Mitologia vs Mídia

Perseus manteve-se calado, mesmo querendo dizer qualquer coisa, mas Hermes continuou:

— Sei que achas tudo muito estranho, mas sê paciente e ouve com atenção o meu plano, pois morrerás se esqueceres as minhas palavras: rumo ao Norte, ao país dos Hiperbóreos, junto às fontes do frio vento Bóreas, há três velhas feiticeiras que todos os que conhecem as chamam de Gréias, filhas do deus Fórcis. São irmãs das Górgonas. Disse-me meu pai, o senhor do Olimpo, que elas já nasceram de cabelos grisalhos. Chamam-se Pefredo, Ênio e Deino. Acredita no que te digo: elas só possuem um dente e um olho, dos quais elas dividem, uma por sua vez. Tu tens que procurá-las; e, no momento em que uma for passando o olho para a outra, tu tens de agarrá-lo. Elas ansiarão por agarrar-te, por isso, tens que tomar cuidado, deves manter distância segura — e tu poderás impor condições, já que só elas conhecem o lugar onde as Górgonas habitam.

— Que condições tu te referes?

— Basta uma. Que indiquem o caminho que leva à mansão das Ninfas do Estige, filhas do grande Hésperos, que dançam em torno da árvore dourada, possuidoras dos objetos necessários para a vitória sobre a Górgona.

— Que objetos? Explica-me melhor.

— A coifa de Hádes, que torna invisível quem a põe na cabeça; as talares, sandálias aladas para que tu possas alcançar o teu objetivo mais rápido possível; e um surrão sagrado.

— E... para que servirá o surrão?

— Não é um surrão comum. Trata-se de um kibisis. Foi feito do couro da cabra Amaltéia, a ama de Zeus. Ele é próprio para conduzir a cabeça de Medusa depois de decepada. Faze tudo como digo, que irás cobrir-te de fama com um dos feitos mais prodigiosos destes tempos. Ah! E tu vais precisar de uma espada especial. Toma!

E, desfazendo-se de sua espada curta e curva que trazia, explicou:

— É meu herpé. Pertenceu a Cronos, quando usou-a para ferir Úranos, no começo dos tempos. Vais precisar. A folha desta espada tem uma têmpera excelente e corta o aço e o ferro como um talo macio. Somente com ela poderás cortar a pele da Górgona.

E, oferecendo-lhe a mão, ajudou Perseus a levantar, dizendo-lhe:

— Vamos lá, Perseus! Não temos tempo a perder!

— Aonde vamos?

E disse-lhe Atena:

— Para a Hélade!

— Mas não poderei despedir-me de minha mãe e de Díctis? E não farei sacrifícios para vós e para Zeus, o pai celestial?

Atena disse-lhe:

— Não deves despedir-te de tua mãe, pois teu coração se enternecerá diante do seu pranto. Eu a confortarei, assim como a Díctis, até que regresses em paz. Não precisas queimar oferendas aos deuses do Olimpo; pois a tua oferta será a cabeça de Medusa.

Perseus estava radiante. Nunca um socorro divino chegara em momento mais oportuno. Desejava ir o mais rápido possível para a casa de Díctis encontrar sua mãe e seus amigos. Pensava armar-se e vestir alguma armadura de guerra, despedir-se da inconsolável mãe. Mas seus tutores eram seus amigos e companheiros, e devia fazer tudo conforme lhe diziam.

Hermes deu meia volta e pôs-se a caminhar a passo leve e ligeiro, e Perseus foi atrás, fazendo o possível para acompanhá-lo. E, enquanto caminhava, ou melhor, corria, ia observando o deus, e só agora notava os detalhes: ele tinha asas dos lados da cabeça, embora, vistas de frente, não parecessem asas, mas parte do gorro. O tal bastão trançado, o Caduceu, parecia ajudá-lo a marchar. Era veloz! Perseus mal podia acompanhá-lo. Hermes, olhando para trás, viu Perseus cambaleando pelo cansaço, e lembrou-se que ele não era um deus. Hermes passou-lhe o bastão.

— Tu vais precisar disto mais do que eu.

De fato, mal recebeu o bastão, Perseus tornou-se muito mais ágil e cheio de força. Parecia até que voava.

Chegando na praia, Hermes tomou a forma de um homem comum, e ambos se aproximaram. Enquanto rumavam para o norte, o deus contava-lhe suas histórias, para distraí-lo das preocupações, suas aventuras pelo Céu e pela Terra.

— E Atena tua irmã? Onde ela está? Não vem conosco?

— É tua irmã também, Perseus... Chegada a hora, tua verás! Vais gostar muito dela. Ela é um verdadeiro gênio. Sabe as coisas... tem uma inteligência fabulosa, rara entre os deuses. Difere-se muito do nosso irmão Áres, que só pensa em arrumar encrencas, sem medir conseqüências... Ela é tudo, só não é divertida como eu. Leva tudo muito a sério. Ela será a responsável pela derrota de Medusa, entendes?

— Acho que sim. E para onde vamos agora?

— Para o país das Gréias, as bruxas que podem dizer-nos onde Medusa se oculta.

AS BRUXAS GRÉIAS

Assim, Hermes e Perseus, com o Caduceu mágico, iniciaram a jornada a pé enxuto sobre terras e mares; e seu coração pulsou, jubiloso, pois as sandálias aladas o sustentaram durante sete dias de viagem. Passaram por Citnos, Céos e pelas aprazíveis Cíclades, a caminho da Ática; no entanto, sentindo a real necessidade de realizar um sacrifício a Zeus, pediu a Hermes para descer na Argólida e, sobre o monte Apesa, perto da estrada para Corinto, ergueu um pequeno altar e sacrificou um carneiro ao rei do Olimpo.

Em seguida, alçaram voo e passaram por Atenas e por Tebas, pelo lago Cópais, e pelo vale do Céfisos, e, mais adiante ainda, pelos picos do Oeta e do Pindos, e pelas ricas planícies da Hemônia, até que deixaram atrás as colinas ensolaradas da Hélade e defrontaram os desertos do norte. Transpuseram as montanhas da Trácia e muitas tribos bárbaras, peônios, dardânios e tríbalos, até alcançarem o rio Istros e as melancólicas planícies da Cítia. Sobrevoaram o Istros e continuaram a seguir através de charnecas e pântanos, noite e dia, na direção do gelado noroeste, sem se desviar nem para a direita, nem para a esquerda, e finalmente chegaram à Terra Informe, atingindo os limites da Noite eterna, onde vivia Fórcis, gerador de alguns dos monstros mais terríveis da Terra. Nem o Sol nem a Lua jamais brilhavam sobre aquele lugar. Uma paisagem de ínvias florestas e rochas tinha ali o seu começo; chamava-se também Cistene, a Terra das Rosas da Rocha, e poderia ser alcançada igualmente pelo leste. Era a terra das trevas, que somente as Moiras e as próprias Gréias conheciam.

Anoitecia. Estavam agora num lugar inteiramente deserto, silvestre, mas bem perto da praia, coberto de um matagal rasteiro, e tão solitário e silencioso que parecia nunca ter sido habitado.

— Estamos longe ainda?

— Silêncio. Estamos no lugar e na hora de encontrar as três bruxas. Cuidado... ë um olho só para as três, mas é o suficiente para que possam te agarrar... Temos que esperar a troca do olho mágico. Daí, damos o golpe. Por mais terríveis que pareçam, são frágeis sem o seu olho mágico.

Não havia, ao derredor, nem uma borboleta, nem um pouco de musgo nos rochedos. Nem mesmo as focas, ou as gaivotas, ousavam aproximar-se, com medo de que o gelo as retivesse para sempre. As ondas alteavam-se em espumas e novamente caíam sob a forma de flocos de neve.

Chegando na entrada da gruta, Perseus e Hermes viram-nas examinando um ponto de tricô, enquanto dividiam um olho em forma de bola de cristal, por onde enxergavam, enquanto fervia, bem perto delas, uma caldeirão de onde emergiam borbulhantes membros de alguma vítima humana que havia acabado de cair em suas mãos. Era quase a hora do jantar.

Perseus reparou os seus longos e cinzentos cabelos. Tinham escamas pelo corpo e escondiam-se, em suas costas, asas de ouro. Eram muito feias. Duas delas tinham na testa uma órbita vazia e deviam sentir-se, naquele momento, numa dupla e terrível escuridão. Mas sentiu que seu sangue gelava nas veias ao ver o cinzento do olho da terceira bruxa. Não ousava aproximar-se, e permaneceu escondido atrás de uma moita, ele e o deus Hermes. Mas, para atrair a atenção das velhas, Perseus atirou uma pedra na entrada da gruta, o que chamou a atenção da que estava com o olho.

— Que ruído foi esse?

Ela tentou identificar o ruído, tentando avistar algo ou alguém que tivesse produzido aquele ruído.

— Irmã, estás demorando muito com esse olho. Agora é a minha vez.

— Espera um pouco. Parece que eu vi alguma coisa se mexendo atrás daquela moita.

— E daí? Será que eu também não posso ver? Será que o olho não funciona comigo? Essa não... Tu estás é querendo me embrulhar. Passa o olho..!

Perseus compadeceu-se delas e, ainda oculto, disse:

— Veneráveis mães, a Sabedoria é filha dos Anos. Deveis saber muitas coisas. Indicai-me, caso esteja ao vosso alcance, o caminho que leva às Górgonas.

E uma delas gritou:

— Quem está criticando a nossa idade?

E outra complementou:

— Essa voz pertence a um filho dos homens.

— Não estou criticando, senhoras, mas respeito a vossa idade avançada, e sou um dos filhos dos homens e dos heróis. Os senhores do Olimpo mandaram que vos procurasse, a fim de que me ensineis como encontrar Medusa e suas irmãs.

— Há novos senhores no Olimpo e todas as coisas novas são más.

E respondeu outra:

— Detestamos teus senhores, os heróis e todos os filhos dos homens. Somos parentes dos Titãs, dos Gigantes, dos antigos monstros das profundezas e irmãs mais velhas das Górgonas.

E a terceira perguntou:

— Quem és tu, temerário e insolente, que te intrometeste no nosso mundo sem ter sido convidado?

E a primeira completou:

— Nunca houve, nem haverá um mundo como o nosso; se permitirmos que o vejas, o estragarás completamente.

E uma delas gritou:

— Dá-me o olho para que eu possa enxergá-lo!

E a terceira bruxa também estava cansada de coçar o buraco vazio na testa.

— Não senhora! Agora é a minha vez! Só me entregam o dente. Faz mais de um ano que sou tapeada!

— Tu tens coragem de dizer uma coisa dessas, megera?

— Quem é megera, velha caolha? Egoísta! O olho não é só teu, é de todas nós!

A discussão foi aumentando. Enquanto isso, Hermes sussurrava:

— Um homem faminto não pode perder tempo. Se ficares aqui emendando palavras, morrerás à míngua. Espera o momento certo. Te dou o sinal...

Foi então que uma delas, indignada, arrancou o olho da testa e atirou às irmãs que lhe enchiam a paciência.

— Pois então pega, bofe!

As outras duas, sem nada enxergar, estenderam as mãos, cada uma querendo pegar o olho para poderem ver.

— É agora, Perseus! Pega o olho!

De um salto, agarrou o olho mágico antes ele que caísse nas mãos das Gréias. O olho maravilhoso, ao passar-lhe para a mão, cintilou, mais brilhante que nunca, que parecia olhá-lo com ar de inteligência, como se o olho tivesse piscado para Perseus, enquanto as velhas cinzentas agitavam as mãos e se entrebatiam, ignorando ainda o que havia acontecido. Gritavam histéricas e incomodadas. Falavam ao mesmo tempo e não conseguiam se entender. Só Perseus se impôs:

— Basta de discussões, velhas tontas! Agora é tarde. O olho está comigo.

— Como te chamas, ladrão de olho?

— Quando eu devolvê-lo, sabereis.

As velhas ficaram desesperadas. Pelo buraco vazio de cada testa desciam lágrimas amargas.

— Bandido!

— Miserável!

— Vamos ficar aqui para o resto da vida?

O deus Hermes se divertia. Não parava de rir. Mas conseguiu dar um tempo para aconselhar Perseus sobre o caminho que levava à morada das Ninfas.

— Vou restituir o olho. Para que quero isto se tenho dois olhos sadios?

— Devolve para mim, querido.

— Para mim, que eu te dou um beijinho.

Hermes gargalhou e, ao ver que Perseus amolecia, pois via diante de si, num passe de mágica, uma bela mulher, disse-lhe:

— Cuidado com essa, amigo, cuidado...

Perseus esfregou os olhos e voltou a si. Outra propôs:

— Dá-me o olho, que eu te dou um abraço.

Perseus, um pouco amedrontado, e percebendo que elas se aproximavam, passo a passo, disse-lhes:

— Dispenso tudo isso. Quero apenas um informação. Jogarei o olho no mar, a não ser que me indiqueis o caminho para onde desejo ir.

— Fala, meu filho!

— Deveis ensinar-me o caminho para a mansão das Ninfas... Ninfas...

Perseus olhou para Hermes, que completou:

— Hespérides.

— Isso! Ninfas Hespérides!

— Quem? Hespérides? Não as conhecemos...

— As Ninfas que têm as sandálias aladas, o surrão mágico, o capacete da invisibilidade...

— Vede, minhas irmãs, ele está sonhando.

— É, nada sabemos sobre essas tais Ninfas...

— Diz logo que não queres devolver. Jamais ouvimos falar dessas Ninfas, monstro sem coração, que não tem pena de deixar nas trevas três pobres velhinhas...

Perseus hesitou, estava confuso. Começava a acreditar em suas palavras, já que continuavam negando, e até choravam.

— Ai de mim. Vou ter que pedir esmolas nas estradas.

— Se eu soubesse, juro que ensinava. Eu sou a bruxa mais infeliz deste mundo. Já não tinha nem um cabo de vassoura para me apoiar. Agora, nem tenho olho... Meu destino é acabar uma velha desamparada...

A terceira bruxa ia se aproximando de mansinho, tateando no escuro da noite e na treva da sua cegueira.

— Tem pena de mim, meu filho. Me segura. Acho que estou-me sentindo mal.

Perseus já ia correr em sua ajuda, quando Hermes agarrou-o pelo braço.

— Estás maluco? Não sabes quem é essa megera? Conta pra ele, velhinha... Diz que teu abraço é mortal e quebra os ossos de tuas vítimas...!

— Mas nada sabem. É melhor devolvermos o olho e irmos embora.

Hermes puxou-o para um lado e sussurrou-lhe:

— Tu não queres cortar a cabeça de Medusa?

— Claro que quero! Mas é que...

— Então arranca a informação que tu precisas. Se não encontramos as Ninfas, tu jamais conseguirás te aproximar da Górgona sem virar estátua de mármore. Sê duro de coração e arranca a informação!

Foi então que Perseus insistiu ainda mais para que dissessem o que ele queria saber. E nada responderam.

— Pois bem, vou embora. Levarei o olho comigo para lembrar-me sempre de ter-vos visto um dia. Adeus!

— Espera! Acho que estamos nos lembrando!!!

— Sim... as Hespérides!

— Não são aquelas que guardam os objetos mágicos dos deuses? Sim, eu me lembro... Mas para que precisas?

— Para vencer Medusa, a mais terrível das Górgonas!

— Nunca!!! Jamais te diremos! Não poderás nos obrigar a entregar nossas irmãs!

— Cala-te, irmã, não vês que ele está com nosso olho?

Perseus procurou convencê-las, como uma nova tentativa.

— Medusa tem feito desgraças demais a muita gente. Se eu conseguir matá-la, farei um grande bem ao mundo e aos deuses!

As três Gréias conferenciaram entre si, aos cochichos, e por fim concordaram.

— Pois não há mais dúvida. Vamos revelar o caminho para a mansão das tais Ninfas, e tu promete-nos restituir o nosso olho... Sem ele nada somos e nada fazemos.

— Assim será. Juro pelo Estige!

— Tresloucado jovem, deves caminhar para o sul, debaixo da hedionda luz do Sol, até encontrares Átlas, o gigante que sustenta o céu sobre os ombros, separando-o da Terra. Informa-te com as filhas, as Hespérides, que são jovens e loucas como tu. E, agora, restitui-nos nosso olho, pois de nada mais nos lembramos.

Perseus não entendeu, mas Hermes fez-lhe um sinal de que sabia onde ficava.

Quando se convenceu de que elas não haviam mentido, Perseus cumpriu a palavra. Com o maior respeito, aproximou-se e colocou, muito gentilmente, o olho precioso na órbita vazia de uma delas, a menos agressiva, não sem agradecer muitas vezes a indicação que haviam dado. As outras, inconformadas, protestaram.

— Agora é a minha vez!

— Não, é a minha!

Perseus, temendo ser atacado pelas mais vorazes, saiu às pressas, atrás do deus Hermes, que já havia saído. O herói tomou o Caduceu e seguiu o deus rumo ao Ocidente, para o país das Ninfas Hespérides.

Então, as bruxas, tomando juntas o olho mágico, inclinaram as cabeças e adormeceram profundamente, transformando-se em blocos de gelo, que uma onda, invadindo a gruta, carregou. E ficaram flutuando para sempre sobre o mar, desfazendo-se em lágrimas ao encontrar o Sol, o estio e o quente vento do sul.

AS NINFAS HESPÉRIDES

Medusa, a “senhora”, abusava de seu poder, porque, até então, só heróis pouco astutos tinham ido combatê-la, inclusive os guerreiros de Thule, país onde as Górgonas passaram a viver depois de devastá-lo. Atacavam-na como se atacassem uma fera qualquer — e eram reduzidos a estátuas de pedra. Por isso, os Olímpicos facilitavam o caminho de Perseus.

Mas o caminho para a mansão das Hespérides era dos mais complicados. Ambos rumaram para o sul, deixando para trás as regiões geladas; passaram pela ilha Hiperboreana, pelas ilhas de estanho, e pela longa praia Ibérica, onde habitavam os povos mais estranhos e longínquos do Ocidente.

Enquanto de dia acompanhavam-nos andorinhas e gaivotas, à noite as Ninfas do mar cantavam suavemente e os Tritões sopravam seus búzios, brincando ao redor de Galatéia, sua rainha, que descansava num carro de conchas nacaradas.

Hermes e Perseus deslizavam pelas vagas como gaivotas, sem nunca sentir-se fatigados. Atravessaram o mar, mas, para chegarem ao seu destino, era preciso atravessar um grande deserto de areia e montanhas, onde Átlas padecia. Porém, após cruzar os ares por sobre essas complicadas regiões, seguindo as explicações das Fórcides, as Gréias, achegaram-se à praia, que dava para o Oceano, e tiveram que tomar o barco encantado do Sol, única forma segura de encontrar a Ilha das Hespérides. Depois de um bom tempo, avistaram um grupo de ilhas. Apostaram numa delas, Antília. Seguindo por um caminho inóspito, entre vales e cascatas, árvores majestosas e estranhas flores e fetos, chegaram num grande pomar, onde começaram a ouvir vozes melodiosas, e compreenderam que haviam chegado ao jardim das Ninfas. E lá encontraram-nas, eram em número de sete e chamavam-se Egéria, Clete, Ciparissa, Cinosura, Hésperis, Hespéria e Aretusa (ou Hesperetusa).

Perseus ficou admirado com a beleza das Ninfas, cada uma com o seu par de olhos cintilantes, com ares de bondade e tranquilidade. Cantavam como rouxinóis por entre as moitas, sem ao menos compreender o que cantavam. Dançavam de mãos dadas ao redor da árvore encantada, que se curvava sob o peso de magníficos Pomos de Ouro. E um enorme dragão parecia enrolado aos pés da árvore, já que só conseguiram distinguir uma pequena parte da cauda. A cabeça devia estar distante, em outro lugar, procurando por alguma presa.

Então Perseus estacou, não porque temesse o dragão, mas porque se sentia tímido diante daquelas formosas criaturas; porém, ao vê-lo, elas também se detiveram e chamaram-no com vozes trêmulas:

— Quem és? Héracles, o possante, que deveria vir até nós para apanhar os Pomos de Ouro?

— Perdoai-me, donzelas, mas não sei quem é esse Héracles e não quero vossos Pomos de Ouro. Meu nome é Perseus, e este é meu amigo...

E, de súbito, reconheceram Hermes, o deus-mensageiro de Zeus, e cumprimentaram-no.

— Salve, Hermes, o deus-mensageiro de nosso senhor Zeus.

Só então Perseus entendeu que Hermes já sabia desse lugar desde o início, mas não retrucou visto que percebia passar por um teste e merecia êxito nessa aventura.

E pediu às Ninfas:

— Ensinai-me somente, encantadoras Ninfas, o caminho que conduz às Górgonas, a fim de que eu possa prosseguir a minha viagem e enfrentá-la.

— Ainda não, belo mancebo; vem dançar conosco em torno da árvore, neste jardim que não conhece o Inverno, morada do Vento Sul e do radiante Sol. Aproxima-te e diverte-te conosco um pouco; aqui dançamos há mil anos, e nossos corações anseiam por um companheiro. Vem, vem...

— Não posso dançar convosco, não agora, pois estou a serviço dos Imortais. Mostrai-me o caminho que leva a Medusa, a fim de que eu não me extravie e pereça nas ondas do Oceano.

Então elas suspiraram e choraram. Depois disseram:

— A Górgona! Ela te transformará em pedra.

— Será melhor morrer como um herói do que viver como um boi no curral. Os Imortais emprestaram-me armas e dar-me-ão inteligência para usá-las.

Hermes contou a aventura que acabavam de viver e falou da terrível aventura que Perseus teria que enfrentar, pedindo-lhes auxílio.

— Perseus necessita de vossa ajuda. É filho de Zeus, e os deuses olham por ele.

Então elas novamente suspiraram:

— Belo jovem, se desejas ir ao encontro da tua ruína, faze-o. Não conhecemos o caminho para chegar ao país onde vive Fórcis e suas filhas, as Górgonas; mas deves indagar do gigante Átlas, lá no cume da montanha, carregando o firmamento, e pode enxergar através dos mares, muito ao longe, no País Informe.

Com a maior boa vontade, resolveram atender o pedido do deus, tanto que já haviam recebido ordem de entregar os objetos ao primeiro mortal que ali chegasse. Em primeiro lugar, entregaram-lhe o que parecia ser uma bolsa pequena, feita do coro da cabra Amaltéia, primorosamente bordada.

— Não deves perdê-la, jovem semideus. Este é o Kibisis, o surrão encantado.

Perseus amarrou a bolsa ao cinto.

Em seguida, deram-lhe um par de sandálias com um lindo par de asas presas na sola das mesmas.

— Calce-as; são as Talares.

Disse-lhe o deus Hermes. E continuou:

— Tu vais te sentir tão leve que o resto da viagem vai parecer um passeio.

Perseus calçou a primeira e deixou a outra no chão, ao seu lado. De repente, viu que esta abria as asas e dava um salto. E teria desaparecido, se Hermes não tivesse dado um salto ainda mais rápido, agarrando-a e conduzindo-a de volta ao chão.

— Toma mais cuidado, Perseus. Tu já pensaste no susto que as aves levariam, vendo uma sandália voando sozinha?

Perseus calçou-a então. Teve uma sensação maravilhosa. Deu um primeiro passo, deu o segundo e, de repente, sentiu-se flutuando, todo desajeitado, procurando equilibrar-se, enquanto Hermes não parava de soltar gargalhadas.

— Não te apresses, Perseus! Espera um pouco! Ainda falta o mais importante!

Foram todos até o gigante Átlas, a fim de saber dele onde ficava a morada das Górgonas. Encontraram o gigante no cume de uma enorme montanha, que tinha outra quase do mesmo tamanho, em sua frente; ele estava de joelhos, pois sentia-se cansado, sustentando o céu sobre os ombros.

Interpelaram-no e respondeu com brandura, apontando o dedo para a direção a que se referia:

— Vejo as Górgonas numa ilha situada muito ao longe, é Thule, no extremo-norte do mundo; mas este jovem nunca poderá aproximar-se delas, a não ser que leve consigo a coifa da Escuridão, que torna invisível a quem quer que o use.

Perseus já ouvia falar desse objeto, da boca de Hermes, e indagou:

— Onde está a coifa e como posso apoderar-me dele?

O gigante sorriu:

— Não ouviste direito; pertence a Hádes, e usou-o na guerra contra os Titãs, e eu aqui fui parar por ter-me rebelado contra os deuses. Nenhum mortal pode apoderar-se da coifa, pois se encontra nas profundezas do Inferno, nas regiões dos mortos. Mas as Ninfas têm permissão para lá entrar, caso me prometas uma coisa e a cumprires.

Perseus prometeu; e o gigante disse:

— Quando voltares com a cabeça de Medusa, mostra-me seu terrível rosto, a fim de que eu deixe de sentir e de respirar e converte-me numa rocha para todo o sempre; pois separar Céus e Terra é um trabalho muito pesado para qualquer ser, mortal ou imortal.

Perseus novamente lhe deu a palavra. E a mais velha das Ninfas Hespérides desceu por uma escura caverna entre os rochedos, da qual saíam fumaça e trovões, sendo, como era, uma das portas do Inferno.

Perseus, Hermes e as Ninfas ficaram esperando durante sete dias, ansiosos, até que finalmente a ninfa mais velha regressou; tinha o rosto pálido e a luz ofuscava-lhe os olhos, pois muito se demorara na soturna região das trevas, mas trazia na mão a coifa encantada. E apresentou-lhe o capacete coroado por um formoso penacho de plumas, procurando colocá-lo na cabeça de Perseus.

— Por que isso?

Hermes já sabia, e tratou ele mesmo de responder.

— É o elmo de Hádes, a coifa da invisibilidade, presente dos Cíclopes ao deus na época da Titanomaquia.

Aconteceu então a coisa mais fabulosa. Mal as Ninfas colocaram o capacete em sua cabeça, e Perseus desapareceu ali mesmo. Hermes, percebendo que Perseus havia-se deslocado um pouco, perguntou:

— Onde estás, Perseus?

— Aqui, ora essa! Não me vês?

— Não.

— Eu só dei alguns passos. Continuo aqui... Estás brincando comigo?

— Não te importes, amigo. Não te vejo, pois estás invisível até mesmo ante os olhos dos Imortais. Se eu não te vejo, muito menos as Górgonas te verão.

— Perfeito!

— Então vamos partir. Agora não há mais problema, contanto que tu te equilibres bem nessas sandálias... Ah! outra coisa! Procura manter segredo sobre este lugar, que poucos Imortais conhecem. Estes pomares pertencem à deusa Héra, um presente de casamento. Haverá o dia em que um descendente teu virá para este lugar a fim de colher os pomos da deusa, e jamais revelará este lugar. Tu o sabes e contigo há de ficar.

Dizendo essas palavras, o gorro de Hermes abriu as asas, como se a cabeça fosse voar.

Então, as Ninfas beijaram Perseus e choraram-no durante muito tempo; porém ele estava impaciente para tornar a partir...

Levantou-se seu corpo de Hermes no ar, e fez o mesmo Perseus, ainda que meio desajeitado.

— Genial! Agora que eu vi como é bom ser passarinho...

E começaram o seu voo rumo ao norte, para além da região dos Atlantes e do Oceano.

AS GÓRGONAS

Perseus e Hermes voavam juntos, rumo a Thule, no extremo norte-ocidental do mundo. Sobrevoavam as regiões bárbaras da Ibéria, atravessaram as montanhas frias da Europa e alcançaram as praias que davam para o Oceano.

Em dado momento, Perseus julgou ouvir um ruído estranho, como o roçar de um vestido. Voava ao seu lado sem ninguém que o vestisse.

— De quem é esse vestido que se mexe ao meu lado, como se fosse uma brisa?

— É de minha irmã. Eu não te falei que ela ajudaria?

— É... ela deve ter-nos visto...

— Não. Tu estás invisível, graças ao gorro de Hádes. Não te vejo, mas sinto tua presença. Entretanto, Atena vê tudo e tu continuas perfeitamente visível para ela.

Continuaram voando. Mas não foi fácil prosseguir tranquilamente. Passaram por inúmeras dificuldades, pois Poseidon tentou impedi-los de lá chegarem. Perseus só conseguiu graças ao auxílio de Atena, que o acompanhava e protegia. Poseidon tentara impedi-lo, lançando turbilhões de água para derrubá-lo, ou ondas fortíssimas, muito altas, para agarrá-lo. Atena, pegando sua mão, fez os turbilhões perderem-se no ar, e as ondas se quebrarem nos penhascos da praia, formando largas franjas de espumas. O mar rugia e o fragor das ondas lembrava o trovão. Foi no meio desses ruídos que Hermes ouviu uma voz doce e melodiosa, quando já caía a Noite.

— Ouve, é o canto das Górgonas. Devem estar dormindo...

— Elas cantam dormindo?! Não consigo ouvir...!

E Atena, invisível a Perseus, disse-lhe:

— Vê as costas daquela ilha, lá embaixo. Chegamos em Thule.

— Eu não disse, Perseus? Eu sabia que ela seria a primeira a avistar a ilha e ouvir o canto das Górgonas... Lembram as Sereias e as Hárpias, tão terríveis como elas...

Perseus prestou melhor atenção. E avistou alguma coisa, no horizonte, que lembrava uma ilhota. Ao aproximarem-se, viram o mar quebrando-se em espuma à volta de sua costa rochosa, exceto num dos lados, onde havia uma praia de areia muito branca.

Desceram em terra firme. Logo, começaram a seguir as vozes melodiosas. Vinham das montanhas, onde ficava a cidade dos túlios, um povo desconhecido das populações que habitavam o sul da Europa, desde a Ibéria às costas da Ásia, do qual só se ouviam vagas e fabulosas histórias a seu respeito. Subiram uma colina e avistaram a cidade, que parecia abandonada, mas de lá vinham as vozes. E Atena observou:

— Estão dormindo...

— Os túlios?

— Não, as Górgonas. A cidade está abandonada, e o doce canto é o ronco das Górgonas.

Perseus ficou admirado, pois acreditava que seriam belas, como as Ninfas, pelo seu canto. Mas horríveis pelas suas histórias. Os três desceram a colina, que ficava junto às fontes do Oceano, e entraram na cidade em ruínas e, logo no portão de entrada, as primeiras figuras petrificadas. Perseus sentiu seu coração saltar pela boca ao ver que cada habitante de Thule estava, em posição e expressão de espanto e terror, transformado em pedra ou mármore, como se cada um tentasse fugir ou defender-se. Era um cenário horrível!

— Infelizes.

Caminhando com muita cautela, Perseus começava a tremer as pernas, quando Atena lhe passou seu escudo.

— Toma. Vais precisar. E acende uma tocha.

Perseus acendeu uma tocha que estava presa à parede. Entraram no templo sombrio, todo em ruínas, onde encontraram várias outras figuras petrificadas, entre as quais guerreiros, velhos sacerdotes e sacerdotisas. Todos com aspecto de espanto e terror, todos transformados em pedra ou mármore.

De repente, pondo em sua cabeça o elmo de Hádes, conseguiu Perseus ver as terríveis Górgonas. Estavam deitadas, profundamente adormecidas, embaladas pelo rouco rugir do mar. Elas só conseguiam dormir com aquela música estranha, que enlouqueceria qualquer mortal. A luz da Lua, que entrava pelas janelas, cintilava sobre as escamas de aço e as asas de ouro. As garras de bronze seguravam-se na rocha, enquanto os terríveis monstros pareciam sonhar. As serpentes dos cabelos pareciam estar dormindo também, embora uma ou outra vez algumas se retorcessem ou levantassem a cabeça, pondo à mostra a língua negra, como se saíssem de um pesadelo. Eram ainda mais terríveis que a própria descrição que delas faziam: Euríale representava a perversão sexual, Ésteno, a perversão social, e Medusa, a pulsão espiritual e evolutiva, mas pervertida em frívola estagnação.

Perseus evitava olhá-las de frente, ainda invisível com o gorro de Hádes na cabeça. E Hermes sussurrou-lhe ao ouvido:

— Aproveita agora. É a tua oportunidade. Se uma delas acordar, tu estás liquidado!

— Qual delas é Medusa? As três parecem iguais... Vou ter que me tornar visível para saber qual delas...

Perseus retirou o capacete de Hádes e pôde ver qual das Górgonas não era invisível.

— É a que está começando a mexer-se. Cuidado...! Nada de olhá-la de frente. Observa a imagem de seu rosto e de seu corpo através do escudo. E põe a coifa em tua cabeça para não seres descoberto!...

Na superfície polida do escudo podia olhar sem perigo o reflexo do rosto de Medusa, com as serpentes a se retorcerem fronte abaixo. Mas se surpreendeu, pois via, através do escudo, uma criatura belíssima e triste, apesar das serpentes que sibilavam em sua cabeça. Nunca, antes, Perseus vira nada mais extraordinário. Nem outro ser vivo até então. O monstro se agitava, todo encolhido, rangendo os dentes. Ela se agitava desassossegadamente, como se tivesse um pesadelo, e Perseus dela se apiedou. Sua plumagem era igual ao arco-íris, e seu rosto lembrava o de uma ninfa; apenas conservava as sobrancelhas contraídas e os lábios comprimidos por cuidados e mágoas; e a brancura do seu pescoço tão bem se refletia no espelho, que Perseus não teve coragem para feri-la.

Hermes, vendo-o vacilar, alertou-o:

— Não te enganes, Perseus...

E Atena previniu-o:

— Desfere o golpe com calma. Não tira os olhos do escudo. Guia-te por ele, ao baixar, e que o teu golpe seja firme e certeiro, sim?

E o deus-mensageiro deu o sinal:

— É agora! Desfere o golpe!

E Perseus levantou o braço e a espada de Hermes. Porém, viu que uma de suas irmãs, invisível — não para ele — aproximava-se. Rapidamente aplicou um golpe certeiro no monstro e cortou-lhe a cabeça. Sangue verde espalhou-se por toda a caverna, e teve que elevar-se no ar para não morrer. Perseus afastou-se e, ao notar que outra górgona avançava e seguido pelo poder de Atena, arremessou sua lança contra ela, tirando-lhe a vida, e um urro saiu-lhe pela bocarra. Uma das patas do monstro o atingiu, e Perseus perdeu o equilíbrio. Seu capacete despencou no chão, voltando a tornar-se visível. O ruído despertou as serpentes, que começaram a sibilar, e a górgona, agitando-se, desdobrou as asas e deixou ver as suas garras de bronze, e seu rosto desfigurou-se num medonho ser.

— Ah! jovem atrevido!

Um vento forte soprou de repente e sua tocha apagou-se, mas o brilho dos olhos da Górgona iluminou o templo sombrio. E, parecendo um cego, tateando o caminho com a ponta da espada, quis voltar o olhar para não ser surpreendido, mas Atena gritou:

— Perseus! Levanta o escudo, protege-te!

Perseus protegeu-se atrás do escudo e viu Medusa refletida, que se aproximava demais, e sentiu que duas garras poderosas lhe pegavam com força, e o escudo caiu de sua mão e foi rolar para longe de seu alcance. Quase ao mesmo tempo um golpe forte se abateu sobre suas costas, surpreendendo-o e fazendo com que caísse de bruços e quase sem sentidos ao solo. Sua espada voou de sua mão direita.

Ainda atordoado, Perseus sentiu que duas mãos vigorosas viravam seu corpo de frente. Depois, as mesmas mãos ásperas agarraram sua cabeça e a sacudiram vivamente, ao mesmo tempo em que falava docemente:

—Vamos, querido, acorda!

Seus olhos começavam a se abrir, pensando por um momento estar dentro de um sonho, quando Atena lhe enviou uma mensagem mental:

— Jamais enfrentes o olhar de Medusa... pois será o teu fim!

Apertando suas pálpebras, Perseus manteve a vista fechada, enquanto tentava se desvencilhar dos braços rijos da monstruosa criatura. Uma voz rouca gritava, agora de maneira histérica, em seus ouvidos:

— Abre os olhos, guerreiro, e contempla meus olhos!

Perseus, com os olhos fechados, sentiu na boca a pressão dos lábios úmidos de Medusa. O hálito frio e fétido que aspirou lhe deu a ideia de que a própria Morte o estivesse beijando. Percebendo que tinha o joelho livre, encolheu-o até a altura de seu peito e com ele arremessou para longe a Górgona, com tamanha força que ela cruzou a extensão até a parede oposta, bela batendo violentamente.

Uma golfada de sangue verde foi expelida pela boca fétida de Medusa, juntamente com um grito selvagem. Atordoada pelo impacto, agora era a vez de ela tentar recobrar os sentidos.

Perseus, pondo-se ligeiramente em pé, divisou o brilho de seu escudo, alguns metros dali. Tão logo o teve outra vez, ergueu-o tentando ver pelo reflexo prateado o que se passava com a criatura. Uma forma vagamente feminina vinha em sua direção. Não teve tempo de ver o rosto de Medusa, pois com um salto ligeiro desviou-se do bote, lançando-se ao chão, mantendo sempre preso ao braço o seu precioso escudo.

E gritou a Górgona:

— Morrerás como todos os outros, e colocarei depois a tua estátua bem no centro de meu templo!

Perseus manteve silêncio, concentrado apenas nos movimentos de Medusa, que continuava a mover-se ora arrastando-se ora aos saltos. Para o herói era extremamente difícil enfrentar uma adversária tendo de estar sempre de costas voltadas para ela, observando-a apenas pela refração do escudo.

Por um instante a criatura desapareceu, até que o rosto inteiro de Medusa surgiu repentinamente no espelho que Perseus tinha diante dos olhos. Seu rosto pálido era uma máscara de onde sobressaíam dois olhos de pupilas horizontais, como os répteis, e que brilhavam como o Sol. Acima deles as serpentes se agitavam, espichando para fora das bocas suas línguas fendidas e arremessando seus corpos em botes rápidos que somente a distância impedia que se tornassem fatais.

O deus Hermes, sorrateiramente, na escuridão do templo, colocou nas mãos do herói o seu herpé perdido. E Perseus, reunindo toda a sua força e decidido a por um termo no seu objetivo, gritou:

— Olha para mim, criatura medonha!

Quando Medusa percebeu o truque, era tarde demais. Ela olhou para a própria imagem refletida, que nunca vira, e surpreendeu-se ao ver sua antiga imagem de ninfa, bela e meiga. E Perseus, com um golpe de mestre, olhando através do escudo, decepou a cabeça de Medusa. Um grito horrível ecoou naquele antro, que todos os seres da ilha ouviram. A cabeça rolou, ainda viva, para um lado, enquanto que a linda imagem de Medusa no escudo tomava forma de terrível górgona, e ali permaneceu, estampada para sempre.

PÉGASOS E CRISÁOR

Perseus, muito assustado, recostou-se no ar contra a parede e, ao seu lado, amparou-o Atena. A deusa, tomando o escudo de seus braços, mostrou-lhe pelo lado interno o que ainda acontecia: do sangue verde e viscoso do horrível monstro saía uma luz dourada e brilhante que, aos poucos, foi tomando forma. Lentamente foram surgindo os contornos de um maravilhoso cavalo alado, tão branco que o templo se iluminou.

O magnífico animal aproximou-se e abaixou a cabeça, balançando a crina ondulante e prateada como se o reverenciasse. Atena batizou-o Pégasos e o acariciou. Perseus, com os olhos voltados em direção da imagem no escudo, apanhou a cabeça da Górgona e meteu-a no surrão, o kibisis, que, num passe de mágica, começou a distender-se o bastante para conter a cabeça do monstro. E, em seguida, usou-o a tiracolo.

E Atena disse-lhe:

— Missão cumprida, Perseus. Agora, monta em Pégasos e parte para Sérifos, aonde tu ainda tens algo a cumprir.

Perseus, em seguida, montou no dorso do animal para que este o levasse daquele lugar. Quando Perseus deixou o antro, Éos, a Aurora, começava a anunciar a vinda de seu irmão Hélios, o Sol.

Enquanto isso, do corpo decapitado da Górgona, surgiu de seu sangue um gigante, armado de uma espada de ouro, como que se quisesse correr para a guerra, e isso lhe valeu o nome de Crisáor, “da espada de ouro”, que, como Pégasos, era fruto da união de Poseidon com a ninfa Medusa.

O gigante Crisáor, não tendo a quem governar, na Terra Informe, identificada com o antiquíssimo país de Thule, dirigiu-se todo-poderoso ao país dos Tartessos, na Hespéria, e tornou-se o seu rei. Uniu-se a uma oceânide, Calírroe, que lhe deu dois filhos: Équidna e Gérion, a primeira um dia iria unir-se a um descendente de Perseus, e o segundo, seria morto por ele.

O TITÃ ÁTLAS

Perseus, então, sozinho com Pégasos, passou pela terra dos Hiperbóreos, e com eles divertiu-se, e depois, empurrado violentamente pelos Ventos, passou pela região montanhosa logo a oriente do Jardim das Hespérides, na África, em plena escuridão, e desceu um pouco para apanhar água e dar de beber ao fabuloso Pégasos. Pretendia cumprir a promessa e ajudar o titã a suportar o firmamento. E logo foi procurá-lo, mas decidiu testá-lo.

— Venho como hóspede. Se honras uma origem ilustre, sabes que tenho Zeus por pai. Se preferes feitos valorosos, saibas que venci a Górgona. Por isso, só te peço repouso e alimento.

Porém, Átlas lembrou-se de que uma velha profecia o advertira de que um filho de Zeus, seu inimigo, lhe roubaria as maçãs de ouro. Por isso, tomando-o como ladrão e mentiroso, porque não cumpriria sua promessa, ameaçou-o:

— Sai! Não serás protegido por tuas falsas pretensões de origem ilustre ou feitos gloriosos. Não cumprirás o que me prometeste, nem hoje nem jamais.

— Presas pouco a minha amizade, mas nem assim vou deixar que duvides de minhas palavras.

Disse-lhe Átlas:

— Então cumpre a tua promessa.

Perseus, então, mostrou a cabeça de Medusa ao titã, que, transformado imediatamente em rocha, agarrou-se na parte mais alta do monte, que daí então passou a levar o nome de Átlas. Porém, Átlas, que vivia sob a pena de sofrer perpetuamente por ter-se rebelado contra os deuses, tornou-se um gigante vivo de pedra, segundo a vontade divina de Zeus, podendo locomover-se, para atender a uma necessidade referente a Héracles, bisneto de Perseus. Então, o gigante deu passagem a Perseus, e o herói voltou para Antília, a fim de rever as Ninfas.

— Qual é a estrada que devo tomar para regressar à minha terra, pois muito perambulei para chegar até aqui?

E as Ninfas choraram e exclamaram:

— Não voltes para a tua terra, fica conosco e diverte-te em nossa companhia, solitárias donzelas, condenadas a morar eternamente muito longe dos deuses e dos homens.

Porém, diante da sua recusa, elas, a contragosto, lhe ensinaram o caminho, dizendo:

— Leva contigo este pomo mágico que, uma vez comido, saciará a tua fome por sete dias. Deves seguir na direção do Ocidente, sempre para o Ocidente, e passar pela lúgubre praia da Líbia, que Faéton queimou. O grande Poseidon deu-a a Zeus, pai dos deuses, quando abriu o Bósforo e o estreito de Ábidos, e inundou as terras da Hiperbórea. E Zeus recebeu esse território em troca da região inundada, um bom negócio, muita terra má por um pouco de terra boa; e, desde esse dia, ela permanece deserta e devastada, coberta de cascalho, de rochedos e de areia. Aliás, mesmo que tentes seguir para o norte, certamente cumpre-te o destino de seguir tal caminho, e perpetuarás.

Depois as Ninfas beijaram o filho de Zeus, e dele se despediram, chorando. E o herói saltou no lombo de Pégasos e continuou a sua viagem, desaparecendo aos poucos na direção do mar, tal uma gaivota, rumo ao nordeste.

NAS AREIAS DA LÍBIA

Sobrevoando o deserto da Líbia, viu pontas de rochedos e bancos de cascalho, lisas extensões de areia e montes de conchas, que branqueavam ao Sol, esqueletos de grandes monstros marinhos e ossadas de antigos Gigantes, que juncavam o fundo do mar. E enquanto voava, gotas do sangue verde da cabeça de Medusa escorriam pela sacola, e foram cair nas areias do deserto, o que tornou aquela região um lugar inseguro para sempre, infestado de escorpiões, áspides e serpentes.

Continuou a voar sobre as areias, alimentando-se com o fruto dourado que as Ninfas lhe tinham dado, e avistou as colinas do Psili, e os anões que combatiam com grous. Usavam lanças feitas de caniços e juncos e moravam em casas feitas com cascas de ovos de grou; Perseus riu-se, e prosseguiu rumo ao nordeste, esperando o dia inteiro ver cintilarem as águas azuis do mar Arquipélago, a fim de atravessá-lo e alcançar a Pátria.

Porém, desencadeou-se um vento áspero, impelindo-o para o sul. Durante o dia inteiro ele lutou contra a ventania e nem mesmo as sandálias aladas puderam vencê-la. Foi obrigado, no lombo de Pégasos, a flutuar ao sabor do vento durante toda a noite; ao amanhecer, nada havia à vista, salvo a mesma desesperadora extensão de areia. Chegou a estar numa região fértil, regada por muitos rios, sobrevoando cidades repletas de templos, pirâmides e efígies, desconhecendo onde poderia estar. Teve que, por várias vezes, descer e proteger-se das tempestades de areia, comuns naquelas paragens.

Tempestades de areia, vindas do norte, investiram contra ele e Pégasos e, colunas e espirais cor de sangue e envolveram o Sol do meio-dia. Perseus teve que fugir, com medo de ser sufocado por aquela poeira ardente. Finalmente a tempestade acalmou-se e ele tentou outra vez tomar a direção do norte, em direção ao mar; mas novamente, sobrevieram tempestades de areia, arrastando-o para o deserto. E, mais uma vez, tudo se acalmou. E, assim, durante sete dias ele teve que retroceder em lugar de avançar, até sentir-se esgotado pela Sede e pela Fome, com a língua colada ao céu da boca. Às vezes, imaginava ver um lago à sua frente, em cujas águas o Sol cintilava; porém, ao acercar-se, tudo desaparecia aos seus olhos e só via a areia ardente. Se não pertencesse à raça dos Imortais, ele teria perecido no deserto; mas resistiu, porque era mais do que um simples mortal.

Então ele invocou Atena:

— Oh! deusa bela e pura, dize-me, se me ouves: vais deixar que eu morra de sede? Obedecendo às tuas ordens, trouxe a cabeça da Górgona, e até agora favoreceste a minha viagem. Por que me abandonas quando chego ao fim? E por que essas sandálias não enfrentam as tempestades do deserto? Não mais verei minha mãe, o mar azul que cinge Sérifos e as ensolaradas colinas da Hélade?

Tal foi a sua prece; e um grande silêncio a recebeu.

O céu continuou mudo sobre a sua cabeça, e muda continuou a areia sob seus pés; Perseus olhou para o alto, mas nada percebeu além do Sol ofuscante no azul ofuscante; e ao derredor nada mais havia a não ser areia ofuscante.

Perseus esperou em silêncio durante algum tempo, dizendo consigo mesmo:

— Sem dúvida aqui me encontro por vontade dos Imortais, pois Atena não mentiria. Estas sandálias não estavam destinadas a conduzir-me pelo caminho certo? E Pégasos? Com certeza tomei uma direção errada.

Subitamente seus ouvidos se abriram e ele ouviu o ruído das ondas correntes.

Então seu coração se reanimou, embora mal acreditasse nos seus ouvidos; e avançou, exausto, mal podendo sustentar-se sobre o corcel divino, deparando, pouco adiante, ao sul, com um pequeno vale encravado na areia, com tamareiras e um belo relvado verde. Um regato cintilava no meio da relva, abria caminho, ondulando, por entre as árvores e depois se perdia na areia.

A água gotejava mansamente sobre as pedras e uma brisa agradável rumorejava por entre os galhos secos das tamareiras; Perseus riu-se de alegria, galgou o rochedo, bebeu a água fria, comeu tâmaras, dormiu estendido no relvado e depois se levantou e continuou sua viagem. Dessa vez, porém, começou a voar para o leste, aonde poderia encontrar algum lugar habitado.