Mitologia vs Mídia

Filme "Fúria de Titãs"

Muito bem. O colega acima citou o filme “Fúria de Titãs”. Então, vou comentá-lo.
Pra começar, posso dizer que é um excelente filme na categoria “aventura”. Muito bem produzido, rico em efeitos, emocionante, talvez um dos melhores que assisti.
Mas, como ocorre a muitos outros que gravei ou somente assisti, há um montão de gafes relacionadas ao conteúdo do mito de Perseus e sua sequência.

Os títulos em letras maiúsculas são relacionados ao filme. O texto logo abaixo é a informação correta, particular e pesquisada em livros de Mitologia Grega e História.

Boa leitura.

– ZEUS CONVENCE HÁDES E CRIA UMA FERA QUE DESTRÓI OS TITÃS: KRAKEN.

Primeiro (segundo pesquisa no Wikipédia): “O Kraken era uma espécie de lula ou polvo gigante que ameaçava os navios no folclore nórdico. Este cefalópode tinha o tamanho de uma ilha e cem braços, acreditava-se que habitava as águas profundas do mar da Noruega, que separa a Islândia das terras Escandinavas, mas poderia migrar por todo o Atlântico Norte. O Kraken tinha fama de destruir navios, mas só destruía aqueles que poluíam o mar e navios de piratas. O Kraken também é confundido por ser visto na Mitologia Grega como uma sépia gigante que controlava as tempestades e as profundezas oceânicas e que habitava uma caverna submersa. No entanto, não há registro do Kraken na Mitologia Grega.”

Em resumo, o Kraken não faz parte da Mitologia Grega. O monstro do mito de Perseus chamava-se Cetos (Kétos), de “cetáceo”, monstro marinho da família das baleias, dos botos e dos golfinhos. No entanto, foi representado como um monstro marinho no estilo lula ou sépia gigante ou algo parecido.

Segundo: Kétos (ou Kraken, como queiram) não era filho de Hádes, mas sim de Géa (a Terra) e um antigo deus marinho chamado Pontos (a Onda Marinha).

Terceiro: Não houve relato de uma batalha entre esse monstro e os Titãs, a menos que fosse confundido com Ógigos ou Ofíon, a serpente, o filho de Géa e Úranos antes dos Titãs, que travou com eles uma batalha, uniu-se com Eurínome e reinou sobre todas as divindades primordiais.

- HÁDES É ENGANADO POR ZEUS, QUE LHE DÁ O DOMÍNIO DO SUBMUNDO.

Tendo vencido os Titãs, Zeus “partilhou” o mundo com seus irmãos segundo os seus esforços. Não foi exatamente uma traição. Zeus, tendo sido o mentor e quem executou a conspiração contra Cronos, ganhou o direito de governar do Olimpo.

- ZEUS CRIA A RAÇA HUMANA.

Errado. A princípio, foi Epimeteus, mas criou o homem sem inteligência e submisso. Em seguida, Prometeus do barro criou o homem à imagem dos deuses, Atena deu-lhe inteligência e vida, e o primeiro homem moldado chamou-se Foroneus, e o fizeram filho de Ínacos. Zeus, certo dia, irritado com Prometeus, decidiu exterminá-los mandando contra essa raça o dilúvio.

- OS HOMENS SE REBELAM CONTRA OS DEUSES.

Houve sim um tempo em que os homens ignoraram os deuses, valorizando suas próprias vidas, pretendendo ser independentes e livres, mas não há relato algum de uma batalha entre a raça humana e os deuses. Houve sim uma guerra entre Gigantes e deuses, a Gigantomaquia, onde alguns homens (semideuses) dela participaram, como Héracles, Dionisos, Cástor e Polideuces.

- MÁRMARA, MULHER DE DÍCTIS, O PESCADOR.

Bom saber que o nome da esposa de Díctis chamava-se Mármara. Mas é a primeira vez que ouço falar nesse nome como a esposa de Díctis. Talvez por alusão, Mármara é o nome do mar que antigamente chamava-se Propontis, e separa o Egeu do mar Negro.

- DÂNAE É ENCONTRADA MORTA À DERIVA COM SEU FILHO PERSEUS.

Dânae não morreu. Ela, junto com seu filho Perseus, foi salva e passou a viver com Díctis na ilha de Sérifos.

- PERSEUS QUASE CARECA.

Bem, não dá pra duvidar, mas foge às características físicas dos antigos gregos. Era costume os homens deixarem crescer seus cabelos, como os das mulheres. De modo geral, os gregos eram tidos como loiros e de cabelos longos e encaracolados. Mas poderia sim Perseus ser diferente, por que não? Em “Helena de Tróia” fizeram um Aquiles careca. Até onde vai a “licença poética”?

- SOLDADOS DE ÁRGOS DERRUBAM A ESTÁTUA DE ZEUS.

Por que toda essa rebeldia dos argivos contra os deuses? De onde tiraram essa informação? Acrísios pertencia à raça de Zeus, já que seus ancestrais eram Ínacos, Io (que uniu-se a Zeus), Épafos, Belos, Egitos, Linceus e Abas. Acrísios tinha mesmo seu irmão Proetos como inimigo declarado.

- O ATAQUE DAS HÁRPIAS, SERVIDORAS DE HÁDES.

As Hárpias, mencionadas nos mitos dos Argonautas e de Enéias, não estavam relacionadas a Hádes nem ao Submundo (Infernos), tanto que eram chamadas de “cadelas de Zeus e Héra” e a eles prestavam serviços. Eram utilizadas para punir os criminosos, causar-lhes infortúnios e miséria.

- HÁDES MATA DÍCTIS E SUA FAMÍLIA.

Díctis não se tornou rei de Sérifos no lugar de seu irmão Polidectos? Sim. Portanto, não morreu da forma como mostra o filme, nem ele nem sua família. Passou a reinar em Sérifos depois que Perseus deu cabo de Polidectos e transformou-o em uma estátua de pedra utilizando a cabeça de Medusa.

- HÁDES, O VILÃO DO MITO DE PERSEUS.

Hádes poderia ser o vilão de qualquer mito, mas não faz sentido ser o vilão para o mito de Perseus. Inclusive recebeu de Hádes permissão para usar seu gorro da invisibilidade na expedição contra as Górgonas. É mais fácil pensar que Posseidon era seu inimigo, por sua relação com Medusa e Kétos (o Kráken).

- CEFEUS, REI DE ÁRGOS E SUCESSOR DE ACRÍSIOS.

Cadê o rei Polidectos, rei de Sérifos e irmão de Díctis? Cefeus jamais reinou em Árgos e não foi sucessor de Acrísios. Cefeus era filho de Fênix (que deu nome aos fenícios) e neto de Agenor, o rei dos sidônios. Governava na cidade de Íope (hoje chamada de Jaffa, no norte de Israel). Portanto, esse povo não era os Argivos, mas sim os Fenícios.

Como foi postado acima, Polidectos era o rei de Sérifos, onde Díctis e sua família viviam com Perseus e Dânae. Sérifos foi o marco inicial da missão de Perseus, e mais tarde foi levado para Íope, onde venceu o monstro Kétos.

- O PORTO DE ÁRGOS.

Pra começar, devia ser a cidade de Íope, onde Cefeus e Cassiopéia reinavam. E, pra complementar, Árgos não era uma cidade portuária. Náuplia era o seu porto, cidade litorânea no Egeu.

- HÁDES LANÇA O CASTIGO AO POVO DE ÁRGOS.

Não foi Afrodite ou Tétis? Os fenícios conheciam essas duas deusas (não se sabe ao certo qual delas) pelo nome de Atárgatis, e segundo consta, foi uma delas que amaldiçoou o povo de Íope e anunciou o sacrifício ao monstro Kétos. Creio mais que, apesar de Afrodite ter sido intensamente venerada no Chipre e na Fenícia (sob o nome de Astarté), a deusa do mito era a nereida Tétis. A versão antiga do filme tem a informação mais correta.

- HÁDES TIRA A VIDA DE CASSIOPÉIA.

Cassiopéia não foi morta pelas mãos de Hádes, talvez não desta forma como mostra o filme. Pelo contrário, ela mereceu um lugar entre os Astros, Zeus colocou-a entre as Constelações.

- PERSEUS É CASTIGADO E PRESO PELOS SOLDADOS DE ÁRGOS.

Nem pelos argivos, nem pelos fenícios... Perseus chegou em Íope como herói, matador de medusa e de Kétos.

- O CORTE DE CABELO DOS SOLDADOS DE ÁRGOS.

Mais parecem “punks”. Esse corte de cabelo foi usado mais entre persas e outros povos orientais.

- IO, PROTETORA DE PERSEUS.

Io não era seu antepassado? A protetora de Perseus não foi Atena? Ora, vejam só: Io, a filha de Ínacos e “irmã” de Foroneus, uniu-se com Zeus, e passou a ser o tronco da raça da qual depois de muitas gerações surgiu Perseus, ou seja, era sua tataravó. Se ela se tornou uma espécie de deusa, tudo bem, mas não sua amante.

- IO RECUSA SER FLERTADA POR UM DEUS E PASSA A NÃO MAIS ENVELHECER.

Zeus uniu-se com ela e lhe deu o filho Épafos e uma filha, Céressa. Ela, para escapar da vingança de Héra, foi transformada numa novilha, e como tal rumou para o país de Nilótis (o futuro Egito), onde deu à luz Épafos. Acabou por ser desposada pelo rei local, que criou seu filho e o fez seu sucessor. Pelo contrário, segundo a tradição, Io entrou no rol dos deuses egípcios sob o nome de Ísis.

- IO CONTA A HISTÓRIA: ZEUS UNE-SE A DÂNAE PARA VINGAR-SE DA REBELDIA DE ACRÍSIOS.

Devaneios do autor do filme. Acrísios aprisionou Dânae numa alta torre por ter ouvido um oráculo que o filho que ela teria o mataria. Por isso, manteve-a a distância, e só Zeus conseguiu possuí-la como uma chuva de ouro.

- DÃNAE, A ESPOSA DE ACRÍSIOS.

Mais devaneios... talvez para poupar atores no filme. Dânae era FILHA de Acrísios e sua mãe chamava-se Eurídice, filha de Lacedémon e Esparta. Perseus, portanto, era neto de Acrísios.

- O OBJETIVO DE PERSEUS É MATAR O KRÁKEN.

Não era trazer a cabeça de Medusa para o rei Polidectos? Polidectos, pretendendo livrar-se de Perseus para ter passe livre com Dânae, no dia de seu aniversário exigiu que Perseus lhe trouxesse a cabeça de Medusa, aproveitando-se dele num momento de debilidade e embriaguez. Essa era a sua meta. Kétos foi um dos tantos obstáculos que Perseus encontrou pelo caminho de volta. E uma das passagens mais importantes, que nem foi mencionada no filme, foi quando Perseus encontrou o gigante Átlas.

- A CORUJA BUBO DA VERSÃO ANTIGA DO FILME.

Bubo é fictício e tornou-se ainda mais na versão nova do filme. É uma coruja mecânica (não entendi o motivo), representando a deusa Atena, que deveria sim ser a companheira de Perseus na sua missão.

- OS SOLDADOS DE CEFEUS, GUIAS DE PERSEUS EM SUA EXPEDIÇÃO.

Hermes foi guia de Perseus, e Atena ajudou-o a derrotar Medusa. Perseus não utilizou-se de soldados em sua missão.

- DOIS IRMÃOS SE OFERECEM A SEGUIR PERSEUS.
Dizem que mataram o Leão de Neméia e a Hidra de Lerna. Seriam Héracles e seu irmão Íficles, ou seu sobrinho Íolas?
Dizem que sabem como matar o Minotauro. Seria um deles o herói Teseus?
Seriam Cástor e Polideuces?

Nenhum dos heróis acima citados havia ainda nascido na época de Perseus. Aliás, Héracles foi seu bisneto. E nenhum desses monstros era conhecido nessa época, apesar de que já existissem.

– PERSEUS E SEUS COMPANHEIROS SEGUEM A PÉ RUMO AO PAÍS DAS GÓRGONAS.

A pé????? O país das Górgonas ficava no norte da Europa, onde hoje ficam a Noruega e a Suécia, segundo a versão mais corrente, ou nas ilhas Shetland, ao norte da Grã-Bretanha. Por quê? Porque ficava ao norte da Ciméria, no país dos Hiperbóreos.

– HÁDES VISITA ACRÍSIOS NO SUBMUNDO.

Ele já havia morrido? Se transformou num demônio para matar Perseus, como Cálibos, da versão antiga do filme? Acrísio só morreria na velhice, depois do retorno de Perseus à Hélade. Esse demônio, totalmente fictício no mito de Perseus, substituiu provavelmente a Fineus, o irmão de Cefeus; ele era pretendente à mão de Andrômeda.

– PERSEUS E OS SOLDADOS, A PÉ, PREVEEM UMA VIAGEM DE QUATRO DIAS AO ANTRO DAS BRUXAS GRÉIAS.

As bruxas Gréias deviam habitar os atuais montes Cárpatos ou, ainda, poderiam habitar a atual Dinamarca, já que este país foi identificado com a antiga Ciméria ou Címbrica. Não sei se daria para atravessar as montanhas ao norte da Grécia e a própria Europa, a pé, em apenas quatro dias. Pelo menos na versão antiga do filme eles usaram cavalos...

– A ESPADA DOS DEUSES É CONCEDIDA A PERSEUS ATRAVÉS DE DRÁKO.

O “herpé”, espada CURVA (parecendo uma foice), que Cronos utilizou para castrar UÚranos, não foi concedida a Perseus através do deus Hermes? E o gorro de Hádes? E as sandálias aladas?

– PERSEUS ENCONTRA UMA MANADA DE CAVALOS ALADOS.

Pégasos não era o único de sua espécie? E era negro? Pégasos já existia antes de Medusa morrer? Perseus não teve que domá-lo? Cadê Crisáor, o outro filho de Medusa?

Sim... Pégasos era filho de Medusa, assim como Crisáor, e ambos nasceram de seu sangue, ou seja, depois que Perseus decepou a cabeça da górgona. Daí teve que domá-lo e utilizá-lo para retornar. E usou-o contra o monstro Kétos. E a tradição o faz branco. Esse mesmo cavalo foi utilizado mais tarde por Belerofonte e Héracles (não como no desenho da Disney, é claro).

– ESCORPIÕES GIGANTESCOS NASCIDOS DO SANGUE DE ACRÍSIOS.

Não. Os escorpiões mencionados no mito de Perseus nasceram das gotas de sangue da cabeça de Medusa que caíram sobre as areias do deserto do Saara (ou da Líbia).

– OS DEMÔNIOS DOMADORES DE ESCORPIÕES.

Parecem mais beduínos do deserto do Saara. A Ciméria não ficava na Europa setentrional? Acontece que seria mais lógico se Perseus os tivessem visto no seu retorno, passando pelos desertos do Saara ou da Líbia. De certa forma, Perseus teve um contato com os povos nômades e com a gente da Etiópia (consta que eram mágicos). E talvez ainda com os Atlantes.

– PERSEUS ADOECE ENVENENADO PELA MORDIDA DE ACRÍSIOS.

Verdadeira bobagem...

– O SACERDOTE ARGIVO.

Mais se parece com um guru indiano. Tudo menos um sacerdote argivo.

– ÓBOLOS SOBRE OS OLHOS DOS MORTOS.
O mesmo erro cometido no filme “Tróia”. As moedas para o barqueiro Caronte eram depositadas sob a língua dos mortos, cujos corpos geralmente eram cremados numa pira.

– PERSEUS CHAMA AS GRÉIAS DE BRUXAS NORNES.

Outra confusão com a Mitologia Nórdica. As Gréias chamavam-se Ênio, Péfredo e Deino e pertenciam somente à Mitologia Grega. As Nornes foram assimiladas às Moiras gregas (Cloto, Láquesis e Átropos) e chamavam-se Werdanli, Urd e Skuld. GRÉIAS significa “cinzentas”, “grisalhas”, por serem bruxas idosas.

– JARDIM DE ESTÍGIA, ONDE O KRÁKEN DERROTOU OS TITÃS.

Nunca houve uma batalha entre Titãs e o Kráken nórdico, nem com Kétos. Isso só teria sentido se esse Kráken fosse comparado a Ógigos ou Ofíon, a serpente da criação, filho de Géa, que uniu-se à oceânide Eurínome e governou a Terra antes de Cronos e Zeus, e ele travou sim uma batalha contra os Titãs.

– BRUXAS GRÉIAS, DE UM SÓ OLHO.

Também dividiam um só dente para as três, e as Gréias do filme tinham vários dentes cada uma. A intenção de mostrar as Gréias como “velhas” é representá-las canibais, decrépitas, cegas e desdentadas.

– O ESCUDO ESPELHADO FEITO DA COURAÇA DE UM ESCORPIÃO.

Não. O escudo pertencia à deusa Atena e foi emprestada a Perseus por Hermes. Quando Perseus usou-a contra Medusa, ela mirou-se no espelho do escudo (a parte interna do mesmo), sua imagem ficou estampada nele. Por isso que representam Atena portando um escudo com a imagem de Medusa.

– UM ÓBOLO PARA ENTRAR NO BARCO DE CARONTE.

Perseus precisou atravessar o Estige ou o Aqueronte? Ele entrou nos Infernos? Caronte recebia em seu barco pessoas vivas? Atena tinha um templo nos Infernos?

A localização do país de Thule, onde Medusa tinha morada e que outrora pertencia ao rei Túlio e seu povo (todos transformados em pedra), era o sul da Escandinávia, naquela região litorânea que defronta-se com a Dinamarca. Perseus teria atravessado sim o estreito do mar Báltico (o antigo mar Croniano). Faz sentido, já que a Címbrica ou Ciméria Hiperboreana foi a própria Dinamarca, que os nativos chamavam de Jutland. Outros mitólogos preferem localizar Thule nas ilhas Shetland, ao norte da Grã-Bretanha. Portanto, Perseus não foi ao Submundo, mesmo que os antigos gregos considerassem aquela região uma parte dos Infernos.

Caronte não recebia pessoas vivas em seu barco e só se contentava com DOIS óbolos. Pela Mitologia Greco-romana conhecemos três exceções: Orfeus foi o primeiro, que convenceu Caronte encantando-o com sua lira mágica e sua história comovente. Depois foi a vez de Héracles, que obrigou-o com pancadas a transportá-lo para o outro lado do Estige. E o terceiro caso foi Enéias, com a ajuda da sibila de Cumas. Nem Psiqué nem Ulisses chegaram a cruzar o Estige nem o Aqueronte; se entraram, tiveram que pagar pelo serviço do barqueiro. Teseus e Píritous pagaram o barqueiro para subir no barco e entrar nos domínios de Hádes.

Atena não tinha templo nos Infernos, por isso não faz sentido mostrar a morada de Medusa nesse lugar. Entre os deuses, poucos foram os que entraram no Submundo: Perséfone, que lá permaneceu, Dionisos, para buscar sua mãe Sémele, Deméter, para buscar Perséfone, Hermes, para levar as almas dos mortos, e nenhum mais.

– AS SOMBRAS ATRELADAS AO BARCO DE CARONTE.

Segundo a Mitologia Grega, as sombras remavam no barco de Caronte enquanto ele portava o archote, e o filme mostra o barco com sombras atreladas a ele. Não esquecendo que as sombras não eram demônios, mas sim as almas dos próprios mortos.

- IO ENSINA PERSEUS A SE DEFENDER DE MEDUSA.

Io nem pertence ao mito de Perseus, pois era um ancestral do herói. Quem ensinou Perseus a defender-se de Medusa foi Atena, já que foi ela mesma quem transformou a ninfa Medusa num monstro, e as bruxas Gréias lhe deram as dicas necessárias de como poderia ser morta.

– A LUTA CONTRA MEDUSA.

Curiosidade: as Gréias eram irmãs das Górgonas. A Mitologia Grega tradicional somente menciona Medusa como uma ninfa transformada. Há um mito acerca de um povo de guerreiras africanas chamadas de Górgonas, que lutaram contra os Atlantes e as Amazonas da rainha Mírine. E duas Górgonas que sobreviveram, Esteno e Euríale, vencidas, foram castigadas, transformadas em monstros invisíveis. Medusa, uma ninfa, ao ir buscar socorro no templo de Atena contra a insistente perseguição de Poseidon, foi transformada também em monstro, tal qual suas “irmãs”, e foram abrigar-se em Thule, onde dizimou o povo que lá morava. O que diferenciava ela de suas irmãs é que era a única visível e mortal.

– PERSEUS MATA ACRÍSIOS PRÓXIMO AO ANTRO DE MEDUSA.

Confundido Acrísios com Cálibos, um personagem fictício do filme, jamais houve essa luta em alguma versão mitológica. Acrísios vivia ainda quando Perseus voltou vitorioso para reclamar seu lugar no trono de Árgos. Já havia cortado a cabeça de Medusa, já havia livrado Íope do monstro Kétos, já havia matado o rei Polidectos, e regressava para Árgos, recém-casado com Andrômeda, no lombo de Pégasos. Ao saber, Acrísios, a par do oráculo que havia-lhe anunciado que morreria às mãos de seu neto, fugiu para Lárissa. Num dia de jogos atléticos, em Lárissa, Perseus atirou o disco, que fez uma curva e acertou a cabeça de Acrísios, que se encontrava oculto entre o povo.

– A LUTA ENTRE PERSEUS E AS HÁRPIAS.

Não houve essa luta, apesar de ser uma seqüência muito bem feita no filme. As Hárpias eram utilizadas por Zeus para punir os criminosos, como ocorreu a Fineus, o rei de Salmidessos.

– PERSEUS VENCE HÁDES.

O único deus, que se tem conhecimento, que lutou contra Perseus foi Dionisos, que expandia seus orgíacos costumes pelo mundo e pretendia fazê-lo em Árgos também. Perseus ofereceu-lhe resistência, e Dionisos foi vencido. Árgos só passou a aceitar Dionisos e seu culto depois da morte de Perseus.

- CEFEUS E O SACERDOTE DE ÁRGOS MORREM ESMAGADOS.
Só no filme mesmo. É a tal “licença poética”. E como fica Polidectos nessa história? Perseus, logo que mostrou a cabeça de Medusa ao monstro Kétos, transformou-o numa montanha de pedra. Em seguida, aclamado herói, matou Fineus e seus homens, que conspiravam contra Cefeus, casou-se com Andrômeda, retornou para Sérifos, mostrou a cabeça da górgona ao rei Polidectos e seus cortesãos, tornou Díctis o novo rei de Sérifos e regressou para Árgos com Andrômeda e a mãe Dânae.

Ainda sobre a morte de Dânae, ela só veio a falecer muito tempo depois de Acrísios e de seu filho Perseus. Ela foi para a Itália, onde casou-se com Pilumnos, filho de Zeus e Garamântis, e dele teve um filho: Daunos.

– PERSEUS SALVA ANDRÔMEDA E FICA COM IO.

Perseus não iria se casar com sua tataravó. Casou-se com Andrômeda e teve vários filhos, alguns famosos: Hélios, Éritras, Perses, Eléctrion (pai de Alcmena e avô de Héracles), Estênelos (pai do rei Euristeus), Méstor, Alceus (pai de Anfitríon) e Gorgófone (mãe do rei Tíndaros).

Umas questões sobre o roteiro:

“Dânae, mulher de Acrísios?”
Não. Dânae era filha de Acrísios. Sua esposa chamava-se Eurídice, filha de Lacedémon, o rei de Esparta.

“Dânae possuída por Zeus enquanto Acrísios estava na guerra?”
Não. Acrísios tinha rixas com seu irmão Proetos, mas soube um dia que seu neto o mataria, por isso trancafiou sua filha Dânae no alto de uma torre para impedir que se unisse a alguém e tivesse um filho. Zeus a viu e, como uma chuva de ouro, entrou na torre e a possuiu. O autor do filme confundiu o mito de Perseus com o de Héracles, que aliás foi seu bisneto.

“Dânae foi morta por Acrísios?”
Não. Acrísios, ao saber que Dânae tivera um filho com alguém (não sabia quem), encerrou os dois numa cofre (ou caixão) e atirou-a ao mar. A vida de mãe e filho oi poupada, e ambos foram protegidos por Poseidon.

“Díctis era um pescador de Argos?”
Não. Díctis era um pescador de Sérifos, uma ilha que fica entre as ilhas Cíclades, no mar Egeu.

“Onde está Polidectos, o rei de Sérifos?” Polidectos, o rei de Sérifos, era irmão do pescador Díctis. Ele recusou dividir o trono com seu irmão e expulsou-o da corte.

“Díctis morreu afogado pela fúria de Hádes?”
Não. Díctis deu abrigo a Dânae e criou Perseus como seu próprio filho. No final das contas, depois da morte de Polidectos por Perseus, ele assumiria o trono de Sérifos.

“Cefeus e Cassiopéia se tornaram reis de Árgos no lugar de Acrísios?”
Não. Cefeus e Cassiopéia era fenícios e reinavam em Íope (hoje Jaffa, cidade costeira pertencente ao território de Israel). Acrísos, ao saber que seu neto (que poderia lhe causar a morte) estava vivo, foi exilar-se em Lárissa, enquanto Perseus apoderou-se de Árgos.

“Os deuses vestiam armaduras medievais?”
No filme parecia que vestiam armaduras medievais reluzentes. Segundo as pinturas e as esculturas antigas, os deuses eram representados com roupas comuns, como os seres humanos.

“Qual foi a missão de Perseus”?
Cefeus, pretendendo apossar-se de Dânae, precisava livrar-se de Perseus, que a protegia. Durante seu aniversário, Cefeus exigiu dele um presente: a cabeça de Medusa, sabendo que ele não retornaria vivo. Como se sabe, Perseus cumpriu sua promessa.

“Vocês repararam na corujinha mecânica da primeira versão?”
A corujinha da primeira versão, que mal apareceu na segunda, simbolizava a deusa Atena, protetora dos heróis da Grécia. Sua inclusão foi uma “viagem”, mas de boa intenção.

“Quem foi Io? Ela acompanhou Perseus em sua missão?”
Não, Io não acompanhou Perseus em sua missão. Pra começar, Io já nem existia. Ela era ancestral de Perseus. Foi o tronco da linhagem de Acrísios, Perseus e Héracles. Possuída por Zeus, foi transformada numa novilha para ser protegida da fúria de Héra. Descoberta, foi perseguida por uma mutuca insistente, e fê-la fugir para o país dos quemitas, onde nasceu Épafos, que se tornou rei. Épafos foi pai de Líbia, mãe de Belos, pai de Egitos (que deu nome ao país), pai de Linceus, pai de Ábas, pai de Acrísios, pai de Dânae, que foi mãe de Perseus.

“Mas quem acompanhou Perseus?”
Primeiro: Perseus foi sozinho em busca de Medusa, pois Cefeus não sacrificaria seus melhores homens nessa missão. Segundo: o próprio deus Hermes ofereceu-se em acompanhá-lo, entregando-lhe armas poderosas. Terceiro: Atena foi-lhes ao encontro para guiá-los ao seu longínquo templo onde morava Medusa e suas duas irmãs invisíveis.

“Quem eram aqueles dois irmãos que se ofereceram para acompanhar Perseus?”
Acho que a intenção do autor do filme era incluir Cástor e Pólux (Polideuces), que ainda nem haviam nascido. Vai saber...

“Eles mencionaram a Hidra de Lerna e o Leão de Neméia? Eles os conheciam?”
E ainda sabiam como matá-los, quando sabemos que Héracles é quem matou esses monstros.

“A espada herpé não era curva, tipo uma foice?”
Sim. A herpé foi a espada usada por Cronos para castrar Úranos. Zeus se apoderou dela depois de vencer Cronos. Hermes emprestou-a a Perseus para decapitar Medusa.

“Cadê as sandálias aladas, presente de Hermes?”
Pi! Não se sabe. Parece que seria fácil Perseus sair de Argos a pé e chegar até os confins do extremo-norte da Europa para ir cortar a cabeça de Medusa. Isso que ele teve que fazer uma parada nos montes Cárpatos para ir ter com as bruxas Gréias.

“Quem foi Cálibos? O próprio Acrísios?”
Há uma confusão aí. Acrísios foi (no filme) fulminado por Zeus, e não morreu. Teria se transformado em Cálibos (ridículo!). Cálibos nem é um personagem mitológico, não se sabe nada dele, é totalmente fictício.

“Quem foi Kraken?”
Kraken foi um monstro da Mitologia Nórdica, citado nos textos dos vikings. O monstro do mito de Perseus foi Cétos, e pertencia sim aos domínios de Poseidon, não de Hádes!

“Kraken seria uma maldição de Hádes? E era seu filho?”
Hádes nada tem a ver com esse mito. A maldição se deu através da deusa Afrodite, ou talvez de Tétis, que era venerada na Fenícia por outro nome, Atargátis. Cassiopéia ousou comparar Andrômeda com a deusa, causando-lhe a ira. A deusa foi reclamar a Poseidon, que decidiu exterminar aquele povo com o seu bichinho de estimação. A deusa Atargátis pode ter sido Afrodite, pois era a deusa mais venerada na Fenícia e na ilha de Cipros (Cipre), como poderia ser também Tétis, que pertencia ao cortejo de Poseidon e Nereus.

“Hádes pretendia tomar o trono de Zeus?”
Não se tem relatos sobre isso na Mitologia Grega. Houve sim uma conspiração no Olimpo por parte de Poseidon, Héra e Apolo – e só. Para compensar Hádes pelo reino sombrio que recebia de Zeus, este lhe deu o privilégio de reinar sobre o lugar mais rico e povoado da terra, para onde iam todos os que morriam. Hádes jamais saía do seu reino, a não ser duas ou três vezes quando foi preciso. E jamais se mostrava aos seres humanos. Se havia uma mágoa contra Zeus, Hádes compensou com o rapto de Core (Perséfone). A Disney procurou fazer de Hádes o vilão do mito de Héracles.

“De onde surgiu Pégasos? E havia outros como ele? Pégasos era negro?”
Pégasos só entrou no mito de Perseus após a morte de Medusa, já que nasceu depois de ter sido decapitada – ele e um gigante chamado Crisáor. Medusa estava grávida de Poseidon, que a havia possuído no templo de Atena. O que estranho é que esse templo parece estar no próprio país onde Medusa vivia. Estranho...

“Que demônios eram aqueles que viviam no deserto?”
No mito esse povo não é mencionado. Sabe-se, sim, que Perseus passou pela Líbia, no regresso, e foi ter com os núbios, um povo pacífico.

“Escorpiões gigantes?”
Exageraram um pouco. Não se tem conhecimento sobre a luta de Perseus com esses escorpiões. O que se sabe é que, na medida em que Perseus sobrevoava a Líbia, montado em Pégasos, o sangue de Medusa caía sobre as areias, e daí nasceram os escorpiões que hoje infestam o deserto africano. Não foi do sangue de Cálibos.

“Perseus não parecia estar em algum deserto da Pérsia ou da Índia?”
Observando melhor as estátuas e as colunas em ruínas, parece mesmo. Teve uma hora que pareciam estar nas ruínas de Persépolis.

“O escudo de Perseus era feito da pele de um escorpião gigante?”
O escudo de Perseus foi recebido das mãos de Hermes. E tinha o lado interno espelhado, para que Perseus pudesse ver Medusa sem encará-la.

“Moedas sobre os olhos dos mortos?”
Segundo o costume dos antigos gregos, os óbulos eram postos sob a língua dos cadáveres, que depois eram cremados, e não enterrados.

“Um templo de Atena no Inferno (submundo)? Onde ficava a morada de Medusa?”
É possível que houvesse um templo no país de Medusa, mas jamais no submundo. Thule era o nome do país, e hoje equivale a uma das ilhas Shetland, ao norte da Escócia. Há historiadores que localizaram esse país na Escandinávia (Suécia ou Noruega). Outrora pertenceu ao rei Túlio, cujo país foi invadido pelas Górgonas e seus habitantes transformados em pedra.

“Cadê o gigante Átlas, que aparece no mito?”
Átlas não é mencionado no filme. No regresso de Perseus, empurrado para a África, deparou-se com Átlas sendo punido pelos deuses com o firmamento em seus ombros. A seu pedido, Perseus mostrou-lhe o olhar de Medusa para que melhor pudesse suportar o peso do céu. Porém, outorgado pelo destino que Átlas jamais morreria, foi petrificado, mas continuou vivo, tornando-se um gigante de pedra, e como tal aparece no mito de Héracles.

“E Fineus, o pretendente de Andrômeda?”
Vai saber... Fineus era irmão de Cefeus, o rei de Íope, e era pretendente à mão de Andrômeda e ao trono. Quando Perseus chegou em Íope, combateu a conspiração.

“O sacrifício se deu em Árgos?”
Claro que não. Ocorreu em Íope, muito longe de Árgos.

“Cefeus e o sacerdote morreram esmagados por Kraken petrificado?”
Não. Foi usado licença poética, pra dar mais emoção. Tanto ele como a amaldiçoada Cassiopéia foram honrados e postos entre as Constelações.

“O que as Hárpias tem a ver com o mito?”
As cadelas de Hádes? Nada. Não foram mencionadas no mito.

“Perseus lutou contra Hádes?”
Não. O único deus que Perseus enfrentou foi Dionisos, quando este retornou de sua viagem à Índia e pretendeu expandir seu costume em Árgos.

“Perseus não se casou com Andrômeda?”
Sim. Casou-se com ela e teve muitos filhos. Io nada tem a ver.

CONCLUSÃO:
Um bom filme, aliás, muito bom, mas deturpado, mais ainda que a versão antiga do filme. É algo assim, mais ou menos como o filme "Tróia". Mas quero estar vivo ainda quando finalmente alguém fizer um filme mitológico que passe perto das versões originais. Podem manter o mesmo brilho, os mesmos efeitos visuais, a mesma emoção, só não precisam inventar demais. Dá pra incluir nomes fictícios, diálogos, cenas, cenários, mas os nomes originais e suas origens tem que ser mantidos, assim como o roteiro dos mitos e suas passagens principais.

Aberto a debate.

Esqueci de mencionar...
PÉGASOS, segundo as versões romanceadas originais, era de cor branca, e era único, não haviam outros como ele.

MORTE DE POLIDECTOS: esse personagem, que nem foi citado no filme, foi morto por Perseus (também seus asseclas), quando o herói lhes mostrou o olhar de Medusa.

MORTE DE ACRÍSIOS: Perseus retornou com Andrômeda a Árgos a fim de reclamar o trono, quando descobriu que Acrísios havia sumido. Um dia, cumprindo o Fado, Perseus foi participar de jogos atléticos em Lárissa, e, ao aremessar o disco, atingiu a cabeça de um convidado do rei, e era seu avô Acrísios. Perseus, tendo matado seu avô, não quis retornar a Árgos e trocou de reino com seu parente Megapentes, filho de Proetos; Megapentes ficou com Árgos, e Perseus com Tirinto.

A CABEÇA DE MEDUSA: foi estampada na égide de Atena.

Mais um detalhe sobre o filme:

"O que Hádes tem a ver com o mito de Perseus?"
Hádes não foi inimigo de Perseus, inclusive o ajudou de alguma forma. Uma das armas que Hermes lhe deu para enfrentar Medusa foi o GORRO DA INVISIBILIDADE, que Hádes utilizou na guerra contra os Titãs (Titanomaquia). Perseus usou-o para poder se aproximar de Medusa sem ser visto e para que pudesse ver e se proteger de suas irmãs invisíveis, Esteno e Euríale. Hermes, psicopompo, tinha a autorização de Hádes para ir e vir ao Inferno, e de certo modo convenceu o rei do submundo a emprestar-lhe o gorro.

Um adendo sobre Medusa e as outras Górgonas:

Logo abrirei um tópico sobre a dúvida: "Medusa tinha irmãs? Eram como ela? Por que eram invisíveis?". Essas explicações são parcialmente explicadas segundo a tese de Diodoro Sículo, um historiador antigo que relatou sobre as Górgonas, os Atlantes e as Amazonas da rainha Mírine.

Mais informações, leiam o mito de Perseus que postarei em seguida aqui neste tópico.
Um abraço a todos.

O MITO DE PERSEUS.

Espero que gostem, é a narração do mito na forma romanceada, em prosa, pesquisada com afinco, contrariando as versões cinematográficas da 'FÚRIA DE TITÃS'. Sendo romanceado, como todos os mitos postados nos tópicos de Mitologia, há sim uma licença poética usual, mas totalmente baseada nas versões originais dos poetas e historiadores gregos.

Poderão ser dadas opiniões, postar curiosidades, questionar e acrescentar no final do mito.

Boa leitura.

POSEIDON E MEDUSA

Quando os homens começaram a formar suas cidades, todos os deuses do Olimpo decidiram adotá-las. Mas aconteceu que Atena e Poseidon apaixonaram-se pelo mesmo lugar: a Acrópole, o primeiro sítio de Atenas, na época chamada Cecrópia, já que Cécrops era o rei. Eles levaram a disputa ao Conselho dos deuses. Zeus e os demais deuses decidiram, declararam que Atena seria a protetora da cidade, pois havia plantado uma palmeira naquelas terras, garantindo assim o seu direito.

Ofendido, injuriado, Poseidon perdeu a cabeça. Inundou todas as planícies das redondezas do reino, destruindo tudo o que estivesse entre ele e a cidade. Desse dia em diante, Atena se declarou sua inimiga.

Vários anos mais tarde, depois do reinado de Crânaos e quando governava em Cecrópia o rei Anfictíon, filho de Deucálion e Pirra, Poseidon apaixonava-se por uma bela ninfa, filha de Fórcis e Ceto. Olhos acinzentados, cabelos encaracolados, lindos de serem vistos, Medusa era a mulher mais formosa que Poseidon já havia visto. Apaixonou-se por ela quando ela foi banhar-se em suas ondas à luz do luar. Poseidon tomou a forma de uma ave e, raptando-a, levou-a ao Templo de Atena, causando a indignação da deusa. O amor de Poseidon foi correspondido, até que se uniram e viveram momentos felizes.

Foi então que Atena surgiu para vingar-se das mortes que ele tinha provocado em suas terras. Desceu do Olimpo, dirigiu-se à caverna a beira do mar onde estavam Poseidon e Medusa, e exigiu que o deus a abandonasse, a fim de fazê-lo infeliz. Discutiram violentamente, e Atena ergueu sua lança mágica para atingi-lo. Medusa se pôs na frente do amante, tentando defendê-lo.

Atena, esquecendo-se de sua bondade natural, fez um gesto mágico e a transformou num terrível dragão, abominável e demoníaco, causando horror a Poseidon, que a viu transformar em pedra seus animais aquáticos. Totalmente desesperado, foi esconder-se em seu reino, no mar Arquipélago, enquanto Atena, sem saber se arrependia-se ou se ria, voltou às pressas ao Olimpo.

Poseidon invocou Hécate, a deusa da magia, e implorou-lhe que tentasse quebrar aquele encanto. Mas os poderes ou pragas de Atena eram insuperáveis. Vendo-o tão triste e só, Hécate consolou-o dizendo-lhe que Medusa teria dois filhos: um gigante, Crisáor, também conhecido como Galáor, e um belíssimo cavalo alado, Pégasos. Eles nasceriam mesmo que Medusa morresse, e só nasceriam nessa condição. Seu nascimento seria a prova de que o amor produziria sempre bons frutos, mesmo por um amor impossível.

ABAS, DÉCIMO-SEGUNDO REI DE ÁRGOS

Em 1.383 a.C., após longos anos de um sólio vazio, subia ao trono de Árgos o jovem Abas, filho de Linceus e Hipermnestra. Nesta época, o grande soberano Hamurábi transformava Babilônia na capital dos amorreus, tornando-a sede de poderoso império na Ásia e fundando o Primeiro Império Babilônico.

O rei Abas casou-se com Aglaia, filha de Mantineus, e teve filhos com ela, um par de gêmeos, Acrísios (Akrísios) e Proetos (Proitos), e uma filha, Idomenéia (Idómene). Para ter os primeiros, Aglaia sofreu muito, pois dizia que as crianças discutiam e brigavam no seu ventre, muito antes de nascerem. Seriam inimigos. Os irmãos professavam o mesmo ódio que seus predecessores.

Além destes filhos, Abas teve com outra mulher um filho, e o chamaram Lircos. Este, futuramente, daria nome a uma região do Peloponesos: Lircéia.

Dânaos, inimigo de seu irmão Egitos, travaram intensa batalha nos arredores de Argos. Porém, com um falso tratado de paz, as cinqüenta filhas de Dânaos casaram-se com os cinqüenta filhos de Egitos, e foram estes quase todos assassinados, restando apenas Linceus, que foi poupado por sua esposa Hipermnestra. Então, temendo a ira de Dânaos, Linceus e Hipermnestra puseram-se em fuga e, mais tarde, empreenderam guerra contra o tirano. Quando o jovem Abas anunciou a morte de Dânaos a seu pai Linceus, foi recompensado com o famoso escudo do rei seu avô, consagrado a Héra. Abas tornou-se um magnífico guerreiro e de tal sua fama, que bastava mostrar seu escudo para provocar tumulto e fuga aos inimigos.

Nas suas andanças e conquistas, Abas fundou uma cidade na Fócida e chamou-a Abas (Abai), tornando-se herói epônimo dos abantes da região. E fundou também a cidade de Árgos, na Tessália.

Reinou 23 anos e foi sucedido em 1.360 a.C. Abas, antes de morrer, legou seu reino a seus dois filhos mais velhos ordenando que governassem alternadamente. E transformou sua ordem em lei.

Depois, entregou sua alma a Caronte.

Segundo as pesquisas de Jerônimo de Stridon, em seu reinado, em seu segundo ano, ocorreu a fuga de Frixos e Héle; no nono ano, Sethus tornou-se faraó, o primeiro da décima-nona dinastia do Egito; ainda no nono ano, Cadmos foi expulso de Tebas, e Anfíon e Zétos tornaram-se reis; no décimo ano, ocorreu os eventos do mito de Procne e Filómele; no décimo-quarto ano, ocorreu a guerra entre Erecteus e Eumolpos; no décimo-sétimo ano, o vidente Melampos tornou-se conhecido; no décimo-nono ano, Trós iniciou seu reinado na Dardânia, que mais tarde daria lugar à fortíssima cidade de Tróia; no vigésimo-segundo ano, em Delfos, a profetisa Phemónoe foi a primeira a cantar o futuro em versos hexâmetros.