo a respeito de suas intenções, pois não desejava matá-lo, mas sentia-se no intuito de perdoá-lo.

E Perseus velejou com uma tripulação em torno de Hídrea e Súnion, costeou a praia Ática e o Êuripos e subiu o vasto mar Euteanos, até alcançar a cidade de Lárissa, habitada pelos pelasgos.

Ao chegar, soube que o povo da cidade partira para os campos, onde havia festejos e jogos de toda espécie, pois Teutâmides, o rei, desejara homenagear Acrísios, soberano de uma poderosa nação.

Perseus entrou no país anonimamente, como um aventureiro qualquer: apresentou-se entre os jovens de Lárissa como um concorrente aos jogos, dizendo consigo mesmo:

— Se eu obtiver os prêmios disputados, o coração de meu avô se abrandará em relação a mim.

E os jovem pelasgos se perguntavam:

— Quem será esse estrangeiro, cuja atitude orgulhosa lembra um touro selvagem?

— Deve ser um dos heróis, filhos dos Imortais.

E quando os jogos começaram, mais surpresos ainda ficaram: pois Perseus mostrou-se o melhor na corrida, no salto e no arremesso de dardo; conquistou quatro coroas e depois de recebê-las, disse consigo mesmo:

— Há uma quinta coroa: também a ganharei e depositarei todas elas aos pés de meu avô. Minha mãe, Dânae, me pediu que lhe perdoasse. Se eu a desobedecer, serei açoitado pelas Erínias.

E, enquanto falava, avistou Acrísios sentado ao lado do rei Teutâmides; sua barba branca caía-lhe em ondas sobre os joelhos, e sustentava na mão o cajado real. Lágrimas vieram aos olhos de Perseus, pois seu coração transbordava de afeição por seu avô.

— Sem dúvida é um ancião majestoso, mas não se envergonhará de seu neto.

Então, apanhou e atirou o disco que foi cair cinco braças mais longe do que os dos outros concorrentes. E alguém, muito impressionado, desafiou:

— Atira mais longe ainda, valente estrangeiro!

E o povo pediu para que Perseus repetisse o arremesso e ainda o fizesse melhor. Perseus, muito satisfeito, reuniu as suas forças e arremessou o disco. Mas um vento repentino, mandado por Zeus, apanhou o disco que era lançado e fez com que mudasse de rumo e espatifasse o crânio do velho rei, fazendo assim se cumprir o Fado, mesmo contra a vontade dos homens. Perseus soltou um grito e correu para junto do avô. Tentaram acordá-lo, pois havia esperança de apenas ter desmaiado; mas era tarde, havia morrido, sem ao menos ter voltado a ver seu neto.

Então Perseus rasgou as roupas, pôs terra na cabeça e chorou seu avô durante muito tempo. Finalmente levantou, reuniu o povo e disse-lhe:

— Os deuses não mentem e sucede tudo quando eles determinam. Sou Perseus, o matador da Górgona, neto deste rei que acabo de lhe tirar a vida.

O povo se arrepiou, pois já haviam ouvido falar do matador da Górgona, sem nunca alguém imaginar que esse Perseus era o mesmo que o avô um dia tentara matar, e à sua mãe, jogando-os às ondas do mar. Julgavam-nos mortos há muito tempo.

E Perseus relatou ao povo daquela terra como o Oráculo anunciara que ele mataria seu avô, e também lhe contou a história de sua vida.

Depois de prantear Acrísios, o povo incinerou-o sobre uma soberba fogueira e enterrou seus restos fora da cidade; em seguida, Perseus dirigiu-se ao Templo, onde foi purificado da culpa daquele crime, pois involuntariamente o causara.

O REINADO DE PERSEUS

Depois, reuniu sua tripulação e seus prêmios e voltou para a Argólida. Mas Perseus, com sensibilidade, decidiu que não seria muito popular voltar a Árgos e ocupar o trono de Acrísios, logo após tê-lo morto; assim, ao invés, fez uma troca de reinos com seu primo Megapentes, filho de Proetos, que deveria ocupar o trono no lugar de seu pai, em Tirinto. Este se dirigiu a Árgos enquanto Perseus haveria de governar Tirinto.

Perseus governou Tirinto sabiamente, ao lado da bela esposa Andrômeda; tiveram muitos filhos: Pérses, o filho mais velho, Eléctrion, o segundo filho, Estênelos, o terceiro, Alceus (Alkaios), Hélios, Méstor, Éritras, e uma filha, Gorgófone, cujo nome significa “morte da Górgona”, em honra ao seu grande feito, que o tornou famoso.

Perseus, tornando-se rei em Tirinto, dali mesmo resolveu fortificar as cidadelas rochosas de Midéia e Micenas, que se erguia sob a administração de Gorgófonos.

Muito mais tarde, quando a cidade tornara-se poderosa e sede da Argólida, os micênios honraram ao filho de Zeus como o seu verdadeiro herói-fundador, esquecendo os nomes de Miceneus e Gorgófonos. Mas não puderam contar nenhuma história importante sobre a maneira como Perseus a havia fundado. Então, lembrados da famosa fonte debaixo dos muros ciclópicos da fortaleza, surgiu uma novidade: que Perseus, o filho de Zeus, atormentado pela sede, apanhara um cogumelo, também chamado mykes, e dali surgiu a fonte onde o herói se dessedentou e de pura alegria teria fundado a cidade. E a fonte, então chamada Perséia, foi dirigida de fora para dentro, sob os muros da cidade, e passou a abastecê-la.

A VISITA DE PÉLOPS A PERSEUS

Assim, consumado o seu casamento e a sua soberania sobre todos os reinos da Ápia, ao sul da Hélade, durante algum tempo sentiu-se Pélops feliz com sua formosa esposa e seu novo reino. Grande foi sua felicidade quando Hipodâmia deu-lhe um filho a que puseram o nome de Piteus. Passado um ano, mais ou menos, começou ele a estender suas vistas pelas planícies e vales da Élide, fazendo incursões a cavalo cada vez mais distantes, para tomar conhecimento dos reinos que confinavam com o seu e saber que qualidade de gente os governava. Foram muitas visitas, até que, finalmente, Pélops chegou em Micenas.

Ali encontrou um jovem soberano de nome Perseus, recém-casado com uma princesa oriental, Andrômeda. Ele o acolheu amistosamente. Sendo muito viajados e tendo passado por muitas aventuras, não lhes faltavam assuntos para demoradas conversas, e achavam, ambos, grande prazer na companhia um do outro. Por estranha coincidência também conseguira Perseus atingir a realeza em virtude de uma profecia, e das tentativas de certo rei, Polidectos, que o falecido Enômaus tivera o desprazer de conhecer, para impedir sua realização.

Perseus contou-lhe ainda a história a respeito do que fizera o avô Acrísios à sua querida mãe Dânae, que ainda vivia, de como foi aprisionada no alto de uma torre e de como, mãe e filho, foram ter na ilha de Sérifos sob a proteção dos deuses. Contou-lhe sobre suas proezas e amizade que fizera com Hermes e Atena, e juntos foram ter com as bruxas Graias, nos limites do Mundo. Falou-lhe dessa aventura enfrentando as Górgonas, o seu confronto com o gigante Átlas e suas viagens sobre as areias de um grande deserto sob o lombo do fantástico cavalo Pégasos. Contou-lhe como conheceu a princesa Andrômeda e sobre os perigos que teve que enfrentar nas longínquas terras da Fenícia, concluindo uma das mais maravilhosas aventuras que Pélops pode ouvir. Sem dúvida, as suas histórias foram menos fantásticas, embora fossem muito incomuns, como por exemplo, a sua ressurreição e a sua estadia entre os deuses.

O rei Perseus, mais tarde, conduziu Pélops a Árgos, onde deveria se encontrar com o velho Proetos, irmão de Acrísios. Pélops ouvira também os relatos sobre a querela dos dois irmãos, história já muito conhecida. Mas havia outra história que lhe contara Proetos e ele mesmo, Perseus, nunca tinha ouvido da boca de ninguém. Era essa uma história tão maravilhosa quanto as próprias aventuras de Perseus. Era sobre um jovem de Éfira, conhecido pelo nome de Belerofonte. Ele foi acusado de violentar a esposa do rei Proetos, o que era mentira, e foi condenado a servir de escravo ao rei Ióbates, na Lícia. Naquela terra, Belerofonte teve que enfrentar muitos perigos, inclusive um monstro tricéfalo chamado Quimera, que lançava fogo pela boca. Alcançou a glória e tornou-se rei daquele povo.

Pélops estava maravilhado de tantas histórias. Mas eram verdadeiras. Ouviu Proetos lhe contar sobre a loucura que se apossou das suas três filhas. E um famoso adivinho, Melampos, conseguiu curá-las espantosamente, e só fez isso exigindo do rei uma recompensa: dois terços do seu reino, e ainda por cima a mão da mais bela das suas filhas. Isso irritou Proetos, mas teve que ceder.

Isso tudo foi relatado pelo rei Proetos a Pélops, em Árgos, enquanto comiam e bebiam. E Pélops sentiu grande desejo de conhecer Melampos, de conversar com esse adivinho e médico que havia angariado tão grande fama. Ao deixar Árgos, dirigiu-se à casa de Melampos, onde este vivia com sua bela esposa Ifianassa. Apresentando-se a eles disse Pélops:

— Ouvi contar do rei Proetos a maneira pela qual tu curaste a loucura das mulheres de Árgos. Gostaria de saber como foi que obtiveste o divino dom de profecia e de adivinhação.

— Contar-te-ei isso com prazer. Na minha juventude estudei com o deus Apolo as propriedades das ervas e das plantas, e a confecção de remédios. Não ignoras ser a serpente tida em grande estima pelos médicos. Fiquei muito contrariado ao saber que meus serventes, ao encontrarem um casal de cobras num velho carvalho de meu quintal, as haviam matado. Ergui uma pira funerária e queimei os corpos das serpentes com honras e reverências e, encontrando alguns filhotes de serpentes no carvalho, criei essas pequenas órfãs com carinho e desvelo.

Pélops olhava-o assombrado.

— Não, meu nobre Pélops, não sou louco. Um dia adormeci à sombra do carvalho. As cobrinhas, brincando ao sol, ao meu redor, aproximaram-se e com suas linguinhas palpitantes tocaram de leve minhas orelhas, meus olhos e minha boca. Podes acreditar: quando acordei fiquei surpreendido de constatar que podia ouvir e compreender o que diziam, uns aos outros pássaros, e outros animais, e até mesmo as cobras e as pequenas criaturas que se agitam na grama. Com elas aprendi a predizer o futuro. Foram elas que me desvendaram o segredo da loucura que os deuses enviaram às mulheres de Árgos, assim como a maneira de curá-las. Esse conhecimento me valeu, como tu vês, uma linda esposa e uma grande parte do reino.

Melampos disse ainda a Pélops que não vivera sempre em Árgos, mas viera de Pilos, donde fora expulso de seu lar pela crueldade de seu tio, o rei Neleus. Pélops admirou-se, pois Neleus era um rei vizinho da Élide. E Melampos contou-lhe sobre como ajudou seu irmão Bias a conquistar a bela Pero, a filha do rei Neleus. Para isso, teve que merecer os favores do rei Fílacos, que governava em Fílace, na Hemônia, e conseguiu dele uma manada de famosos touros que serviriam de dote para seu irmão Bias poder casar-se com a filha de Neleus.